Uma em cada dez meninas no mundo deixam de ir à escola quando estão menstruadas. No Brasil, estima-se que sejam uma em cada quatro. Isto porque, na falta de absorventes, jornais velhos, pedaços de tecido e até folhas de árvores são usados como substitutos, em condições de claro risco à saúde e ao futuro dessas jovens.
Descrita como a falta de condição financeira para comprar material de higiene íntima e de acesso a estruturas básicas de saneamento, a pobreza menstrual é, portanto, um problema real e grave, que vem ganhando atenção no debate público e foi reconhecido pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef). No Brasil, um projeto de lei apresentado pela deputada Tabata Amaral (sem partido) foi aprovado pela Câmara dos Deputados no final de agosto, prevendo a distribuição gratuita de absorventes para mulheres de baixa renda e em situação de vulnerabilidade.
Ocorre que o público ao qual esta e outras iniciativas que visam combater a pobreza menstrual no mundo se dedicam vem sendo sistematicamente apagado em nome de uma suposta inclusão que, além de servir a uma minoria barulhenta, só faz afastar as vítimas reais do problema. A mais recente publicação do periódico médico The Lancet, um dos mais respeitados do mundo, se debruçou sobre a pobreza menstrual, afirmando que “historicamente, a anatomia e fisiologia dos corpos com vagina foram negligenciados”.
“Corpos com vaginas? Meu Deus. Você não pode escrever uma coisa dessas e falar de humilhação menstrual na mesma frase”, escreveu a médica Stephanie deGiorgio, especialista em saúde feminina do NB Medical, uma das maiores entidades formadoras de clínicos gerais e enfermeiros do Reino Unido. “Espero que um dia a medicina descubra um nome para ‘corpos com vagina’. Dr. Fauci, o vigário da ciência na terra, pode ajudar”, ironizou o psicólogo evolucionista Gad Saad.
Não é a primeira vez que termos como “corpos com vagina”, “pessoas com útero” ou “pessoas que dão à luz”, entre outros eufemismos e neologismos desumanizantes (“menstruantes” e “portadores de útero”) substituem a palavra “mulher” em publicações de grande alcance, com o objetivo de incluir homens transexuais e os chamados “não-binários”, pessoas que não se identificam com nenhum dos sexos e, não raramente, argumentam que é possível “alternar” de um para outro, ou não possuir nenhum. No ano passado, um texto no site Devex.com – produzido para um braço da Organização para as Nações Unidas (ONU) – abordou o mesmo assunto, dedicado a “pessoas que menstruam”.
O problema é que a adoção destes termos, resultado da subserviência ao politicamente correto, vai na contramão das melhores pesquisas científicas sobre a sexualidade humana. O ponto de partida é o fato de que o sexo biológico é determinado pelos gametas – óvulo e espermatozoides -, cujo desenvolvimento influencia todo o processo de formação do corpo humano. É sabido também que o ambiente (incluindo a gestação), a cultura e as experiências pessoais têm, sim, influência na formação da personalidade, da orientação sexual e em outros aspectos da vida humana; o que não anula o papel da biologia.
“Para mais de 99% de nós, nosso gênero é nosso sexo biológico. Em relação ao 1% de indivíduos para os quais a identidade de gênero e o sexo biológico não se alinham, eles podem se identificar como transgêneros ou possuir uma condição médica conhecida como intersex. As estatísticas mais recentes mostram que 6 em 1000 adultos americanos se identificam como transgêneros e até 1 em 100 pessoas são intersex”, explica a neurocientista Debra Soh, autora de “The End of Gender” (“O Fim do Gênero”, sem tradução no Brasil).
A ciência, portanto, reconhece a existência de pessoas com disforia de gênero (homens e mulheres que se identificam com o sexo oposto e, eventualmente, se submetem a procedimentos médicos para tornar seus corpos o mais parecidos possível com ele). E essas pessoas se submetem à transição precisamente porque querem viver como o sexo oposto.
Além do mais, ainda que a literatura científica registre a existência de pessoas “intersexuais” – condição causada por uma desregulação na produção dos gametas – a grande maioria delas se identifica como homem ou mulher e prefere viver como uma das duas opções. No mais, nem as variações comportamentais, nem a orientação sexual, nem quais outros fatores indicam que o gênero, muito menos o sexo, sejam um “espectro”.
Outros dados sobre o fenômeno da transexualidade ajudam a desmentir a propagada “universalidade” dos neologismos. Em reportagem sobre o apagamento das mulheres, Matheus S., homem transexual criador de uma página dedicada a desmentir as falácias do ativismo identitário, explicou à Gazeta do Povo:
“Sejam eles cis ou trans, homens não menstruam. Homens trans são pessoas do sexo biológico feminino que sofrem com disforia de gênero, portanto precisam, querem e vão passar por um processo de transição, o que significa que passam por tratamento hormonal que elimina a menstruação, na maioria esmagadora dos casos em um curtíssimo prazo, esse que vos escreve se livrou desta coisa, que é um dos maiores gatilhos para crises disfóricas, no primeiro mês de hormonização há anos”.
“Nós não queremos ser lembrados quando se fala deste assunto, nós odiamos passar por isso, pensar nisso, ser lembrados de que isso um dia já aconteceu, que possa vir a acontecer e principalmente, ficar falando sobre isso”, completou o autor. “A existência de pessoas que não se enquadram em um sexo é apontada como forma de ofuscar o fato de que uma proporção muito maior de Homo sapiens são machos ou fêmeas biológicos, e que suas expressões de gênero são majoritariamente bimodais por natureza, além de intimamente correlacionadas com o sexo”.
Nesta segunda-feira (27), o editor do The Lancet, Richard Horton, publicou uma nota em resposta à enxurrada de críticas. “The Lancet se esforça para promover a inclusão máxima de todas as pessoas em sua visão de saúde. Neste caso, passamos a impressão de que desumanizamos e marginalizamos as mulheres. (…) Peço desculpas aos nossos leitores que ficaram ofendidos com a frase da capa e com o uso dessas mesmas palavras no texto”.
Em seguida, o periódico enfatiza que a saúde de pessoas transgênero é importante e que a intenção da capa era empoderar mulheres junto com “pessoas não-binárias, trans e intersex”. Ao pedido de desculpas esfarrapado, a jornalista do The Guardian, Hadley Freeman respondeu: “graças a Deus, um homem chegou para explicar porque mulheres não devem ficar chateadas por serem chamadas de ‘corpos com vaginas”’.
Ironias à parte, julgar pela insistência no não-binarismo pseudo-científico e no apagamento das diferentes necessidades que separam mulheres de homens transexuais, um dos mais respeitados periódicos de medicina segue, portanto, mais preocupado com a “cultura do cancelamento” do que com a promoção de uma ciência rigorosa, acessível e verdadeiramente diversa.
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