Inquérito administrativo e notícia-crime: as medidas do TSE contra Bolsonaro são legais?

Cerimônia de diplomação do presidente eleito, Jair Bolsonaro, no Tribunal Superior Eleitoral (TSE).

A mais nova ofensiva do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) contra Jair Bolsonaro chamou a atenção da comunidade jurídica pelo ineditismo: pela primeira vez, a Corte abriu um inquérito administrativo contra o presidente da República e ainda pediu ao Supremo Tribunal Federal (STF) para inclui-lo entre os alvos do inquérito das “fake news”, aberto em 2019 para apurar ofensas e ameaças aos ministros.

Gazeta do Povo consultou advogados que acompanham o caso para entender a legalidade desses atos, levando-se em conta, sobretudo, os diversos questionamentos sobre a regularidade da investigação do STF, aberta de ofício há dois anos, sem participação efetiva do Ministério Público e conduzido com mão de ferro pelo ministro Alexandre de Moraes. Nesta quarta-feira (4), o ministro aceitou a notícia-crime do TSE e incluiu o presidente como investigado no inquérito.

Quanto ao inquérito administrativo do TSE, a avaliação geral é de que ele tem embasamento legal mais sólido que o inquérito das fake news que tramita no Supremo.

Enquanto este último foi baseado exclusivamente num artigo do Regimento Interno da Suprema Corte — que permite a instauração para apurar infração ocorrida nas dependências do tribunal —, o novo inquérito do TSE está previsto num leque mais amplo de normas.

Ex-ministro do TSE, o advogado Henrique Neves, cita, por exemplo, dois artigos da Lei das Inelegibilidades, que dão ao corregedor-geral da Justiça Eleitoral o poder de investigar abuso do poder econômico ou político e uso indevido meios de comunicação social em benefício de candidato ou de partido político.

Diz o artigo 19 da Lei 64, de 1990: “as transgressões pertinentes à origem de valores pecuniários, abuso do poder econômico ou político, em detrimento da liberdade de voto, serão apuradas mediante investigações jurisdicionais realizadas pelo Corregedor-Geral”.

Já o artigo 22 segue linha semelhante: “qualquer partido político, coligação, candidato ou Ministério Público Eleitoral poderá representar à Justiça Eleitoral, diretamente ao Corregedor-Geral ou Regional, relatando fatos e indicando provas, indícios e circunstâncias e pedir abertura de investigação judicial para apurar uso indevido, desvio ou abuso do poder econômico ou do poder de autoridade, ou utilização indevida de veículos ou meios de comunicação social, em benefício de candidato ou de partido político”.

A figura do corregedor é uma diferença crucial. Ele não existe no STF, mas está presente no TSE justamente para investigar ilícitos eleitorais. O Regimento da Corte Eleitoral diz que cabe a ele, que é um dos ministros, zelar pela fiel execução das leis, tomar providências para sanar ou evitar abusos e irregularidades e requisitar a colaboração de autoridades para essa missão.

“Não tem a mesma discussão que existe no Supremo, onde o inquérito é baseado em poderes implícitos, normas regimentais. Tem artigos na lei que dizem que o corregedor pode investigar qualquer abuso ou fraude”, explicou Henrique Neves à reportagem.

No STF, o inquérito das fake news foi questionado pela designação sem sorteio de Alexandre de Moraes como relator. Ao contrário do corregedor do TSE, o relator de um inquérito no Supremo não pode, por conta própria, determinar diligências de uma investigação, como buscas e apreensões e quebras de sigilo.

Em geral, essas medidas são pedidas pelo Ministério Público e pela polícia, cabendo ao relator somente autorizá-las se verificar que elas são necessárias e atendem a requisitos legais. No caso de Moraes, a maioria dessas diligências são pedidas por um grupo de policiais federais de sua confiança, designados por ele para tocar a investigação.

“Que existe a possibilidade de a Corregedoria fazer uma investigação preliminar sobre os fatos, não tenho dúvida. É diferente do inquérito das fake news. Um é feito pelo corregedor da Justiça Eleitoral, outro é o inquérito das fake news, em que a vítima, que é o ministro do Supremo, vai ser relator da investigação. O inquérito administrativo é diferente, para averiguar o que está sendo feito contra o sistema democrático e as eleições”, diz Danyelle Galvão, criminalista e doutora em processo penal pela USP.

Participação do Ministério Público

Ao contrário do que ocorreu no inquérito das fake news, desta vez, ao menos até este momento, o Ministério Público não manifestou oposição ao inquérito aberto no TSE. A Gazeta do Povo apurou que a iniciativa de abrir a investigação, que partiu do corregedor-geral, Luís Felipe Salomão, pegou a Procuradoria-Geral da República (PGR) de surpresa.

Mesmo assim, nada indica que haverá contestação. Quem atua em nome do órgão no TSE é o vice-procurador-geral eleitoral, Paulo Gonet Branco, recém-empossado no cargo. Ele ainda deve aguardar o inquérito chegar em suas mãos para avaliar de que modo o MP vai participar da investigação.

Na sessão da última segunda-feira (2), quando os ministros aprovaram por unanimidade a abertura do inquérito, sem tocar no assunto, Paulo Gonet fez uma breve manifestação. Apresentou-se, cobriu o tribunal de elogios e falou sobre o papel do MP Eleitoral.

“O Ministério Público também está pronto para reagir, por todos os meios próprios, contra os excessos ruinosos ao funcionamento das instituições eleitorais e à normalidade constitucional”, disse na sessão.

Analista do Tribunal Regional Eleitoral do Maranhão (TRE-MA) e secretário-geral da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político (Abradep), Volgane Carvalho diz que o MP vai poder participar da investigação, não como protagonista, mas para fiscalizar a legalidade dos atos.

Ele diz que a abertura do inquérito, mesmo sem iniciativa do MP, não configura abuso de poder. “Está de acordo com as normas regimentais que estão postas e tem embasamento sólido. E como a investigação, por si só, não tem possibilidade de gerar punição, não vejo problema”, diz Volgane, que é mestre em direito eleitoral pela PUC do Rio Grande do Sul.

Como mostrou nesta terça-feira (3) a Gazeta do Povoa investigação serve somente para a coleta de provas de possível cometimento de atos ilícitos eleitorais, por Bolsonaro, nas acusações não comprovadas de fraude no sistema eletrônico de votação. Eventuais punições ao presidente na seara eleitoral — como multas e mesmo a inelegibilidade — só são possíveis dentro de ações separadas, que teriam que ser apresentadas a partir de julho do ano que vem, depois que ele for oficializado como candidato à reeleição.

Membro fundador da Abradep, o advogado eleitoralista Guilherme Barcelos defende a instauração do inquérito, por entender que é uma forma de defesa do próprio TSE, que, segundo ele, é quem garante a legitimidade do processo eleitoral. Ele diz, no entanto, ver com “certa inquietação” a abertura da investigação sem consulta ao MP.

“Não quer dizer que ações não deveriam ser tomadas ou, mais claramente, que a Justiça Eleitoral e o sistema de votação não necessitassem de uma defesa mais contundente. Porém, há mecanismos outros que poderiam ter sido acionados, pela Justiça Eleitoral ou por outros atores. Por exemplo: requisição de instauração de procedimento preparatório eleitoral direcionada ao Ministério Público Eleitoral, representação por propaganda eleitoral antecipada, etc. O próprio Código de Processo Civil possui um complexo sistema de tutelas inibitórias, plenamente aplicável ao processo judicial eleitoral. Há alternativas, várias alternativas”, diz Barcelos.

“Me preocupa, portanto, essa iniciativa, sobretudo porque, amanhã ou depois, o TSE poderá estar julgando demandas instruídas com elementos probatórios colhidos por ele próprio, como que a partir de uma espécie de confusão entre acusação e juiz”, conclui.

Bolsonaro no inquérito das fake news

Apesar de questionarem severamente a existência e a forma de condução do inquérito das fake news, advogados consultados pela reportagem não apontaram problemas na notícia-crime enviada pelo TSE a Alexandre de Moraes para incluir Bolsonaro na investigação criminal, que corre no Supremo.

“Notícia-crime é a mesma coisa que boletim de ocorrência, não vincula a autoridade que vai receber. O que o TSE fez foi comunicar a existência de fatos, que podem ser criminosos para que o STF eventualmente apure. Em nenhum momento, o ministro Luís Roberto Barroso faz um julgamento que os fatos são criminosos ou que o Bolsonaro tem responsabilidade. Ele está comunicando sobre novos acontecimentos”, diz a criminalista Danyelle Galvão.

No documento, de apenas uma página, Barroso apenas encaminhou a Moraes o link da transmissão ao vivo de Bolsonaro da última quinta-feira (29), na qual o presidente apresentou uma série de suspeitas de fraude nas urnas eletrônicas já desmentidas pelo próprio TSE. Ele admitiu não ter provas, mostrando somente vídeos com indícios que circulam há anos na internet.

Na live, Bolsonaro ainda acusou Barroso de interferir no processo legislativo para que a Câmara rejeite o voto impresso. Em junho, o ministro foi à Câmara debater o assunto a convite dos deputados da comissão especial que analisa a proposta sobre o assunto.

“O encaminhamento é certíssimo. Talvez tenha sido o que faltou lá atrás na abertura do inquérito: o ofendido pedir a investigação sobre essa ofensa”, diz Marilda Silveira, advogada com larga experiência no TSE.

Ela ressalta, no entanto, que é possível à defesa de Bolsonaro questionar a inclusão do caso no inquérito das fake news, conduzida por Moraes, e pedir a livre distribuição para que outro ministro sorteado investigue.

“Essa investigação é muito específica, para apurar ofensas ao TSE relacionadas à prática de fraude nas urnas eletrônicas. Pode-se argumentar que não tem a ver com fake news e a ameaças à instituição do STF, objeto do inquérito das fake news”, diz Marilda Silveira.

“Estratégia ingênua”

Advogado do PSDB em eleições passadas, Ricardo Penteado tem uma visão mais crítica da iniciativa do TSE. Do ponto de vista técnico, ele considera que a Corregedoria Eleitoral, quando investiga abuso de poder, o objetivo não é defender a Justiça Eleitoral, mas reequilibrar uma disputa eleitoral em que um dos candidatos tenta tirar vantagem de seus adversários.

Mas Penteado vai além: considera que a investigação aberta pelo TSE é um erro institucional. Ele considera que as acusações de Bolsonaro contra as urnas são mais graves, pois ameaçam, em sua visão, o próprio regime democrático. Por isso, mereceriam uma resposta do Congresso num processo de impeachment, e não uma reação do TSE.

“Malgrado tenha lindas intenções, essa ação lida de forma ingênua com algo muito mais grave. Estamos lidando com ataque ao sistema democrático. A resposta tem que ser institucional e não individual. Está tentando punir um só indivíduo e não o ataque. Bolsonaro está atacando um dos Poderes, a administração eleitoral, que só compete ao Judiciário. O mediador desse conflito, segundo a Constituição e a lei dos crimes de responsabilidade, é o Legislativo”, diz o advogado.

Para ele, a iniciativa do TSE tende a deixar o Congresso e a PGR ainda mais inertes para enfrentar as ameaças de Bolsonaro às eleições. Ele acha que interessa a Bolsonaro continuar acusando fraudes nas urnas, de modo a forçar o TSE a declarar sua inelegibilidade para alimentar o discurso de que foi vítima de uma perseguição do “sistema”.

“Para quem sabe que tem grande chance de perder a eleição, resta o discurso de que ‘fui roubado’. E se alguém pregar nele uma pena de inelegibilidade, é o que ele mais quer. As pessoas tentam estratégias ingênuas como essa, de que isso [a investigação] teria poder dissuasório. Não vai. Ele quer esticar a corda até arrebentar. Para dizer ‘agora sim, você está me tirando num ato de violência, porque eu não fiz nada’”, reflete Penteado.

A estratégia do presidente, para ele, ainda passa por transformar os ataques às urnas numa rixa individual com o presidente do TSE, Luís Roberto Barroso.

“Os políticos estão usando o TSE como boi de piranha e o TSE está aceitando esse papel. O Centrão está adorando, porque enquanto o Bolsonaro estiver brigando com o Barroso, eles fazem o que querem. Enquanto isso, a imprensa não está apertando o procurador-geral para denunciar o presidente, pressionando os deputados por impeachment. Foi a coisa mais desmobilizadora que poderia ter acontecido no nosso cenário”, afirma.

Para ele, caso o Congresso não se mobilize para abrir um impeachment de Bolsonaro, a saída passa pela pressão dos ministros sobre o PGR Augusto Aras para denunciar Bolsonaro por crimes comuns. “Representa para o procurador-geral, ele tem que fazer alguma coisa. Não está fazendo nada? Então pede o impeachment dele também”.


Confira a matéria na Gazeta do Povo

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