A dura luta de padres e pastores para manter a saúde mental na pandemia

A tradição de conferir a alguns santos cultuados pela Igreja Católica o título de “padroeiros” de uma profissão ou causa à qual foram associados em vida remonta aos primeiros séculos do cristianismo e é bastante familiar aos brasileiros. O italiano Camilo de Lellis, por exemplo, não empresta o nome a tantos hospitais à toa: como fundador da Ordem dos Ministros dos Enfermos, é um dos mais solicitados no cuidado com os doentes.

Muito mais desconhecida, porém, é a origem da primeira figura à qual o imaginário cristão creditou o cuidado com uma classe de profissionais cada vez mais em voga, bem como de um público que parece não parar de crescer. Por aqui, é raro quem tenha ouvido falar de santa Dimpna, a protetora dos psicólogos, psiquiatras e dos que padecem de males da saúde mental.

O pouco que se sabe sobre o título que lhe foi atribuído ainda na Idade Média ajuda a compor o retrato da complexa relação entre as enfermidades da mente e a religião ao longo da história. Dimpna teria sido uma princesa irlandesa assassinada pelo próprio pai, um rei cristão que, enlouquecido pelo luto, decidiu desposar a própria filha. Muito antes que termos como depressão, ansiedade ou mesmo o moderníssimo burnout fossem abraçados pela ciência, a melancolia ou a “loucura” eram assunto do alto: o rei, dizia-se, devia estar possuído por um demônio. Antes de ser invocada para salvar doentes, portanto, a memória da jovem mártir serviria para dar esperança aos “possuídos”.

Quatorze séculos separam o desfecho trágico de Dimpna de um mundo no qual empresas e instituições precisam lidar com um número cada vez maior de funcionários afastados por problemas de saúde mental, enquanto o consumo de ansiolíticos e antidepressivos cresce globalmente. Ainda que inúmeros fatores psicobiológicos estejam envolvidos em um diagnóstico, na última década, diversos rankings foram feitos com o objetivo de elencar quais são os profissionais mais suscetíveis a este tipo de problema. E, em muitos deles, figuram os líderes religiosos.

As pressões do ministério

Os estressores aos quais estas figuras estão expostas, especialmente em um país de forte tradição religiosa como o Brasil, são diversos. “São pessoas que dedicam intensamente seus afetos, suas emoções e sua energia no atendimento. Essas profissões geralmente têm um nível de idealização que, inclusive, sustenta a atividade”, explica o psicólogo William Castilho, autor de “O sofrimento psíquico dos presbíteros” (Ed. Vozes).

À frente da paróquia de Nossa Senhora do Bom Parto, no bairro do Tatuapé, em São Paulo, o padre Tarcísio Mesquita avalia o impacto da “idealização”. “O padre, como diz o nome, é um ‘pai’ para a comunidade. Quando nós somos convidados para ir na casa de um fiel, somos recebidos como figuras de autoridade. As vulnerabilidades que os padres têm enquanto pessoas nem sempre são levadas em conta até pelo povo da paróquia”, diz o sacerdote. “Mesmo que haja muita estima e muito carinho, há uma alta expectativa e isso não deixa de ser estressante”, explica. Há que se levar em conta também o fator do celibato: “se um pai de família se preocupa se os filhos vão acolhê-lo na velhice, imagina o padre”, lembra o religioso.

Para o pastor Yago Martins, à frente da Igreja Batista Maanaim, em Fortaleza, a pressão sobre a saúde mental de líderes religiosos se dá principalmente por desafios intrínsecos ao ministério. “Nós estamos lidando com pessoas o tempo inteiro, e geralmente no seu pior. Os casais não me ligam quando está tudo bem – me ligam para que eu esteja na sala quando um dos dois vai confessar uma traição. Eu estou presente na vida dos fiéis sem o distanciamento profissional que é comum a um terapeuta”, explica.

A dedicação exclusiva à igreja e o nascimento da primeira filha, somados à conclusão de um mestrado e publicação de livros – para “A Máfia dos Mendigos”, foi necessário passar um ano dormindo na rua – levaram Martins ao limite do esgotamento. Em vídeo publicado no seu canal do YouTube, há um ano, com mais de 36 mil visualizações, o pastor descreve como enfrentou a Síndrome de Burnout. À reportagem, Martins explica que demorou para pedir ajuda. “Sempre tive muito orgulho de dar conta do trabalho e, quando comecei buscar terapia, foi isso o que me pegou. Um pensamento de ‘justo eu?’. Percebo que impera entre alguns ministros uma recusa a mudar de lado na mesa, virar a pessoa que pede ajuda e que é aconselhada”.

Para o pastor Helder Nozima, da Igreja Reforma e Carisma, a dificuldade para pedir socorro também é resultado do modo de organização de algumas igrejas evangélicas. “A relação do pastor com a igreja é muito mais parecida com o mercado de trabalho do que com a relação dos padres com as paróquias, por exemplo. Como o pastor pode ser demitido, ele tem uma imagem a zelar”, conta.

“As pessoas querem que a gente dê jeito no filho, que ajude a arrumar emprego. Já tive que intervir em briga de marido e mulher à beira da agressão física, já recebi ligação de gente de fora minha igreja ameaçando suicídio naquele instante e pedindo uma palavra de consolo. E, diante disso tudo, fui aconselhado a não procurar ajuda na minha igreja, porque são todos meus ‘inimigos’. Se você admite que tem algum tipo de problema, é como se as pessoas passassem a te ver como um, e não um solucionador. E se a gente procurar um psiquiatra, é pior ainda: você pode ser um endemoniado”, conta Nozima.

Por trás do receio que afasta os líderes de alguns segmentos religiosos dos consultórios terapêuticos, há um longo histórico de atritos entre a psicologia e a fé. Se, de um lado, a religião custou a assumir o caráter intrinsecamente humano das doenças da mente, reduzindo-as a questões morais ou espirituais, por outro, muitas correntes primitivas da psicologia substituíram uma compreensão secular acerca do comportamento humano por mero desprezo pelas crenças no divido.

Em 1907, Sigmund Freud classificou a religião como “a neurose obsessiva universal”, relacionando a grande maioria dos males do homem a questões sexuais. Décadas depois, o americano Burrhur Frederic Skinner, criador do behaviorismo, decretou a “morte do livre arbítrio”. “Com o advento do método científico, a psicologia assumiu um caráter puramente comportamental e passou a se debruçar sobre algo que, na antiguidade, era metafísico”, explica o psicólogo e pastor Aender Borba.

Na contramão da predominância da psicanálise freudiana e do behaviorismo nos consultórios, os meios cristãos – especialmente evangélicos – voltaram esforços para os centros de “aconselhamento bíblico”, que deveriam oferecer respostas estritamente teológicas às questões humanas. O cenário culminou em uma onda anti-psicologia que ainda perdura em alguns seminários.

“Minha impressão é de que o tabu é este: a divisão entre corpo e alma, como se o ser humano fosse uma coisa do pescoço para baixo e outra do pescoço para cima. Há uma preocupação de que a psicologia desvie da moral, ensine que ‘nada é pecado’. Isso impede que os pacientes – inclusive os líderes religiosos – reflitam sobre a origem de comportamentos reais e busquem soluções que estão ao alcance das práticas terapêuticas, sem excluir o caráter religioso ou moral”, diz o terapeuta.

Fazer as pazes com a ciência

Em setembro de 2020, o suicídio de dois padres em um intervalo de três dias (ambos na casa dos 50 anos) chamou a atenção do clero e dos fiéis na França. Na ocasião, o bispo de Troyes, em entrevista, mencionou outros dois casos ocorridos dois anos antes e refletiu sobre a falta de atenção ao clero. “Ao tomar conhecimento do segundo suicídio, pensei imediatamente (…): ‘O que eu não fiz? Será que ouvimos o seu grito?’ (…) O que me leva à pergunta seguinte: não estamos tão preocupados com os problemas de administração da Igreja que já não estamos prestando atenção suficiente às pessoas?”.

Nas redes sociais, sacerdotes brasileiros também debatem a questão. Em 2016, três casos consecutivos de suicídios de padres na casa dos 30 anos foram reportados pela BBC. Calcula-se que, em três anos, foram mais de 20 casos. Só em 2021, sabe-se de três.

No meio evangélico, a morte do pastor Darrin Patrick, da Igreja Seacoast, na Carolina do Sul, autor de livros traduzidos para o português, também levantou a discussão sobre a saúde mental dos presbíteros. Gerou comoção também o suicídio da influenciadora Paige Hilken, esposa do pastor Christopher Hilken, que lutava contra um quadro de ansiedade e depressão severa. O marido optou por falar abertamente sobre a causa da morte, para ajudar a remover o estigma que ainda ronda os religiosos que sofrem com o problema. Ainda que não seja possível cravar que as outras tragédias se deram por falta de atendimento, os casos mencionados trouxeram o tema à tona.

Depois de ser demitido de uma igreja, há cinco anos, o pastor Helder Nozima lutou contra o suicídio. “Eu tinha outros empregos mas, quando você é pastor, tende a ancorar a sua identidade no papel de líder. Comecei a desenvolver um quadro depressivo e só me senti confortável para procurar ajuda quando me mudei para os Estados Unidos, onde havia psicólogos e psiquiatras trabalhando dentro da igreja”, conta.

Mesmo com acompanhamento, a doença evoluiu para um quadro mais grave. “Eu morava no 21º andar de um prédio e, certo dia, disse para minha esposa que estava com vontade de pular. Minha esposa literalmente me pegou pelo braço e me levou para a psicóloga, que me recomendou a internação. Cheguei no hospital com vergonha, foi o momento mais humilhante da minha vida”, narra Nozima. Hoje, o pastor descreve a experiência dolorosa como um “momento de iluminação”:

“Eu saí do hospital e marquei a consulta com a psiquiatra porque percebi que, se não abrisse mão do orgulho, eu de fato acabaria morrendo. Um ano depois, estava muito melhor. Minha fé pode ser suficiente para me dar a vida eterna, mas ela não foi suficiente para cuidar da minha saúde. Para isso, eu tive que fazer as pazes com a ciência”.

Os desafios extra da pandemia

O desafio de conciliar fé e ciência frente à pandemia do coronavírus alcança também a saúde mental dos religiosos: enquanto parte desta população, pertencente aos grupos de risco, foi apartada de suas celebrações e atividades rotineiras – no caso dos celibatários, sem sequer contar com apoio da família -, outra parte teve que se desdobrar em atendimentos hospitalares, cerimônias digitais e aconselhamentos diante de situações de desemprego, doença e luto.

Para o teólogo e cientista da religião Roberto Pereira Miguel, capelão no Moffitt Cancer Center, na Flórida, o apelo ao autocuidado entre religiosos é imperativo – especialmente em tempos de exposição coletiva à finitude. “No meu trabalho, a exposição ao sofrimento é constante. Quando comecei a exercê-lo em tempo integral, percebi que precisava estar no melhor da minha forma emocional, física e espiritual, porque levo tudo isso para o quarto do paciente. Diria até que, para nós, líderes, cuidar de nós mesmos é um princípio ético”.

O padre José Wilson, capelão do Hospital das Clínicas em São Paulo, revezou-se entre várias instituições para substituir colegas adoecidos ou isolados. “Uma coisa positiva foi que passamos a conversar mais a saúde emocional. Passamos a cuidar mais de nós mesmos para poder cuidar do outro”, diz o sacerdote, que descreve o esforço exigido pela pandemia e a mudança de hábitos para dar conta da situação.

“À medida que eu fui assistindo os doentes acometidos pela Covid, eu senti a necessidade de me preparar. Tive que me informar, desviar das fake news e criar um plano de contingência pastoral. Além disso, passei a reservar um tempinho a mais para me abastecer. A gente não pode não dar o que não tem”. O padre reforça também a importância de uma rotina de exercícios: “fui hipertenso e diabético e, antes da pandemia, mudei minha rotina e alimentação. Se não estivesse em forma, não teria conseguido trabalhar na linha de frente. Os padres precisam entender que isso não é vaidade”.

Frente ao cenário atual, o arcebispo de São Paulo, dom Odilo Scherer, vem insistindo que os sacerdotes estejam atentos aos irmãos que vivem isolados ou que apresentam sintomas de desgaste emocional. “O assunto passou a ser frequente nos nossos grupos. Somos incentivados a desenvolver uma visão mais humana e integral dos religiosos diante da pandemia”, relata o padre Tarcísio. No meio evangélico, iniciativas como o Ministério Oásis – com sede em Anápolis, em Goiânia, e  Fortaleza, no Ceará – buscam oferecer apoio psicológico aos presbíteros.

Em tempos doentes, cuidar dos que cuidam do espírito é um serviço prestado à comunidade. Não por acaso, no clássico “Cristianismo Puro e Simples”, C. S. Lewis dedica um capítulo inteiro ao diálogo entre a moralidade cristã e a psicologia (à época da publicação, entendida apenas como “psicanálise”) e delibera: “O mau estado do material psicológico não é um pecado, mas sim uma doença. Não é motivo para arrependimento, mas para cura. E, a propósito, isso é muito importante”.

Confira a matéria na Gazeta do Povo

Be the first to comment on "A dura luta de padres e pastores para manter a saúde mental na pandemia"

Leave a comment

Your email address will not be published.


*