Inquérito contra MST por denúncia de agressão a famílias na Bahia segue sem desfecho

Perto de completar seis meses do ataque sofrido por duas famílias de produtores rurais que residiam e trabalhavam dentro do assentamento Fábio Henrique (chamado também de “São João”), localizado no município de Prado, no sul da Bahia, o inquérito que apura o caso encontra-se parado em uma delegacia na cidade de Teixeira de Freitas.

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As famílias, que foram agredidas a socos e chutes por dezenas de homens e mulheres armados e tiveram suas casas vandalizadas e saqueadas, atribuem as agressões a integrantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) da Bahia devido a um embate sobre regularização de terras.

Dois membros das famílias eram da diretoria de uma associação de produtores que buscava regularizar suas terras para que os assentados pudessem, futuramente, ter acesso aos títulos de propriedade desses locais. O MST era contrário a essa tentativa de “emancipação” das mais de 150 famílias vinculadas à associação.

Conforme a Gazeta do Povo apurou, o inquérito foi retirado da delegacia de Prado e passou à 8ª Coordenadoria Regional de Polícia do Interior (Coorpin), em Teixeira de Freitas – cidade que fica a oitenta quilômetros de Prado – onde está parado aguardando decisão da Corregedoria da Polícia Civil.

A retirada do inquérito é apontada por Vanuza Santos de Souza, uma das pessoas agredidas, como resultado da força política do MST no estado. Na Bahia, o governo estadual é conduzido por Rui Costa, do Partido dos Trabalhadores (PT) – sigla que é aliada de longa data do MST. O estado conta também com deputados federais bastante atuantes no movimento, a exemplo de Valmir Assunção, também do PT.

A versão oficial da Polícia Civil é de que a retirada da investigação é resultado da abertura de um procedimento por parte de advogados do MST direcionado à Corregedoria da Polícia Civil, solicitando que o inquérito fosse encaminhado à sede da 8ª Coorpin. O Ministério Público da Bahia foi acionado pelas famílias, porém depende do desdobramento do inquérito para tomar as providências necessárias.VEJA TAMBÉM:

Entenda o caso

Conforme relatos das vítimas dos ataques, na madrugada do dia 13 de abril, cerca de 120 pessoas, várias delas armadas com revólveres, pistolas, espingardas e facões, chegaram ao local onde moravam duas famílias que há 15 anos viviam da agricultura no assentamento. As famílias são de Vanuza, que é presidente da Associação de Produtores Rurais do assentamento, e de Valmir da Conceição Oliveira, segundo tesoureiro da associação.

Após cortarem a energia do local, os agressores invadiram inicialmente a casa de Vanuza, onde, além dela, moravam seus dois filhos: uma menina de oito anos e um rapaz de 18. A agricultora e seu filho foram amarrados e depois agredidos a socos e chutes. Na sequência, os criminosos passaram a vandalizar a casa da assentada.

Em seguida, o grupo passou à casa de Oliveira, que lá residia com a esposa e três filhos adultos. Após arrombarem a porta da casa, os agressores amarraram a esposa de Oliveira que passou a ser agredida por mulheres que integravam o bando. As duas filhas empunharam facões para proteger a casa, mas se renderam diante do número de invasores.

O agricultor e seu filho também foram amarrados e passaram a ser espancados. A casa da família foi, da mesma forma, vandalizada. Ambas as moradias foram saqueadas – até mesmo os animais que pertenciam aos assentados foram furtados.

Em seguida, os oito integrantes das duas famílias foram colocados em caminhonetes e deixados em diferentes pontos da cidade. As vítimas, que tiveram até mesmo documentos pessoais e cartões bancários levados pelos criminosos, foram impedidas de retornarem ao assentamento sob ameaças de morte.

“Fomos na delegacia da cidade no outro dia, prestamos queixa, fomos ao hospital, fizemos exame de corpo de delito. Tempos depois, também fomos prestar queixa na Polícia Federal de Porto Seguro”, diz Oliveira. “Também chegamos a fazer duas reuniões online com o presidente da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa [deputado Jacó Lula da Silva (PT)], mas, na cabeça dele, nós estávamos difamando os movimentos sociais. E não teve nada até agora. Não aconteceu nada. Inclusive impediram o delegado de investigar, fizeram parar a investigação”, aponta.

Ao prestar queixa, as vítimas apontaram 12 nomes de pessoas reconhecidas por eles vinculadas ao movimento. Entre os nomes acusados pelas famílias estão dirigentes nacionais e regionais do MST. Todos foram citados no inquérito e alguns já haviam prestado depoimento durante o período em que a investigação esteve em andamento.

Segundo relatos dos diretores da associação, as agressões ocorreram após diversas ameaças feitas pelos chamados “pistoleiros” do MST na região. A reportagem teve acesso a três boletins de ocorrência registrados antes dos ataques (entre maio de 2020 e janeiro de 2021), sendo um na Polícia Civil e dois na Polícia Federal, relatando que estavam sendo frequentemente ameaçados de morte.

Paralelamente às prestações de queixa, Vanuza e Oliveira se encontraram com representantes do governo estadual e pediram que fossem tomadas providências para garantir a segurança deles. Houve uma reunião, no dia 6 de novembro de 2020, com os deputados Jacó Lula da Silva (PT), que é presidente da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa da Bahia, e Yulo Oiticica, ex-deputado estadual pelo PT e atualmente Superintendente de Políticas Territoriais e Reforma Agrária no governo de Rui Costa.

Reunião com representantes do governo estadual

Conforme vídeo do encontro, o qual a reportagem teve acesso, os representantes do governo disseram que estavam acompanhando a situação de perto e que iriam acionar a comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa e deputados federais ,“para que a sociedade possa tomar conhecimento do que está acontecendo por aí”. Prometeram que gestos de intimidação e violência contra os assentados não seriam tolerados e que nada aconteceria às famílias.

Após os ataques, segundo relatos de Vanuza, o deputado Jacó Lula da Silva teria dito que, ao levar o caso adiante, as famílias estariam querendo difamar a imagem dos movimentos sociais. A reportagem solicitou uma entrevista com o deputado petista e a assessoria dele informou que agendaria o contato, mas não houve retorno até o fechamento desta matéria.

Envio da Força Nacional

Junto a produtores de outros assentamentos que enfrentavam ameaças por terem rompido com o MST para buscarem a regularização de suas terras, Oliveira e Vanuza pediram ajuda a um secretário do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento. A pasta levou o caso ao Ministério da Justiça e Segurança Pública que, por meio da Portaria 493/2020, autorizou o envio da Força Nacional para amenizar os conflitos nos assentamentos dos municípios de Prado e Mucuri.

As tropas chegaram à região no início de setembro de 2020, mas – no dia 16 do mesmo mês – o governo Rui Costa entrou com um pedido de liminar no Supremo Tribunal Federal (STF) e pediu a retirada da Força Nacional do local. No dia seguinte, o ministro Edson Fachin deferiu a liminar, fazendo com que as tropas deixassem a área.

Até hoje as famílias não puderam retornar para suas casas. Vanuza e os dois filhos se mudaram para Porto Seguro e Oliveira passou a residir em Teixeira de Freitas com a família. Os filhos da agricultora permanecem fazendo tratamento psicológico por traumas emocionais após as agressões. “Minha filha travou. Ela regrediu, estava fazendo coisas de criança de três, quatro anos. Ela foi segurada, tamparam a boca dela e ela viu tudo. Meu filho foi muito espancado nas costas, nos rins. Está fazendo tratamento também, pois não estava conseguindo dormir”, relata.

Inquérito sobre famílias agredidas pelo MST na Bahia segue sem desfecho após seis meses

Vanuza, uma das agricultoras agredidas, em vídeo gravado na manhã seguinte aos ataques, ainda com os olhos roxos e os lábios feridos. Foto: Reprodução| Reprodução

Luta pela obtenção dos títulos de propriedade é motivo dos embates com MST

No dia 26 de julho de 2020, Vanuza foi eleita presidente da Associação de Produtores Rurais do assentamento Fábio Henrique; entidade que conta com 159 famílias cadastradas. A associação era comandada pelo MST desde sua fundação, em 2013, e tinha como objetivo regularizar as terras perante o poder público para viabilizar a obtenção dos títulos de propriedade aos produtores rurais – um objetivo dos assentados desde a chega ao local, há 15 anos.

Um movimento mais significativo pedindo novo direcionamento à entidade teve início em fevereiro de 2020, época que uma das famílias foi expulsa do assentamento após se rebelar contra o pagamento de coletivas – um dia semanal obrigatório dedicado ao trabalho nas roças de líderes do movimento. A partir daí, a associação contratou um advogado e passou a buscar sua regularização de suas atividades, para que pudesse dar andamento aos trâmites de documentação para tornar o assentamento regular.

“Coletamos a assinatura de 130 famílias e registramos a associação. Então começamos a buscar documentos que tínhamos direito no Incra. Contratamos uma empresa para medir a terra de cada um e fazer a documentação necessária. Quando as lideranças do MST viram isso, partiram para cima. Mas nós nem imaginávamos que seria dessa forma que iriam atacar”, diz Oliveira.

Para Vanuza, a resistência do movimento às tentativas de regularização das terras se deve ao poder econômico e político que o movimento exercia sobre os produtores. Ela cita que, além dos trabalhos obrigatórios, os assentados precisavam participar de manifestações políticas e tinham seus votos supervisionados para não votarem em candidatos não autorizados pela direção regional do MST. As terras do assentamento também eram, segundo ela, sublocadas a fazendeiros, o que rendia quantias mensais à liderança do movimento.

Andamento da investigação

Gazeta do Povo contatou a delegacia de Prado, responsável por dar início à investigação. O delegado Kleber Gonçalves, responsável pela apuração do caso, informou que o inquérito não estava mais com ele. “Houve uma situação em que houve a necessidade de encaminhar esse inquérito para minha superiora”, disse o delegado.

A reportagem contatou a delegada Valéria Fonseca Chaves, que seria a responsável pelo recebimento da investigação. Por telefone, ela confirmou que havia recebido o inquérito, porém disse que não sabia porque a delegacia o havia encaminhado para lá, uma vez que ela não havia solicitado.

Em nota sobre o caso enviada à Gazeta do Povo, a assessoria de comunicação da Polícia Civil informou: “O inquérito estava em andamento pela delegacia de Prado, tendo o titular da unidade ouvido testemunhas e realizado outros levantamentos, quando os advogados do grupo suspeito da invasão abriram um procedimento na Corregedoria da Polícia Civil, solicitando que a investigação fosse encaminhada para a sede da Coordenadoria, em Teixeira de Freitas. O titular de Prado já elaborou um relatório, informando todas as providências adotadas no caso e aguarda pronunciamento da Corregedoria para verificar se a investigação vai prosseguir na unidade ou será encaminhada à 8ª Coorpin/Teixeira de Freitas”.

Para o advogado criminalista Geraldino Santos Nunes Júnior, conselheiro da OAB/DF, a retirada do inquérito sem clara motivação que a justifique é incomum. “Não é normal. Seria normal se houvesse alguma interferência da polícia local, se a polícia não estivesse apurando, o que não é o caso. Até porque a delegacia local tem mais contato com os moradores, com as pessoas que estão lá. Isso facilita para as pessoas irem até lá. Se houvesse algum pedido, isso teria que ser fundamentado por uma portaria ou uma resolução da própria delegacia”, diz o jurista.

Os familiares acreditam que o poder político que lideranças do MST exercem no estado impede que avancem a apuração desse e de outros casos de violências por parte do movimento contra produtores que não se alinham a seus interesses.

As duas famílias também recorreram à Secretaria da Justiça, Direitos Humanos e Desenvolvimento Social da Bahia, vinculada ao governo Rui Costa, mas alegam que não obtiveram apoio. A Gazeta do Povo encaminhou à pasta, no dia 1º de outubro, perguntas sobre a atuação da secretaria no caso, que não foram respondidas até o momento. Dias antes da publicação da reportagem, foi feito novo contato por telefone para pedir respostas aos questionamentos, mas novamente não houve retorno da pasta do governo da Bahia.

Na mesma data, a reportagem também encaminhou perguntas ao deputado federal Valmir Assunção a respeito de possível interferência política no caso e de outras denúncias de violências na região, com envolvimento do MST, que a reportagem teve conhecimento após denúncias de produtores de outros assentamentos. Da mesma forma, não houve retorno à solicitação.

Diante da demora na investigação do caso e não tendo recursos para contratar advogados, no dia 19 de agosto Vanuza e Oliveira foram à sede da promotoria de Justiça de Prado e relataram os acontecimentos ao Ministério Público da Bahia (MP-BA). À Gazeta do Povo, o MP-BA informou que acompanha o caso por meio do promotor de Justiça Gilberto Campos. A assessoria informou que o promotor aguarda a conclusão do inquérito policial para dar continuidade. “Vanuza Souza já foi recebida pelo promotor de Justiça, que colheu o depoimento dela, cujo conteúdo será utilizado quando da avaliação do inquérito policial”, disse o MP-BA.

Resposta MST

Gazeta do Povo conversou sobre o caso com Evanildo Costa, diretor nacional do MST que pertence ao assentamento Jacy Rocha, no município de Prado. Costa foi apontado pelas vítimas como um dos autores das agressões, e seu nome consta no inquérito que apura o caso.

Sobre o conflito, ele afirma que havia insatisfação entre os próprios assentados quanto a Vanuza e Oliveira pelo fato de eles terem cobrado taxas dos agricultores para fazer o georreferenciamento das terras – um dos procedimentos necessários para a regularização dos lotes.

“Lá é uma área de acampamento, não tinha possibilidade de sair título nenhum. O que o governo federal deveria fazer era desapropriar a terra. O que acontece é que os acampados tinham feito denúncias de que seria contratada uma empresa para fazer o georreferenciamento das terras e que eles começaram a cobrar taxas dos associados para contratar a empresa. Na medida em que muita gente pagou e viu que esse título não existe porque a área ainda é acampamento, começou a criar uma revolta na comunidade contra eles”, disse o diretor do MST.

A respeito do pedido dos advogados do movimento para retirar o inquérito da delegacia de Prado, Costa alegou que “sentia tendência do poder político de Prado de criminalizar o MST”. “Percebemos também certa tendência do próprio delegado, como em alguns momentos ele antecipa o posicionamento dele”.

Quanto às denúncias dos familiares terem sido direcionadas às lideranças do movimento, ele diz que isso se trata de uma tentativa de criminalizar o MST. “Todas as denúncias que houve publicamente são vinculadas aos militantes do MST, porque o objetivo é nos criminalizar. Eles tentaram vincular simplesmente à direção”, afirma Costa.

A reportagem também questionou o dirigente a respeito das alegações de trabalhos coletivos obrigatórios e coação aos assentamentos para votarem nos candidatos apoiados pelo movimento. Costa disse que as alegações se tratam de “fake news”.

“Nas comunidades às vezes tem um colégio, um posto de saúde. Se a comunidade decidir uma vez por mês cuidar da estrutura coletiva, todo mundo vai se juntar para limpar o colégio ou consertar uma cerca. Isso tem em qualquer comunidade”, disse. Questionado mais especificamente sobre a ocorrência de trabalhos semanais dos assentados nas roças de líderes do movimento, ele disse que “cada comunidade tem suas regras”. “Em algum momento tem esse trabalho de mutirão”, disse.

Já a assessoria do MST Nacional, por meio de nota, informou que “a direção do movimento condena qualquer ato de violência no campo, inclusive sobre este ocorrido, e nega envolvimento com o mesmo”.

Confira a matéria na Gazeta do Povo

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