Com tantos problemas nacionais mais urgentes para debater, que necessitam de propostas reais — como o desemprego, a inflação e os efeitos de longo prazo, na saúde pública, na educação e na economia, da pandemia de covid-19 —, eis que o ex-presidente Lula resolveu anunciar na semana passada, em mais de uma ocasião, que uma de suas prioridades caso venha a ser eleito presidente em 2022 será “regulamentar os meios de comunicação”. Já vimos esse filme antes. Chamava-se “Controle Social da Mídia” e seus protagonistas eram figuras como o então presidente do PT, Rui Falcão, e o então ministro das Comunicações de Lula, Franklin Martins.
A Gazeta do Povo foi um dos primeiros veículos a dar o devido destaque às recentes declarações de Lula sobre o assunto. Seguiram-se muitas críticas em outros órgãos de imprensa e nas redes sociais de jornalistas e analistas políticos de diferentes matizes políticos — mesmo entre aqueles que nos últimos tempos têm se dedicado mais a bater no governo de Jair Bolsonaro e acabaram sendo mais condescendentes com Lula.
Teve até quem dissesse que Lula havia cometido um erro de cálculo, levantando a lebre de uma agenda que reavivaria as desconfianças do centro político em relação às suas reais intenções no poder. Em vez de investir na imagem de moderação, o pré-candidato petista estaria escancarando o seu lado mais radical, o que seria prejudicial para ele nas eleições.
Que nada. Lula não jogou holofote sobre o tema por acaso, sem querer e sem saber das consequências. Ele sabe exatamente o que pretende com isso. Assim como colheu críticas, também agitou, nas redes sociais, os perfis petistas e de “intelectuais” de esquerda a fazer postagens com argumentos favoráveis à sua proposta de regular a imprensa.
Todos argumentos, claro, a respeito de como isso é necessário para “democratizar” a imprensa, evitar os “monopólios dos grandes grupos de mídia” e evitar “abusos” como a “manipulação das informações” para influenciar a opinião pública.
Conversa para boi dormir. A verdade é que Lula e os simpatizantes do PT nunca engoliram o fato de que a imprensa não deu trégua aos desmandos e aos escândalos de corrupção registrados em seus governos.
De fato há uma lacuna na regulamentação de meios de comunicação que dependem de concessão pública, como rádio e TV. Mas os planos petistas vão além disso. O que se quer é realmente criar algum mecanismo para colocar cabresto no conteúdo jornalístico em diversas plataformas — e não apenas em radiodifusão. O próprio Lula falou, por exemplo, em regulação da internet.
“Controle Social da Mídia – A Revanche” é o nome do filme a que estamos assistindo agora. Trata-se da continuação de uma história iniciada no primeiro governo Lula.
Na semana passada, Lula falou em “marco regulatório para a comunicação” e não usou a expressão “controle social da mídia”, mas sabe-se que é a isso que ele se refere porque citou Franklin Martins e as discussões sobre a imprensa que ocorreram em seus dois mandatos presidenciais.
Vejamos o que se dizia em 2010 sobre o assunto. Em outubro de 2010, durante uma viagem ao Reino Unido para “estudar” o modelo britânico de regulação da mídia, Martins disse que “a liberdade de imprensa não garante que a imprensa seja boa”. Dois meses depois, ele afirmou que “regulação de conteúdo não é censura”.
A essa altura, no final do governo Lula, já não se falava tão abertamente em controle social da mídia, por causa das carga negativa que a expressão adquiriu depois que ele apresentou ao Congresso, em 2004, a proposta para a criação do Conselho Federal de Jornalismo (CFJ), com poderes para “orientar, disciplinar e fiscalizar” a atividade. Muitos perceberam as reais intenções antidemocráticas da iniciativa e, diante da repercussão, o governo retirou a proposta.
Lula encerrou o mandato sem submeter ao Congresso o projeto de Martins para regular a imprensa (fato do qual se arrepende, segundo afirmou semana passada). O PT tentou pressionar a sucessora, Dilma Rousseff, a fazê-lo. E, justiça seja feita, ela se recusou.
No 4º Congresso do PT, em setembro de 2011, o assunto voltou à baila com força. Em documento apresentado à Executiva Nacional do partido, dizia-se que a regulação era necessária porque parte da imprensa havia se engajado em uma “conspiração que tentou derrubar, sem êxito, o PT e Lula”. O texto deixava claro que, por trás da aparente boa intenção de “democratizar a mídia” sempre esteve o objetivo de impor limites às críticas e às denúncias contra o governo lulista.
Paulo Bernardo, ministro das Comunicações, avisou que Dilma Rousseff se opunha ao projeto: “É insensato. Lutamos para escrever na Constituição que não pode haver controle prévio e censura.”
Ou seja, a divergência dentro do próprio PT sobre o assunto deixava evidente que a proposta de regulação da mídia de Lula e Martins tinha, sim, como finalidade algum controle sobre conteúdo e estava diretamente ligada à insatisfação com a postura combativa da imprensa em relação aos governos petistas.
Em 2014, Lula e seus apoiadores voltaram ao tema. Surgiu um fórum de esquerda defendendo, entre outras coisas, a criação de um Conselho Nacional de Comunicação, ressuscitando a ideia, enterrada em 2004, do Conselho Federal de Jornalismo. Em entrevista a blogueiros de esquerda, Lula disse na ocasião que perdeu tempo ao não fazer o “marco regulatório da comunicação” e, como exemplo de situações que o projeto poderia evitar, citou o “tratamento à Dilma” pela imprensa, que ele classificava como “de falta de respeito e de compromisso com a verdade”.
As declarações recentes de Lula vão pelo mesmo caminho. A regulação da mídia é apresentada como algo necessário para aprimorar a democracia, mas logo ele deixa claro que a motivação é impedir a repetição de supostas injustiças cometidas pela imprensa contra ele. “Aqui eu vi o que foi feito comigo”, disse Lula.
Ao retomar o tema do controle social da mídia, sob o eufemismo do “marco regulatório da comunicação”, Lula cumpre dois objetivos de olho em 2022.
Primeiro, agita e mobiliza sua base de apoiadores em torno de uma causa com a qual eles concordam integralmente, culpabilizando a imprensa pelo ocaso do PT e pelos problemas que seu líder teve com a Justiça.
Segundo, antecipa o discurso de vítima que ele vai adotar durante a campanha, quando as críticas da imprensa se intensificarão, não se limitando apenas ao seu maior adversário, o presidente Jair Bolsonaro.
De resto, é algo que realmente está em seu projeto de governo. Sempre esteve.
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