O Brasil saiu em passeata por R$ 0,20 em 2013, não consegue mais sair da passeata e isso já custou uma fortuna. Não vejo melhor exemplo do barato que sai caro. Tanta manifestação já nos deu inúmeras novas lideranças e uma multiplicidade de novas forças políticas. Mudanças estruturais, no entanto, não vieram das ruas. Ainda não descobrimos como fazer valer esta força.
Quem me trouxe esta reflexão foi a professora de Políticas Públicas e Relações Internacionais do IBMEC, Daniela Alves. Nem a Primavera Árabe conseguiu mudanças estruturais. Conseguimos mudar quem está no poder, o grupo que domina, mas não a estrutura que atende a população e encastela a alta cúpula dos protegidos.
Já assumimos que passeatas não vão nos levar a lugar nenhum e só servem para manipulação do poder, mesmo que inconscientemente. Isso fica evidente diante da discussão acalorada sobre se pode ou não ir à passeata do MBL, se alguém deve ou não ter relacionamento com quem vai à passeata do Bolsonaro. Nas redes sociais não se fala de outra coisa e isso é a assimilação da antipolítica.
Vi muita gente lembrando que Churchill aliou-se a Stálin para derrotar Hitler, o que era ideologicamente oneroso tanto para um quanto para outro. Unir forças temporariamente, sem aceitar o imposto pelo outro, parecia ser a única forma de sair de um caminho cada vez mais violento. Ocorre que a geração floco-de-neve não é capaz de unir-se a nada que seja diferente de si.
Política é a convivência com os diferente e a arte do possível. Inclui saber a diferença entre aliados reais e aliados de ocasião. Ocorre que vivemos o universo da intolerância, onde tudo ofende e onde quem realmente vive de difamar quer ser inimputável. A salada retórica é muito mais fortemente trabalhada do que a ação. As palavras de ordem nos dão a impressão de estar “fazendo algo”.
Para evoluir a sociedade precisamos compreender a natureza humana, entender os sofrimentos e sonhos das pessoas. Infelizmente optamos por dar visibilidade política a quem é incapaz de conviver com diferenças ou críticas mas que cresce precisamente por causa disso. Não podemos estar ao lado desse ou daquele simplesmente porque não sabemos nos impor nem impor limites.
Não criar encrenca é um patrimônio nacional, visto como um traço conciliador, uma boa coisa na personalidade. Ocorre que silenciar conflitos sem resolver piora os conflitos. Conciliador é o que pacifica, não o Pôncio Pilatos que planta uma bomba-relógio para a posteridade porque não quer criar encrenca. Vemos com muita clareza os problemas dos nossos adversários mas não cuidamos dos nossos próprios grupos.
Melhorar o grupo em que vivemos depende de encarar os problemas e superar com soluções, não só assumir erros mas rever comportamentos. Fazemos isso o tempo todo no ambiente profissional e familiar, o que nos impede de ter maturidade na política? Temos tratado a política como se estivéssemos num jogo de futebol em que tudo é culpa da torcida adversária.
Canso de ver adultos dizendo “eu não tenho culpa de nada porque eu não elegi Bolsonaro”. Antes, adultos usavam a camiseta “eu não tenho culpa, eu votei no Aécio”. Se há uma pauta em comum entre os brasileiros é a luta pela inimputabilidade. Todos elegemos alguém juntos, uma eleição é o resultado do equilíbrio de forças. Fugir da própria responsabilidade inclui fechar-se numa bolha.
Nessa bolha em que se idolatra um político perfeito e ninguém errou porque o apoiava, todos apontam para quem não o apoiou como uma excrescência. Contra esses vale tudo, todo tipo de baixeza, violência, calúnia. Os demais não colocam freio à vilania nem quando a repudiam. Não vão criar problemas num grupo que é tão perfeito e não tem culpa de nada do que deu errado. Abandona-se a noção de dignidade humana e também os conceitos de misericórdia e redenção. Ninguém no grupo erra.
Alguém que não consegue se impor e nem colocar limites dentro do próprio grupo teme o adversário. Basta ele ser mais bruto, violento ou virulento para obter a submissão, como é praxe dentro do grupo. Por isso tanto medo de ir à passeata com a pessoa errada ou amar a pessoa que foi à passeata errada. Quem não se impõe acaba submetido ao poder do outro.
Um estudo publicado pelo Nieman Lab, da Universidade de Harvard, mostra como nosso aprendizado social está ficando distorcido nessa era da apoteose da superficialidade, do ser quem se parece ser nas redes. As pessoas fazem o que dá engajamento em vez de fazer aquilo que dá a todos o resultado desejado. Começa na produção de conteúdo de baixa qualidade só nas redes e vira um hábito.
Quanto mais gente engaja com uma postagem – seja dando like, comentando, repostando ou até xingando – mais ela será passada adiante sem questionamento. A popularidade é um valor muito maior que a qualidade nas métricas dos algoritmos. Já era há algum tempo. O fenômeno da celebridade instantânea surge logo antes das redes sociais. Tivemos uma geração discutindo por que muitos almejam ser famosos e ponto.
Digerimos este conceito de uma forma que passamos a entregar nossos destinos nas mãos das celebridades, não dos que fazem e decidem. O maior celeiro da celebridade política instantânea é o nosso passeatismo. Não é preciso entregar às pessoas nada além de um discurso que elas queiram ouvir, de preferência batendo num inimigo comum a plenos pulmões. Estamos viciados nisso.
O problema não é o fervor político, principalmente do cidadão com uma revolta legítima que quer se manifestar. Isso é saudável. O nó está em outro ponto, deixar que isso seja capitalizado para manipulação de poder em vez de trazer os resultados que queremos. É bom para a política tradicional absorver os líderes de passeatas, eles aglutinam, podem ser vozes importantes.
O problema é termos a ilusão de que eles resolverão nossos problemas porque parecem sempre muito seguros sobre os caminhos a seguir. Não seria impossível que resolvessem, mudanças e aprendizados são fenômenos diários. Um dia precisaremos aceitar que ninguém aparecerá para nos salvar. Talvez daí aprendamos que nós é que temos de fazer isso e juntos, como um país.
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