Por falta de problemas no Brasil, Congresso quer legalizar cassinos

Dizem que marinheiro a gente conhece na tempestade. Pois bem, no meio de tudo o que o cidadão brasileiro vive, o presidente da Câmara dos Deputados teve uma idéia ótima para deixar tudo mais animado. Arthur Lira resuscitou de novo o projeto de Legalização do Jogo no Brasil, que jazia moribundo em sua comissão especial desde 2016.

Vira e mexe algum deputado reaparece com essa história e eu só posso acreditar que seja com a melhor das intenções. Invejosos acusam o deputado Arthur Lira de plágio, mas é pura maldade. Coincidência absoluta que Nicolás Maduro tenha tido a mesma ideia que ele, só que antes dele. A Venezuela é o único país do mundo que reinaugurou cassinos em plena pandemia, mas logo deve ter concorrentes. Inflação em alta, povo passando fome, falta hospital e dá-lhe cassino. Justo.

Não é a primeira vez que acompanho este debate e fico até comovida com a santidade dos defensores dos jogos de azar. Eles pintam um cenário em que o Brasil viraria uma Mônaco gigante num piscar de olhos. Seriam investimentos fundamentais para o desenvolvimento do país. Com o jogo, o Brasil finalmente deixaria de ser o país do futuro para realizar nossos sonhos. As razões para o veto seriam puramente morais, de foro íntimo.

Provoco o raciocínio reverso, sobre liberação e posterior fechamento dos Bingos. A coisa mais importante que os Bingos renderam ao Brasil foi uma CPI, a CPI dos Bingos. Diziam que ia gerar uma enormidade de empregos, que fomentaria o turismo, melhoraria as cidades, dinamizaria a economia. Como só rendeu página policial, acabaram fechando.

Houve a maior gritaria sobre as consequências sociais do fechamento dos bingos. Tenho de admitir que havia um fundo de razão. Com bingos abertos, certamente os grupos mais empolgados e ativos de whatsapp e facebook não seriam tão populosos e cheios de energia. Isso também aconteceria se houvesse uma aula grátis de hidroginástica do SESI a cada 5 quarteirões no país. Mas vamos voltar aos cassinos.

Existe há décadas um modelo internacional para avaliar a viabilidade de uma tentativa de legalização nacional do jogo. Ele mostra que a questão moral é apenas um dos fatores.
Uma campanha de sucesso precisa de:
1. Condições econômicas e experiências anteriores positivas com jogo legalizado.
2. Posição favorável das elites locais, tanto econômicas quanto culturais e tradicionais.
3. Patrocínio financeiro e de suporte moral à campanha.
4. A economia ser um assunto mais importante que crime ou problemas sociais.

Uma campanha dá errado por:
1. Personalidade de quem a encabeça.
2. Pobreza.
3. Corrupção governamental.
4. Ambiente de violência.
5. Falta de proximidade com cassinos.
6. Oposição religiosa.
7. Interesses econômicos rivais.

Como diria um importante filósofo: “Tirem suas próprias conclusões”.

Uma campanha por legalização de jogos de azar terá sempre a tônica da ridicularização de questões morais ou religiosas. É estratégico. As pessoas vão reagir a isso e não perceberão as omissões de dados muito mais concretos, como o impacto no comércio local, saúde, corrupção, lavagem de dinheiro e criminalidade. Legalizar o jogo privatiza o lucro e socializa o prejuízo.

Aqui no Brasil, por exemplo, é comum afirmar que os jogos são permitidos na maioria dos Estados norte-americanos e até em países árabes mais abertos, como Egito e Turquia. Nos Estados Unidos, conta como “jogo” loteria pública e bingo de igreja e isso sim é liberado na maioria dos Estados. Cassinos e bingos com máquinas são liberados numa minoria. A situação é muito parecida no Egito e na Turquia. Aliás, até aqui no Brasil. Tem loteria, bingo de igreja e até bingo em Festa Junina.

“Mas ninguém vai obrigar a jogar, joga quem quer”, ouço por aí. Negacionista científico gosta de se meter em tudo quanto é assunto. Jogo vicia e as máquinas de cassino são feitas para potencializar esse poder (leia a pesquisa na Scientific American). Jogo legalizado aumenta o número de viciados em jogo porque há maior exposição a ele. Até 1989, o Iowa tinha 1,7% de adultos viciados em jogo. Depois da legalização, o número aumentou para 5,4%. O fato é repetido em diversos outros Estados norte-americanos.

É possível argumentar que, ainda assim, os viciados são uma minoria. Ocorre que os cassinos vivem do vício. Nos Estados Unidos estima-se que 4% da população adulta seja viciada em jogo e calcula-se que eles são a fonte de mais de 50% da renda dos cassinos. Outro problema empurrar para a criminalidade os viciados em jogo desesperados por pagar dívidas. Estima-se que ocorra com mais da metade deles. No Reino Unido, apenas 5% dos jogadores viciados procura ajuda e só 1% são realmente tratados.

Fala-se da legalização dos jogos como se ela fosse uma injeção vibrante de investimentos privados na economia do país, bastando para isso uma canetada. Não te contam a parte que vai sair do seu bolso para viabilizar esses investimentos. Além dos gastos de saúde pública e com famílias desestruturadas, há um investimento gigantesco necessário para controle de lavagem de dinheiro, fiscalização, administração de passivos judiciais e criminais e impacto em pequenos negócios locais.

Quanto custaria isso? O Estado da Flórida fez a soma em 1994 para decidir se era ou não interessante a legalização dos cassinos no Estado. Concluiu-se que apenas com encarceramento e supervisão de jogadores patológicos com reincidência criminal seriam gastos US$ 6,08 bilhões dos contribuintes, mais do que todo o faturamento dos cassinos juntos. E isso sem contar os custos dos processos judiciais, inquéritos policiais e necessidade de intervenção social nesses casos nem os custos de controle e processos por lavagem de dinheiro, evasão de divisas e sonegação fiscal.

Gastos em cassinos competem com toda atividade econômica local e pessoas da localidade acabam gastando por ano em jogo o que gastariam comprando eletrodomésticos ou carros. Estima-se que, a cada dólar gerado por um cassino, o Estado gaste outros três com os impactos sociais da atividade. As taxas de falência nas cidades onde há cassinos são 18% maiores. O vício em jogo cresce 10% num raio de 100 quilômetros de onde há um cassino. Nem preciso entrar na destruição familiar e no drama humano, só pergunto quem paga essa conta. É o dono do cassino?

Na discussão sobre jogos de azar sempre vemos os exemplos bem sucedidos de Las Vegas, Mônaco, Veneza, Punta del Leste. É algo que pode dar certo em localidades onde não há um ambiente de violência, criminalidade organizada, corrupção governamental, pobreza e problemas sociais. Talvez no país do presidente da Câmara, Arthur Lira, seja assim. Teme que o Brasil padeça de tédio, então providencia emoção.

Confira a matéria na Gazeta do Povo

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