A versão dos acontecimentos que nos está sendo empurrada pela máquina de propaganda em que se converteu a grande imprensa é que as instituições e a legalidade estão sendo desrespeitadas pelos bolsonaristas. O poder de síntese de mentiras é grande: numa tacada, entendemos que existem instituições e legalidade vigentes, e que a multidão é composta por teleguiados do presidente. A desobediência dos caminhoneiros evidencia o caráter mentiroso de uma dessas coisas. Bolsonaro é um veículo de anseios populares. O MBL, o Novo e deputados como Joice Hasselmann já foram.
Uma vez que o MBL, o Novo e Joice Hasselmann deixam de cumprir esse papel, são defenestrados. Nunca é demais lembrar que Joice Hasselmann, que ninguém mais respeita, foi eleita com mais de um milhão de votos. A grande questão do momento é se Bolsonaro será acrescido à lista dos demissionários no caos brasileiro. Mas está difícil escrever no calor sobre um assuntos tão pouco claro.
Vamos então às outras mentiras, que não são menos importantes.
Seguir ordens não é seguir leis
Uma frase é associada aos julgamentos de Nuremberg: “Eu estava só seguindo ordens.” Por que eles diziam que estavam seguindo ordens em específico, e não leis? A ideia de seguir ordens com presteza remete ao mundo militar em vez do civil. E há uma boa razão para isso: as ações dos militares costumam ser urgentes. Não há tempo para discuti-las nem convencer cada soldado a executar as ações. Se um subordinado resolver espalhar suas dúvidas entre a tropa como se fosse um civil num artigo de jornal, a operação fica comprometida. A lógica militar é diferente da lógica da política democrática, e deve ser assim.
No entanto, o III Reich não era uma sociedade de militares. Hitler tivera experiência bélica na I Guerra, é verdade, mas ele nunca ocupara qualquer lugar de destaque no Exército. O Exército Prussiano fora potentíssimo e a Prússia fora um Estado militarizado – mas com o Tratado de Versailles o Exército ficara miudinho. Os antigos generais prussianos, muitas vezes membros da nobreza, estavam, durante o nazismo, na Wehrmacht, outrora Reichswehr. A elite nazista, por outro lado, era paramilitar.
Os militares alemães foram aliados ocasionais de Hitler. Ora achavam que era uma força importante para deter a ameaça comunista, ora achavam que ele ia abandonar o radicalismo e aderir à normalidade alemã. Quando esses julgamentos se mostraram incorretos – e o pacto Molotov-Ribbentrop deu boas razões para desdenhar até do seu papel anticomunista –, os militares passaram a conspirar para matá-lo. Fracassaram.
Durante a guerra, Hitler se empenhava em manter os militares sob o seu jugo. Mais para o fim da guerra, os nazistas passaram a adotar, contra os generais tradicionais, a prática de expurgo familiar em caso de rendição. Se você perceber que a guerra está perdida e decidir parar de lutar, todos os seus familiares vivos, sejam velhos ou bebês, são assassinados. Os interessados na história da FEB podem ler “As duas faces da glória”, de William Waack, que entrevistou os alemães que lutaram contra os brasileiros. Waack conta que rendição foi muito comemorada pelos alemães, e que eles ficaram muito gratos ao chefe, porque sabiam que a família dele fora colocada em risco com sua rendição. As vidas dos soldados não foram salvas sem que o general colocasse a própria família em risco.
Os SA foram os radicais que exigiam a radicalização célere de Hitler no governo. Eles, sim, eram comandados por alguém com experiência bélica relevante (o capitão Ernst Röhm). No entanto, Hitler exterminou esse grupo paramilitar e substituiu pelos SS, muito mais dóceis, que se tornaram a elite nazista. Ao contrário de Röhm, seu líder, Himmler, nunca tivera experiência de combate. Era um homenzinho frágil e sempre adoentado. Amava mitologia nórdica e escrevia panfletinhos contra judeus. Quando assistiu à execução em massa por tiroteio, vomitou e quase desmaiou. Dessa fragilidade toda surgiu a ideia de fazer assépticos campos de extermínio.
Os civis que se acostumaram a “cumprir ordens” faziam isso sem pensar em legalidade! A coisa toda começou quando Hitler era apenas chanceler em vez de Führer, e foi decretada a “eutanásia” (ou melhor, assassinato) de doentes mentais. Em “Hitler e os alemães”, Voegelin chama à atenção dessa predisposição espalhada pela sociedade de simplesmente obedecer a ordens secretas, mesmo que descaradamente ilegais.
No Brasil, felizmente não somos predispostos a obedecer a ordens, sejam elas legais ou ilegais. O que se exige de nós é que desaprendamos a distinguir ordem de lei, já que as pessoas de Alexandre de Moraes, Luís Roberto Barroso e seus colegas são apresentados como se fossem a mesma coisa que a instituição do Supremo Tribunal Federal. Ora, se fosse simples assim, os críticos de Jair Bolsonaro seriam contrários à instituição da Presidência da República. Seriam monarquistas, talvez.
A consequência de tal confusão é as ordens, quando dadas pelas pessoas de Alexandre de Moraes etc., serem confundidas com a lei.
“Democrático” como em “República Democrática Alemã”
L’État c’est Alexandre de Moraes e seus amigos. A democracia é o que Barroso considera democrático, e quem discordar é antidemocrático. Pior: a democracia é o mero cumprimento de ordens que emanam de uma autoridade qualquer sancionada pelo Jornal Nacional e pelos checadores de fatos. O que quer dizer que “democracia” é um conceito capaz de abarcar a falta de liberdade de expressão e do devido processo legal. É como achar que os expurgos de Stálin foram compatíveis com a ordem legal ocidental só porque os soviéticos montaram um tribunalzinho de mentira.
Aliás, tamanha distorção semântica é encontradiça no mundo comunista. Portanto, quem acreditar no Jornal Nacional, que vá procurar democracia na “República Popular Democrática da Coreia”.
Post Scriptum: Este texto terminou de ser escrito minutos antes de aparecer a nota de Bolsonaro.
Be the first to comment on "Que legalidade?"