Passaporte sanitário avança no país. O que dizem juristas e epidemiologistas

As cidades de São Paulo e Rio de Janeiro anunciaram, recentemente, restrições para cidadãos que optarem por não receber a vacina contra a Covid-19 – o chamado passaporte sanitário. Os prefeitos das duas capitais publicaram decretos que exigem a comprovação de pelo menos uma dose da vacina por meio de certificados digitais ou comprovante impresso de imunização para não haver impedimento a determinados serviços ou estabelecimentos.

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Enquanto o prefeito Ricardo Nunes (MDB) restringiu o acesso de cidadãos não vacinados a eventos com mais de 500 pessoas na cidade de São Paulo, Eduardo Paes (PSD), do Rio de Janeiro, foi mais longe. Além de impedir o acesso a locais de uso coletivo, como academias, cinemas, estádios e museus, Paes também proibiu que não imunizados façam cirurgias eletivas nas redes pública e privada e tenham acesso ao programa social chamado “Família Carioca”, que destina recursos a famílias que têm renda menor que R$ 108 por pessoa.​

A implementação do passaporte sanitário também pode se tornar realidade em outras capitais do país; pelo menos sete já têm projetos de lei ou decretos em andamento para implementar a medida. Por enquanto, porém, não há consenso entre juristas e epidemiologistas sobre a legitimidade da medida, principalmente em relação à sua constitucionalidade, ao restringir o direito de ir e vir sem evidências científicas consolidadas, e à sua eficácia.VEJA TAMBÉM:

Após reação, São Paulo retira restaurantes e shoppings de decreto

O passaporte sanitário passa a valer na capital paulista a partir desta quarta-feira (1º). No decreto 60.488, publicado no Diário Oficial no sábado (28), Nunes determina que a medida será válida para estabelecimentos e serviços pertencentes ao setor de eventos, como shows, feiras, congressos e jogos, com público superior a 500 pessoas. Estabelecimentos e organizadores que não respeitarem as restrições estarão sujeitos a penalidades que vão desde multas até a interdição das atividades.

Apesar de não atingir outros tipos de estabelecimentos, o decreto estimula a adesão massiva ao passaporte da vacina na capital. “Fica recomendado a todos os estabelecimentos no Município de São Paulo que solicitem, para acesso das pessoas às suas dependências, comprovante de vacinação contra COVID-19”, cita o artigo 3º da norma.

Em 23 de agosto, Nunes havia afirmado que os efeitos do decreto se estenderiam a outros locais, como bares, restaurantes e shoppings. No entanto, após forte reação de entidades representativas do setor gastronômico – já bastante fragilizado pelos impactos econômicos da pandemia –, o prefeito voltou atrás e, no mesmo dia, o secretário municipal da Saúde, Edson Aparecido, manifestou-se dizendo que o passaporte sanitário não englobaria esses locais.

Um dia depois desse anúncio, sete deputados federais, incluindo Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), protocolaram um habeas corpus preventivo no Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) buscando impedir a eficácia do decreto. A Justiça, no entanto, negou o pedido – no entendimento do desembargador Fábio Gouvêa, em sua decisão, a proposta da prefeitura de São Paulo é de utilidade pública, pois visaria conter a Covid-19.

Rio de Janeiro tem regras rígidas que incluem restrição a cirurgias e a programa social

Na capital fluminense, o modelo do passaporte sanitário é ainda mais rígido do que o paulista. Em três decretos publicados em Diário Oficial na sexta-feira (27), Paes criou uma série de restrições aos cidadãos que optarem por não receber a vacina contra a Covid-19.

O primeiro decreto (49334) condiciona a realização de cirurgias eletivas em unidades de saúde públicas e privadas à apresentação de comprovante de vacinação. Já o segundo (49335) proíbe cidadãos não imunizados de acessarem os seguintes estabelecimentos e locais de uso coletivo:

  • academias de ginástica, piscinas, centros de treinamento e de condicionamento físico e clubes sociais;
  • vilas olímpicas, estádios e ginásios esportivos;
  • cinemas, teatros, salas de concerto, salões de jogos, circos, recreação infantil e pistas de patinação;
  • atividades de entretenimento, exceto quando expressamente vedadas;
  • locais de visitação turísticas, museus, galerias e exposições de arte, aquário, parques de diversões, parques temáticos, parques aquáticos, apresentações e drive-in;
  • conferências, convenções e feiras comerciais.

Por fim, o terceiro decreto (49337) coloca o passaporte da vacina como condicionante para que beneficiários do programa “Cartão Família Carioca” – benefício destinado a famílias de baixa renda – permaneçam tendo acesso aos recursos.

“Nosso objetivo é criar um ambiente difícil para aqueles que não querem se vacinar, que acham que vão se proteger sem a aplicação do imunizante e terão uma vida normal. Não terão. Vão ter dificuldades na hora de ter uma cirurgia eletiva, um programa de transferência de renda, e estarão impossibilitados de terem lazer e trabalho sem se vacinar”, disse o prefeito Eduardo Paes na coletiva de imprensa em que anunciou as medidas.

Em 23 de agosto, os deputados federais Chris Tonietto, Carlos Jordy e Major Fabiana (PSL-RJ) protocolaram um habeas corpus coletivo no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ) contra os decretos de Paes. Na mesma data, o deputado estadual Márcio Gualberto dos Santos (PSL) também acionou a justiça pedindo que os decretos sejam declarados inconstitucionais.

No Rio de Janeiro, a Justiça também negou os pedidos contra os decretos de Paes, em caráter liminar.

Juristas avaliam constitucionalidade do passaporte sanitário

Autores de propostas que instituem passaportes da vacina baseiam-se na Lei federal nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020, que prevê, em seu artigo 3º, a determinação de realização compulsória de vacinação contra a Covid-19; e na decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), de dezembro de 2020, que concluiu que estados e municípios podem determinar a compulsoriedade da vacinação, desde que não recorram a medidas invasivas e coercitivas.

Um dos pontos questionados por contrários à maneira como os passaportes sanitários têm sido implementados está relacionado a uma ressalva apontada pelos ministros do Supremo, a qual cita que os imunizantes devem ter “ampla informação sobre a eficácia, segurança e contraindicações”.

Para Renato Rodrigues Gomes, mestre em Direito Público pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), uma vez que os imunizantes contra a Covid-19 foram autorizados para uso emergencial, e não definitivo, é inadequado obrigar a vacinação por meio de restrições às liberdades fundamentais.

Gomes argumenta também que a Lei 13.679/2020 deve ser observada em conjunto com a Lei 6.259/1975 – que dispõe sobre ações de vigilância epidemiológica e institui o Programa Nacional de Imunizações. “A lei de 75 diz que a autoridade que tem competência para avaliar isso é o Ministério da Saúde, não cabendo a prefeitos ou governadores”, aponta.

O jurista questiona mais enfaticamente a medida determinada pelo prefeito do Rio de Janeiro, que proíbe cirurgias eletivas a não imunizados. “Ao impedir o cidadão de fazer uma cirurgia, ele está condenando a pessoa sob o pretexto da proteção à saúde. Quando ele fala em saúde coletiva e ataca o individual, está cometendo um crime”.

Já Acácio Miranda, especialista em Direito Constitucional, avalia que as medidas estão de acordo com a Constituição Federal. Para ele, esta é uma situação em que há um conflito de direitos em que deve ser levada em consideração a hierarquia de cada um deles. “Há um conflito entre os direitos da liberdade de locomoção e da livre iniciativa – que são direitos naturais inerentes a todos nós – e o direito à saúde pública. Hoje vivemos uma pandemia, um problema de saúde pública. Então eu encaro o passaporte da vacina como algo constitucional em virtude das circunstâncias atuais”, afirma Miranda.

Infectologista diz que passaporte sanitário pode aumentar contaminações da Covid-19

À Gazeta do Povo, o infectologista Francisco Eduardo Cardoso Alves afirmou que a implementação do passaporte de vacinas não é efetiva do ponto de vista sanitário e que as contaminações podem até mesmo aumentar, tendo em vista que os imunizantes atualmente disponíveis reduzem a incidência da doença, porém não bloqueiam a transmissão do vírus da Covid-19.

“Qualquer vacina para Covid-19 desenvolvida até o presente momento não impede transmissão e contágio. O que essas vacinas tentam garantir é que, ao ser vacinada, a pessoa tenha uma doença em menor quantidade ou nem fique doente em comparação com o não vacinado. Mas elas são inúteis para fins de bloqueio de transmissão”, afirma. O infectologista explica que é um erro achar que haverá segurança à população por permitir a entrada de várias pessoas apenas comprovando a vacinação. “Aí, deixam-se várias entrarem e terá surtos de Covid-19 dentro desses locais”, declara.

Alves avalia que os critérios de eficácia e segurança dos imunizantes ainda não foram atingidos de forma suficiente para determinar a vacinação em caráter impositivo. “Elas deveriam estar sendo liberadas em caráter voluntário. Do jeito que está sendo colocado, parece que são definitivas, que estão comprovadamente classificadas como seguras e eficazes”, diz o médico. “Isso não pode ser comparado às outras vacinas, que já estão no mercado há muitos anos, são superseguras e não há nenhum problema em sua compulsoriedade”, complementa.

Por outro lado, o epidemiologista José Cássio de Moraes, integrante da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) e do Observatório Covid-19 Brasil, vê a medida com bons olhos. “É preciso considerar que a vacina não é só um ato individual, mas também uma atitude social. No caso da maioria da população, quando você se vacina, apesar de não eliminar a transmissão, você a reduz, uma vez que a carga viral será menor”, observa.

Moraes endossa que a existência de locais restritos a vacinados não elimina o risco de contágios e que mesmo as pessoas imunizadas precisam manter medidas como uso de máscaras e distanciamento. Ele reforça que há o risco de passaporte da vacina induzir a uma falsa segurança. “Esse passaporte pode passar uma imagem incorreta de que quando se está vacinado, ‘liberou geral’, num momento em que estamos com cobertura vacinal com a segunda dose ainda baixa e a variante Delta circulando em alguns locais mais intensamente, e outros menos”, ressalta

Mais capitais avaliam implementar restrições

Decretos e projetos de lei que propõem restrições semelhantes a não imunizados podem se tornar realidade em outras capitais brasileiras. Representantes do poder Executivo de cidades como Salvador, Goiânia e Florianópolis já anunciaram que pretendem implementar a medida. No caso da capital catarinense, o prefeito Gean Loureiro (DEM) declarou, recentemente, que o passaporte de vacinação só entrará em vigor após a campanha de vacinação alcançar toda a população.

Também há projetos de lei em tramitação nas câmaras de vereadores de capitais como Curitiba; Manaus; Porto Alegre e Campo Grande – o prefeito da capital sul-mato-grossense, Marquinhos Trad (PSD), afirmou que vetará a proposta caso seja aprovada em plenário. Segundo ele, uma determinação desse tipo deve ser de âmbito nacional, não cabendo ao município.

Há, atualmente, no Congresso Nacional, um projeto de lei em tramitação que propõe instituir um passaporte sanitário em âmbito nacional. Aprovado no Senado em 10 de junho, a proposta aguarda votação na Câmara dos Vereadores. No dia 6 de julho, os deputados rejeitaram um requerimento de urgência para votação do projeto de lei 1674/2021 em plenário. Para ser aprovado, o requerimento precisava de um mínimo de 257 votos, porém houve somente 232 votos favoráveis – outros 232 deputados se manifestaram de forma contrária ao requerimento e houve quatro abstenções. O projeto de lei segue, portanto, a tramitação normal nas comissões da Câmara.

Em contrapartida, nesta terça-feira (31), as deputadas federais Chris Tonietto (PSL-RJ) e Bia Kicis (PSL-DF) apresentaram o projeto de lei 3026/2021, que propõe “garantir os direitos constitucionais de liberdade àqueles que se abstenham de participar das campanhas de vacinação contra a Covid-19 ou qualquer de suas variantes”. De acordo com o texto da proposta, fica proibida a compulsoriedade da vacinação da Covid-19 em território nacional, assim como o impedimento do acesso a serviços e estabelecimentos públicos e privados a não imunizados.

Confira a matéria na Gazeta do Povo

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