Ontem mesmo, eu e um amigo conversávamos sobre o papel ridículo dos escritores brasileiros na arena pública. Aquela busca que motivava escritores tão diversos quanto Guimarães Rosa, Jorge Amado e Fernando Sabino deu lugar a um espírito revolucionário cego e um ressentimento cru, daqueles que se expressam por insultos sem quaisquer preocupações estéticas ou pretensões de imortalidade.
Prova disso é uma crônica que acabei de ler, publicada num dos maiores jornais do país e composta com muito mais fel do que talento por alguém que encarna como poucos o papel do escritor militante. É um, vá lá, cronista (muitas aspas, por favor) que, semana após semana, tenta desesperadamente compensar a falta de talento com posicionamentos políticos sempre muito bem demarcados. Trata-se um panfleto ambulante, pois.
Já na primeira frase de um texto que reclama da pluralidade de ideias do jornal e que não tem nenhuma vergonha de clamar por censura aos que pensam diferente dele, Antônio Prata chama o procurador-geral Augusto Aras de “alma sebosa”. E, se você levou um susto ao ler aqui o nome do (aspas à décima potência) cronista, saiba que pensei muito antes de dar nome aos bois. Se o faço, é por ver nobreza no reconhecimento de que o outro existe. Ainda que, no caso de Prata, exista apenas para disseminar ideias repugnantes usando, para tanto, o espaço público que herdou do pai.
Além de um clichê daqueles bem vagabundos, que você encontra em meio a guimbas de cigarro e preservativos usados na sarjeta da linguagem, “alma sebosa” é um insulto que, independentemente do objeto a que se destina, expressa bem a presunção adolescente de um escritor que há muito abdicou de contemplar a alma humana a fim de explorá-la para fins criativos. Se vivemos mesmo uma guerra cultural, o aposto insultuoso gratuitamente inserido na frase é o equivalente a atirar nas costas do inimigo desarmado.
Como e por que se apequenaram a tal ponto meus colegas escritores? Posso pensar em consequências não-intencionais das leis de incentivo à cultura, que deram origem ao escritor de edital – aquele sem talento nem obra, mas que vive de frequentar feiras literárias, recebendo para isso um cachê desproporcional à sua relevância. Posso pensar também em algo mais simples, isto é, no desespero de perceber que sua obra é desprezível numa sociedade que privilegia o escritor, não a escrita.
Mas pensar essas coisas é procurar causas externas para uma crise que é íntima. Algo que está claro no estilo panfletário e no uso de expressões dogmáticas, deterministas e sentenciadoras que marcam essa escola literária que chamarei aqui de militantismo. Já há algumas décadas, os homens que alcançaram a condição de escritor profissional, sejam eles os escritores de edital já mencionados ou então os panfletários pagos não para contemplar, e sim para mudar o mundo, perderam o hábito simples, mas muito instrutivo, de se olharem no espelho.
O que, aqui, soa como um paradoxo simbólico, uma vez que a marca do narcisista é a obsessão pela própria imagem – que acaba por afogá-lo. Quando Prata sugere que, ao contrário de seus colegas “de direita”, está “do lado certo da história” (e fico pasmo ao perceber que alguém é capaz de escrever algo assim sem nenhum constrangimento), ele está vivendo para o mundo e esperando receber deste mundo uma reação positiva. O espelho, portanto, reflete uma imagem falsa, coletiva, predatória. Do tipo que sai à caça e devora almas – sejam elas sebosas ou não.
O que é compreensível – para não dizer tentador – no momento em que leitores, obcecados pela política partidária, esse pontinho insignificante na Eternidade, reclamam quando se propõe algum tipo de introspecção. Só a realidade externa, essa falseada por inúmeras camadas de interpretação, parece importar hoje em dia. Aqui convém citar Millôr: e na alminha, não vai nada?
Se Augusto Aras – personagem dessa realidade externa absolutamente pequena e transitória – tem ou não a alma sebosa é algo que não importaria a um escritor digno. Assim como não importaria ao verdadeiro artista se dizer “do lado certo da história”. O que me leva, já nos estertores deste texto, a me perguntar que outros critérios que não a capacidade de escrever esses panfletos que atiçam as massas levamos em conta na hora de chamarmos ao palco os atores deste debate insano.
Mas esse é um assunto para outro texto que provavelmente não será escrito. Porque, a despeito de uma ou outra reprimenda aqui e ali, ainda não perdi meu norte e estou mais preocupado com a imagem necessariamente falha que vejo no espelho. Todo. Santo. Dia.
Be the first to comment on "Um bom disfarce para a falta de talento: a militância"