A verdade por trás das cirurgias espirituais de João de Deus

A história de João de Deus, o suposto médium brasileiro condenado a 40 anos de prisão por crimes sexuais contra centenas de mulheres, foi relatada pelo documentário “João de Deus – Cura e Crime”, produzido pela Netflix.

O curandeiro atraía muitos seguidores para a Casa Dom Inácio de Loyola, em Abadiânia (GO), incluindo políticos e celebridades internacionais, até que as denúncias sobre abusos sexuais começaram a aparecer.

Milhares de seguidores buscavam a cura por meio da sua fé nos “poderes sobrenaturais” de João de Deus, e muitos saíam “curados” depois da consulta com o médium. Porém, vários dos procedimentos usados por João de Deus são há tempos conhecidos por especialistas que desmascaram esse tipo de prática, que explora a fé das pessoas, em diversos lugares do mundo.VEJA TAMBÉM:

Show de mágica

Cenas de cirurgias espirituais como as protagonizadas por João de Deus impressionam, mas não têm nada de sobrenatural, de acordo com diversos ilusionistas e mágicos que ao longo da história desmascararam essas supostas curas.

O ilusionista Nicolas Junqueira, que se dedica a revelar os truques por trás de supostos poderes sobrenaturais e fraudes mediúnicas, contou à Gazeta do Povo como alguns desses procedimentos são feitos e por que eles convencem tantas pessoas.

Ele faz a distinção entre procedimentos espirituais que consistem em orações, imposição de mãos, rituais de cura e outros que são ligados à religiosidade das pessoas e “não podem ser chamados de truques”, e aqueles que envolvem atuação e até mesmo cortes e incisões, que são “verdadeiros shows de mágica”.

Esses rituais tiveram origem nas Filipinas, com o uso de métodos que são muito conhecidos pelos mágicos. “Há muitos vídeos de cirurgias mediúnicas nas Filipinas que são literalmente truques de mágica. O cirurgião esconde um pedaço de carne ou bolsa de sangue na mão, finge estar abrindo a pessoa”, diz Junqueira. “No Brasil também há vários vídeos mostrando esse tipo de cirurgia; em um deles um rato é tirado da barriga, tumores ou objetos de feitiçaria também são retirados das pessoas. São todos truques”, afirma.

Além disso, há outro tipo de cirurgia mediúnica que usa técnicas derivadas do faquirismo, e de fato usam instrumentos cirúrgicos para incisões ou cortes, como era o caso do tratamento oferecido por João de Deus.

O médium brasileiro usava técnicas para raspar a córnea dos pacientes e enfiar uma tesoura no nariz das pessoas. “Isso não é cirurgia. É assustador para quem vê, mas são completamente viáveis”, diz Junqueira, que já demonstrou em vídeo como não são necessários poderes sobrenaturais para inserir sem dificuldades uma tesoura na cavidade nasal.

O ilusionista lembrou que as cirurgias com cortes eram muito raras no templo de João de Deus. “A maioria das pessoas era tratada com oração e com um remédio, feito só de maracujá. Ele vendia o mesmo para todo mundo”.

Embora João de Deus não cobrasse as consultas, o seu negócio em Abadiânia movimentava muito dinheiro, que foi suficiente para que ele construísse um império que teria incluído 90 propriedades e milhões de reais em suas contas bancárias, segundo revelaram as autoridades na época de sua prisão.

Por que algumas pessoas saem curadas

Nas várias situações em que truques são usados para enganar as pessoas e convencê-las sobre falsos poderes de cura, especialistas explicam que os casos em que as pessoas “saem curadas” podem ser explicados por fatores como: efeito placebo, diagnósticos errados (o paciente não estava com a doença com a qual foi diagnosticado), remissão espontânea (casos raros em que a doença regride naturalmente) e a alta probabilidade de haver curas quando se trata de grandes números de pessoas.

“João de Deus chegou a atender 20 mil pessoas por mês”, diz Junqueira, argumentando que esse é um número suficiente para invariavelmente ver casos de cura acontecendo. “Soma-se a isso a conformidade pública; ou seja, pessoas que vão dizer que foram curadas para não passar por uma pessoa que não tem fé”.

Leitura quente e leitura fria

Duas das técnicas mais usadas por charlatões para se passar por alguém com poderes de vidência são a leitura quente e a leitura fria.

A leitura fria, expressão que vem do inglês “cold reading“, é uma ferramenta usada por videntes, adivinhos, médiuns e outros para obter informações sobre uma pessoa apenas com a análise de suas roupas, linguagem corporal, fala e de como se apresenta. A técnica é aliada a adivinhações, que o leitor pode continuar ou mudar de rumo ao ver se elas estão no caminho certo ou não, e também a afirmações genéricas, mas que fazem as pessoas interpretarem como afirmações particulares a ela.

“Já a leitura quente é quando eu obtenho informações específicas, por outros meios, e finjo estar recebendo isso na hora, de forma mediúnica”, explica Nicolas Junqueira. Por exemplo, é possível saber muita informação de alguém a partir do seu nome, fazendo uma busca na internet. “Se descubro que o avô dela faleceu, na hora da consulta finjo estar recebendo aquele avô”.

No caso do João de Deus, isso poderia ser muito facilmente usado com a rede de contatos que ele tinha em Abadiânia. “O documentário mostra que donos de pousadas passavam informações pra ele, para que soubesse quem eram os mais ricos. Isso também pode ser usado para [o médium] saber o que a pessoa está procurando no local”, diz o ilusionista.

Saúde e espiritualidade

O médico José Roberto Goldim, professor de pós-graduação na Escola de Medicina da PUCRS, diz que profissionais de saúde não têm como julgar a adequação, nem a efetividade, de procedimentos espirituais. Ele explica que o papel desses profissionais é garantir que os pacientes não abandonem as práticas de saúde por causa de procedimentos espirituais, que são vistos como complementares.

“Há muitas situações de curas espirituais, ao longo da história, e das nossas próprias práticas, que são inexplicáveis do ponto de vista científico convencional”, pontua Goldim. “É importante que os profissionais de saúde se coloquem abertos a essas práticas”, diz o médico, ressaltando a importância de se manter o foco no paciente e de manter o bom senso.

O médico ressalta, no entanto, que há pessoas mal intencionadas em qualquer profissão ou atividade. “Charlatanismo existe em todas as profissões. É sempre uma pessoa agradável que dá a resposta esperada pelo paciente”.

“Assim como o médico não dá bênçãos, orações e outros rituais, as lideranças espirituais também não deveriam realizar atos que são de profissionais de saúde”.

Confira a matéria na Gazeta do Povo

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