No dia onze de setembro de 2021, a sociedade dos EUA vai lembrar dos atentados ocorridos vinte anos atrás. Naquele dia, como os leitores sabem, dezenove extremistas da al-Qaeda sequestraram quatro aviões comerciais de passageiros e realizaram o maior atentado terrorista da História dos EUA. Um avião foi lançado ao Pentágono, outro caiu, provavelmente após a resistência dos passageiros, e outros dois foram arremessados contra as torres gêmeas do World Trade Center, em Nova Iorque. No total, 2.996 pessoas morreram, de mais de setenta nacionalidades diferentes, em um evento que marcou uma mudança mundial e uma clivagem histórica nos EUA. Desde então, entretanto, uma questão permanece, e nenhum presidente dos EUA aceitou mexer nesse vespeiro.
Cada um dos leitores lembra exatamente onde estava quando viu as notícias. Não é exagero dizer que o onze de setembro de 2001 foi um ponto de inflexão na História. A intervenção no Afeganistão, a invasão do Iraque, a popularização do termo “jihad”, a mundialização do terrorismo, o endurecimento dos aparatos de segurança, o aumento da vigilância global, tudo isso é fruto direto daquele dia. Se contarmos os frutos indiretos, não seria uma coluna, mas um livro. Os que, por acaso, tiverem realizado uma viagem de avião antes daquele dia talvez se lembrem de quão diferente eram os procedimentos de segurança em um aeroporto, mesmo em um voo doméstico brasileiro.
Na sociedade dos EUA, as consequências foram, obviamente, muito mais profundas. É uma espécie de trauma coletivo, que faz parte da formação da atual identidade daquela sociedade. Um exemplo disso é o extremamente criticado atualmente Patriot Act. A lei, em nome de uma ideia de segurança nacional, relativiza alguns dos direitos humanos básicos e expandiu os poderes de vigilância do Estado. Em uma sociedade, diga-se, que não costuma apoiar esse tipo de autoridade. Mesmo com um “prazo de validade” até 2005, ele foi continuamente renovado, embora cada vez mais criticado. De qualquer maneira, ele explicita esse trauma coletivo citado, já que, mesmo polêmico, foi aprovado de forma quase unânime, por 357 a 66 na Câmara dos Deputados e por 98 a um no Senado.
Questões que permanecem
Mesmo após a morte de Osama bin-Laden, o grande arquiteto desse plano, em 2011, algumas questões permanecem. Todos os responsáveis pelo ataque são conhecidos pelo público? Todos os envolvidos foram punidos ou responsabilizados? E, principalmente, um dos principais aliados de Washington teve algum papel nesses ataques? Um dos motivos dos ataques, muitas vezes subestimado, foi a presença de tropas dos EUA na Arábia Saudita. Os dois países são aliados e, durante e após a Guerra do Golfo, tropas dos EUA foram estacionadas em solo saudita, o país guardião das duas cidades sagradas do Islã, tornando assim intolerável a presença de “infiéis” permanentemente no local. Esse fato foi alvo de protestos, incluindo do saudita bin-Laden.
Dos dezenove terroristas envolvidos diretamente com os ataques, quinze eram sauditas. Dois eram árabes-emiradenses, um libanês e outro egípcio. Claro que o fato do envolvimento de nacionais sauditas não implica na responsabilidade do Estado saudita. Por outro lado, não foi uma operação pequena, realizada por um “lobo solitário” qualquer. Foi um ataque terrorista extremamente organizado e caro, com custos de viagens, de comunicação, de aulas de voo para alguns dos envolvidos. O milionário bin-Laden foi o único financiador? É possível, em um Estado monárquico absolutista como a Arábia Saudita, onde a economia é controlada pela família que é virtualmente dona do país, que inclusive batiza o país, que uma fortuna não tenha vínculo algum com o Estado?
Isso sem mencionar questões indiretas, como o fato de que a maioria dos grupos extremistas sunitas, como a al-Qaeda, bebem na fonte do Wahabismo, a teologia extremista que é oficial na Arábia Saudita e que, por décadas, foi exportada pelo país como política de Estado. E é nesse vespeiro que os presidentes e líderes dos EUA não ousam mexer. A primeira indicação nesse sentido foi a publicação, em junho de 2004, do Final Report of the National Commission on Terrorist Attacks Upon the United States. O documento, ao mesmo tempo em que diz que não foram encontradas “evidências de que o governo saudita como instituição (…) tenham financiado [a Al Qaeda]”, também identifica “a Arábia Saudita como a principal fonte de financiamento da Al-Qaeda”.
Em 2014, em um e-mail para John Podesta, a então presidenciável democrata, e ex-Secretária de Estado, Hillary Clinton, afirma que a “Arábia Saudita é a maior financiadora do terrorismo sunita” do mundo, citando nominalmente a al-Qaeda e tratando também do contexto sírio. Já em 2016, o Congresso dos EUA aprovou a Lei para Justiça contra Patrocinadores do Terrorismo, que permitia que cidadãos dos EUA usassem o judiciário de seu país para processar países envolvidos com atos de terrorismo que tenham lhe causado danos. Em outras palavras, parentes de vítimas dos atentados poderiam processar o Estado saudita nas cortes dos EUA. A lei foi aprovada de forma unânime nas duas casas e foi vetada por Barack Obama, que teve seu veto derrubado.
Opacidade e aliança
Também em 2016 foi publicado o File 17, um arquivo contendo quase quarenta nomes de pessoas envolvidas direta ou indiretamente com os ataques. Dentre eles, funcionários da inteligência estatal saudita que estavam lotados nos EUA. Em 20 de março de 2017, 2.350 pessoas, incluindo parentes de vítimas e sobreviventes, processaram o Reino da Arábia Saudita. Alegam que o governo saudita tinha conhecimento prévio de que alguns de seus funcionários eram integrantes ou simpatizantes da al-Qaeda, e alegam que o país “conscientemente forneceu apoio material e recursos à organização terrorista Al Qaeda e facilitou os ataques de 11 de setembro”.
A acusação é parcialmente baseada em audiências públicas do Congresso dos EUA. Tais inquéritos do Congresso, entretanto, não são conhecidos na íntegra, com 28 páginas classificadas como confidenciais. As “apostas” são de que essas páginas provam, ou refutam, decisivamente a participação saudita nos ataques. O governo Obama, além de ter tentado vetar a lei citada, também resistiu a pressões para publicar o conteúdo dessas 28 páginas. Do lado saudita, o país buscou garantir sua posição e teria ameaçado o governo dos EUA. Se o reino fosse responsabilizado pelos atentados e se tornasse vulnerável a uma chuva de processos, o país poderia vender até 750 bilhões de dólares em títulos do Tesouro e outros ativos dos EUA.
A consequência seria um choque na economia mundial e desvalorização do dólar. Os sauditas perderiam também? Claro, mas aqui o cálculo não é mais apenas financeiro, mas também político. De manter uma posição. Ou realizar uma vingança. A relação “melhorou” com o governo Trump. As aspas se devem pelo fato de que a situação ficou ainda mais opaca, sem publicações relevantes de informações sobre o Onze de setembro. Mais que isso, a Arábia Saudita foi o primeiro destino internacional de Trump como presidente dos EUA. Mais tarde, Trump passou a mão na cabeça do governo saudita no caso do assassinato do jornalista Jamal Khashoggi, em outubro de 2018.
Agora, nos vinte anos dos atentados, Biden prometeu a publicação de informações antes consideradas confidenciais, algo que deve ocorrer “dentro de seis meses”. O atual presidente e a primeira-dama visitarão os três locais dos atentados de 11 de setembro, participando de cerimônias em Nova Iorque, Shanksville e Arlington. Segundo o comunicado oficial, a intenção é “honrar e homenagear as vidas perdidas”. Claro que essas são suas funções oficiais, o que falta ver é o quanto de informação será publicada.
O fato é que, vinte anos depois do atentado, no quarto governo diferente, já passou da hora dos EUA revisarem sua aliança com os sauditas. Ou a Arábia Saudita é inocente de envolvimento com os atentados, ou os EUA tem um “amigo” responsável pelo evento mais traumático de sua História recente.
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