Supremo transformou em hábito a prática da ilegalidade

Brasilia 24 10 2019 O ministro Alexandre de Moraes, durante abertura do terceiro dia de julgamento, sobre a validade da prisão em segunda instancia no Supremo Tribunal Federal (STF) Fabio Rodrigues Pozzebom/Ag Brasil

Não há nenhuma atividade pública de maior futuro no Brasil de hoje do que a prática aberta, agressiva e continuada da ilegalidade — desde, é claro, que você seja um dos onze ministros do Supremo Tribunal Federal (se você não é, não se recomenda tentar; só dá certo ali.) As decisões ilegais, por mais escandalosas que sejam, recebem apoio integral dos companheiros de plenário.

A classe política, a mídia e tudo o que existe das altas até as baixas elites dão o mais devoto apoio às ilegalidades; aceitam tudo como uma espécie de princípio religioso. Os juristas que se opõem — com a razão, a lógica e o texto da lei — aos atos ilegais são ignorados. O governo da República e o restante do aparelho público aceitam passivamente as agressões.

Mais que tudo, não há consequência nenhuma para o autor dos atentados ao sistema legal: assina um papel, todo mundo obedece e fica por isso mesmo, com o claro aviso de que outra bula totalitária pode vir a qualquer momento, contra qualquer um dos 220 milhões de cidadãos brasileiros.

A prisão do presidente do PTB, Roberto Jefferson, por ordem do ministro Alexandre de Moraes, é um escândalo. Seria motivo de protestos apaixonados dos movimentos de “direitos humanos” ao redor do mundo, se o preso não fosse, como ele, um político de direita e não apoiasse o governo “fascista” do seu país (só no Brasil de 2021 o sujeito é a favor do governo e acaba preso).

Na vida como ela é nesse nosso país em que só um dos três poderes realmente manda, a prisão não foi vista como um ato grosseiramente ilegal — foi vista, ao contrário, como um gesto heroico e corajosíssimo de defesa da democracia. Aqui e ali os defensores da prisão até admitem, com relutância, que a “letra exata” da lei talvez não tenha sido cumprida em todos os seus mínimos detalhes.

Mas o que são esses pormenores legais diante da imensa necessidade de defender a pátria de “atos antidemocráticos”? Os valores da “democracia”, pensam eles, estão acima de qualquer consideração. A lei? Ora, a lei.

Não há absolutamente nada de legal na prisão do ex-deputado Jefferson. A lei diz que nenhum cidadão pode ser preso a não ser em flagrante delito; qual o crime que Jefferson estava cometendo na hora em que foi interrompido pela polícia do ministro Moraes e jogado num camburão? Ele não apenas não praticou crime nenhum; o que fez foi dizer um monte de barbaridades contra o STF, os seus ministros e a CPI “da Covid”. Mas nem isso o preso estava fazendo; tinha falado essas coisas alguns dias antes de ser preso. Flagrante? Onde?

Para isso o ministro Moares inventou um expediente, que já utilizou em outras prisões ilegais: o “flagrante continuado”, ou permanente. Segundo essa aberração, que a elite jurídico-liberal brasileira engole sem dar um pio, falar mal das “instituições” é um ato que não cessa nunca; o sujeito que falou alguma coisa está falando para sempre.

O presidente do PTB é acusado de praticar atos contra a democracia. Quais? O decreto de prisão não aponta nenhum. Jefferson, claro, fala coisas horríveis dos ministros, mas isso é tudo o que faz — falar. Está simplesmente exercendo o seu direito à livre manifestação. Pode, é claro, ser denunciado pelos crimes de injúria e difamação, a qualquer momento, por quem se sente ofendido. Mas nenhum desses delitos permite a prisão de ninguém, muito menos em flagrante; é por isso, aliás, que não foi acusado de injúria ou difamação, e sim de agir “contra a democracia”.

Jefferson não está organizando nenhum grupo armado para derrubar a ordem legal e fechar as instituições, ou qualquer coisa parecida com isso. No máximo, está montando manifestações de protesto contra o STF. E daí?

O resto da história é um desastre do mesmo tamanho. Pela lei, só o Ministério Público tem o direito de acusar alguém por um crime nesse país; é ele e ninguém mais. Mas Alexandre de Moraes deu esse direito a si próprio. Mais: não apenas acusa, mas também prende.

Imaginem um juiz de primeira instância ou um desembargador de Tribunal Estadual de Justiça que decidisse abrir um inquérito por conta própria. Deixa o MP de fora, chama um delegado e meia dúzia de investigadores de polícia ao seu gabinete, dá ordens diretas a eles, sem passar por qualquer hierarquia, e manda prender um cidadão que não está cometendo nenhum crime em flagrante. Vão dizer o quê?

Pois, na prática, é isso o que Alexandre de Moraes está fazendo neste preciso momento. Pior ainda: no caso de Jefferson, o MP, quando se manifestou, foi contra a prisão.

Não importa quem Roberto Jefferson é — não importa a mínima. Ele pode ser o político mais detestável do país. Mas isso não tira dele nenhum direito; não pode, pelo fato de ser de direita, ter um passado penal e apoiar o presidente legal do Brasil, ser tratado como uma exceção e ficar fora da proteção que a lei dá a todos os cidadãos. Não pode, simplesmente — por mais que os defensores da “democracia” se sintam ameaçados por ele. A lei é para todo mundo, nos deveres e nos direitos.

Inevitavelmente, o que fica desse episódio é a seguinte impressão: o STF prende Roberto Jefferson, mas solta traficantes de droga de primeiro grau, anula os processos criminais contra Lula e mantém em liberdade plena os mais ofensivos corruptos da vida pública brasileira. Como ter respeito por um tribunal que age assim?

Quando se aponta essas realidades, os ministros se sentem injustiçados, dizem que fazem tudo dentro da lei e que o entendimento da ciência do Direito não é para todos. Pode ser. Mas a sua conduta torna muito difícil que a população brasileira tenha uma imagem diferente dessa aí.

Confira a matéria na Gazeta do Povo

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