Fiquei intrigado, por alguns momentos, quando me deparei com essa postagem do blog de humor “O Sensacionalista”, ontem à noite: “CPI vai pedir indiciamento de Bolsonaro por bolsonarismo”.
Também ontem, a manchete do portal de um grande jornal era, acreditem: “CPI decide pedir indiciamento de Bolsonaro por charlatanismo e curandeirismo”:
De forma seguramente involuntária, a piada e a notícia revelam duas faces tragicômicas da sociopatia que contaminou o país: em primeiro lugar, o ridículo a que chegou a CPI da Covid-19 em seu esforço diário de sabotar o Governo a qualquer preço; em segundo lugar, a má-fé de todos os envolvidos na mal disfarçada torcida pelo caos.
O mais patético é que a segunda manchete poderia ser do “Sensacionalista”, e a primeira do grande jornal. Sim, é este o ponto a que chegamos: o jornalismo que se pratica hoje no país é involuntariamente cômico, enquanto o humor que se pratica pode ser, ainda que sem querer, tragicamente sério, porque revelador da grave doença social que nos acomete: o ódio político, tema do meu último artigo.
É claro que, no caso em questão, o jornal apenas refletiu o humor involuntário da CPI. Mas, se hoje não dá para saber quando uma notícia é falsa ou verdadeira, não é porque as fake news espalhadas nas redes sociais se passam por notícias sérias, mas, justamente, porque jornais outrora sérios passaram a emular as redes sociais, abrindo mão de perseguir a verdade para aderir a uma agenda ideológica que inclui o uso deliberado de fake news como método.
A consequência é que cada leitor escolhe acreditar na notícia que bem lhe aprouver, ou seja, aquela que se adequar às suas convicções, venha ela de um grande jornal ou de um blog nanico. Ora, se não existe mais verdade objetiva, eu escolho a verdade que eu quiser.
Mas, quando se abandona qualquer compromisso com a isenção e a objetividade para abraçar causas ideológicas, bandeiras partidárias e valores estranhos ao leitor comum, não se pode reclamar da acelerada perda de credibilidade junto a esse leitor, o que vem acontecendo a olhos vistos. Aderir ao pensamento único é o prenúncio da morte do jornalismo. Nada de bom pode vir daí.
Seguramente, a intenção do redator da piada foi apoiar a CPI e atacar Bolsonaro. Mas não deu muito certo como humor. Por quê? Porque, como todos os eleitores que votaram em Fernando Haddad na última eleição – e perderam – “O Sensacionalista” nega, por meio do deboche, o simples direito de existência a um movimento político que não se alinhe ao lulopetismo.
Mesmo que tenha ganhado a eleição, o fato de um político não ser lulista, para eles, já é um crime inafiançável. Entendi por que fiquei intrigado por alguns instantes com a postagem do “Sensacionalista” (blog que, aliás, se declara “isento de verdade”, outra piada involuntária): foi porque, no fundo, não é uma piada, mas a expressão de um desejo real de muitos “democratas”: condenar Bolsonaro não por qualquer crime eventualmente cometido, mas por… bolsonarismo.
Já a última decisão da CPI só deu certo como humor. Se, após meses de trabalho e dezenas de oitivas, os incansáveis parlamentares da oposição foram incapazes de fundamentar uma denúncia mais grave que “charlatanismo” e “curandeirismo”, é porque o objetivo não é apurar a verdade, mas atrapalhar o governo. Como a piada, a CPI parte da premissa de que o Bolsonaro é culpado. De quê? Não importa, inventem qualquer coisa aí, ele é culpado e pronto.
Divulgada de forma pretensamente cômica ou pretensamente séria, a conclusão é a mesma: o crime de Bolsonaro é ser Bolsonaro.
Uma premissa básica da democracia é aceitar a vontade da maioria, respeitar a alternância no poder e reconhecer o direito do adversário à existência – sobretudo se ele foi vencedor nas urnas
A sentença da CPI já estava dada antes mesmo de darem início aos trabalhos. Já para o blog de humor, o que está previamente condenado e merece execração é o bolsonarismo em si, não por ser um conjunto de práticas e valores dos quais se pode legitimamente discordar, mas com os quais se deve democraticamente conviver, mas simplesmente por existir.
Isso porque parece insuportável para todos aqueles que votaram em Haddad e agora sonham com a volta de Lula conceber um Brasil que não seja governado por eles. Preferem ver o país destruído a torcer para o país dar certo com outro grupo no poder.
Bolsonaro é apenas a bola da vez, mas qualquer outro presidente “não-alinhado” passaria pelo mesmo processo de desqualificação e sabotagem permanentes. Como se fossem personagens de “Game of Thrones”, Michel Temer era o “Usurpador”, Bolsonaro é o “Genocida” (já Dilma era a “Coração Valente”). Se o próximo presidente que entrar for da terceira via, logo inventarão um epíteto similar para ele.
Que graça esses leitores/eleitores achariam de uma piada que dissesse, na época do processo de impeachment de Dilma Rousseff: “Dilma sofre impeachment por ser lulista”? Nenhuma, e não teria graça mesmo.
Mas essa piada não foi feita, e Dilma não foi – nem poderia ser – afastada do cargo por integrar um determinado campo ou idolatrar determinado político, mas por ter cometido crimes de responsabilidade reconhecidos pelos poderes Judiciário e Legislativo. Ser lulista era, por óbvio, um direito dela, como ser bolsonarista deveria ser um direito de Bolsonaro e seus eleitores. Mas não é: é um crime. Estranha democracia de um lado só.
Ninguém é obrigado a gostar de Lula ou Dilma, nem, por óbvio, de Bolsonaro. As pessoas têm até mesmo o direito de odiá-los: procurando bem, a gente encontra motivos para odiar qualquer político. Mas uma premissa básica da democracia é aceitar a vontade da maioria, respeitar a alternância no poder e reconhecer o direito do outro à existência – sobretudo se ele foi vencedor nas urnas.
Dia sim dia não, no final de sua agonia Dilma declarava que tinha sido eleita por 54 milhões de votos. Ela queria, com isso, chamar a atenção para o fato de que, em uma democracia, é a maioria do povo quem decide quem vai governar o país, e o campo derrotado deve lidar com isso de forma civilizada. Não basta odiar um presidente para afastá-lo do poder. Neste ponto, ela estava certa.
Ora, Bolsonaro foi eleito com quase 58 milhões de votos em 2018. Não se pode, nem parece inteligente, estapear diariamente a cara desse eleitorado da forma como vem sendo feito pelo Judiciário e pela grande mídia (até porque não foi este o tratamento dado a governos anteriores, mesmo quando saqueavam o país). Porque a vontade da maioria não pode valer só quando a maioria vota como a gente quer.
Isso deveria ser óbvio, mas parece que não é, então vou repetir: a vontade da maioria não pode valer só quando a maioria vota como a gente quer. Ela tem que valer e ser respeitada sempre, e especialmente quando é nosso adversário que vence, da mesma forma que, como disse Rosa Luxemburgo, a liberdade de expressão é sempre a liberdade de quem pensa de forma diferente de nós: O resto é censura.
Continuo amanhã.
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