O mundo está vivendo hoje um enorme processo de desmoralização. E não me refiro à queda da “moral e dos bons costumes”, mas a um processo de operação psicológica muito conhecido no meio bélico. Atuando sobre “o moral”, o artifício tem como objetivo enfraquecer o ânimo, a disposição e o estado de espírito das pessoas, por meio de uma série de recursos que atuam diretamente nas mentes e corações. No livro “Propaganda Technique in the World War” (“Técnica de propaganda na Guerra Mundial”), Harold Lasswell, sociólogo, cientista político e teórico da comunicação americano, identifica três vias de implementação da tática. Primeiro, a propaganda busca desviar o foco da indignação coletiva, direcionando a insatisfação popular para elementos distintos, enfraquecendo a unidade. Em segundo lugar, é semeada a dúvida, ou seja, a incerteza sobre convicções e objetivos. No terceiro momento é construído um novo “inimigo”, um bicho-papão que precisa ser neutralizado. Isso pode acontecer num cenário de guerra tradicional, assim como no contexto de guerra híbrida, ou seja, não convencional.
A Segunda Guerra Mundial oferece exemplos categóricos sobre o uso da desmoralização no cenário de guerra convencional. Os alemães, por exemplo, criaram panfletos com o intuito de afetar o engajamento das forças americanas. Um dos materiais trazia a foto de um combatente americano lutando no front europeu, enquanto seu superior vivia tranquilo nos Estados Unidos. O texto ao lado das imagens lembrava ao soldado que ele arriscava seu pescoço por apenas US$ 15 por semana, enquanto seu comandante lucrava 45 dólares para ficar tranquilo em casa. No verso, o material argumentava que o militar não recebia nos finais de semana ou qualquer adicional de hora extra, enquanto seu superior ganhava vinte dólares nos dias úteis, seis quando trabalhava aos sábados, nove aos domingos e mais 10 dólares a cada hora extra trabalhada. O material terminava com a frase: “Quem será que deseja que essa guerra dure? Você ou ele?”. O objetivo consistia em desviar o foco de quem era o real inimigo, gerando frustração e dúvida, levando o americano a questionar se realmente aquilo tudo estava valendo a pena. Em seguida, essa frustração deveria ser direcionada não ao oponente alemão, mas ao superior hierárquico que estava “explorando” o soldado, ao mesmo tempo em que levava uma vida tranquila no conforto de seu lar.
Hoje, o processo é mais sutil, uma vez que a “guerra” não é explícita, os soldados estão “camuflados” e os comandantes geralmente permanecem bem longe dos holofotes. É inegável que a internet permitiu a democratização do conhecimento e o acesso a informações que não poderiam ser conhecidas de outra forma. Com o povo esclarecido, o espírito crítico cresceu, de forma que não é mais qualquer argumento que convence a população. Dessa forma, muitas pessoas começaram a entender melhor a dinâmica do poder, percebendo que são esmagadas pela multidão dos impostos e pelo descaso das autoridades. Isso gerou uma espécie de animosidade global contra muitas figuras em posições de poder. Começou a haver uma insatisfação cada vez mais crescente. Por isso, parece ter sido iniciado um novo processo de desmoralização a nível global, tentando enfraquecer o instrumento de libertação (a internet) e os indivíduos que dela se utilizam para meramente exercer sua liberdade de expressão.
Um dos exemplos mais atuais dessa reação dos poderosos foi um novo documento publicado pelo Fórum Econômico Mundial, lançando uma “Coalizão Global para Segurança Digital”, cujo objetivo é acelerar a cooperação público-privada para “combater conteúdo nocivo online”. Sempre com argumentos muito sofisticados e supostamente direcionados à defesa do bem comum, o projeto busca desenvolver novas regulamentações de segurança online. A ideia é propor medidas coordenadas globalmente, com o objetivo de “reduzir o risco de danos online” e fomentar a “alfabetização em mídia digital”. Talvez agora você entenda o motivo pelo qual esse tema se tornou tão falado nos últimos dias. Na opinião dos autores do documento, longe de propor qualquer cerceamento da liberdade de expressão, o objetivo é proteger o internauta da desinformação, dos discursos violentos e dos crimes contra as crianças. Por isso, defendem a “necessidade urgente” de uma “coordenação global” mais ostensiva para combater a insegurança online.
Essa inciativa soa como uma versão mais requintada do tradicional processo de desmoralização. Seguindo as três vias de implementação elencadas por Harold Lasswell, o método fica mais claro. Primeiro, desviar o foco da indignação coletiva. Os “inimigos” não são mais os poderosos, os controladores, mas o cidadão comum que meramente usufrui de sua liberdade de expressão online. Isso enfraquece a unidade e desencoraja qualquer crítica ao “sistema”. Em segundo lugar, é semeada a dúvida, a incerteza sobre convicções e objetivos. O indivíduo começa a pensar quem seria realmente o responsável pelos problemas do mundo. No fim, o povo começa a fiar-se não pelas então desacreditadas informações da rede, mas pelo discurso consolidado pela grande mídia, geralmente consoante àquele dos poderosos. Assim, passa-se a acreditar piamente que o “Grande Irmão” somente quer o bem de todos. No terceiro momento, é construído o novo “bicho-papão” que precisa ser neutralizado: o internauta que não concorda com a “opinião oficial”.
Neste momento, George Orwell deixa de ser autor para ascender à condição de profeta. Como escreveu no final do “1984”: “Tudo foi resolvido, a perfeição foi alcançada, a luta acabou. Ele definitivamente tinha vencido a si mesmo. Ele amava o Grande Irmão”…
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