A Tunísia ruma aos passos do Egito na disputa entre religiosos e seculares?

Exército tusiano monitorando a rua principal Habib Bourguiba, em Túnis, Tunísia, 27 de julho de 2021| Foto: String/Agência EFE/Gazeta do Povo

No último dia 25 de julho, o presidente da Tunísia, Kais Saied, assumiu o governo do país, concentrando todo o poder executivo e legislativo em sua figura. Para isso, ele demitiu o primeiro-ministro, Hichem Mechichi, suspendeu o parlamento, demitiu os ministros da Defesa e da Justiça e determinou um toque de recolher pelo menos até o dia 27 de agosto.

O estopim dessa decisão, classificada como golpe de Estado pelos integrantes afastados e apoiada pelas forças armadas, foi a escalada de uma série de protestos contra o gerenciamento da pandemia pelo governo Mechini, mas questões mais aprofundadas se fazem presentes e merecem um olhar mais cuidadoso.

No início do ano, tratamos aqui no nosso espaço da Revolução de Jasmim, o processo popular de 2011 que derrubou a ditadura de Ben Ali na Tunísia, criou um ambiente político democrático e resultou em uma nova constituição, em 2014. Ela é considerada o único caso de sucesso da chamada “Primavera Árabe”, um termo bastante inapropriado, tanto naquele momento quanto hoje.

A nova constituição estabeleceu um governo semipresidencialista, consequência do trauma da ditadura de Ben Ali. Para impedir que um político concentrasse poder demais em sua figura, o poder executivo seria dividido. O presidente é o chefe de Estado, das forças armadas, conduz a política externa e pode vetar leis.

Situação política

Leis vetadas voltam ao parlamento, que pode derrubar o veto, tal qual no sistema brasileiro, por exemplo. É do legislativo unicameral que sai o primeiro-ministro, o líder do partido de maior bancada, que forma seu gabinete e o submete ao voto de confiança da casa.

Normalmente, para viabilizar a tal da “governabilidade”, ele faz uma coalizão. Hoje, o parlamento divide suas 217 cadeiras entre vinte partidos, alguns com apenas um representante. Lá, tal como cá, o período autoritário foi seguido de ampla abertura democrática, para facilitar a criação de partidos políticos. As duas principais forças são o Coração da Tunísia, um partido secular que se identifica como “guardião” dos valores de Habib Bourguiba, primeiro presidente do país e modernizador.

Bourguiba, depois da revolução de independência em 1956, progressivamente se tornou um ditador, até ser deposto em 1987. Por seu chefe de inteligência, o citado Ben Ali. Fazendo duas analogias simplistas, com todos os problemas que uma analogia carrega, apenas para ajudar na compreensão, é como se fosse o Centrão tunisiano com Getúlio Vargas como referência histórica.

Do outro lado está o Ennahda, dono da maior bancada do parlamento, com 52 cadeiras. O partido, cujo nome em português seria Renascença, é religioso, conservador em valores sociais e defende uma maior abertura econômica do país. É importante lembrar que termos como esquerda, direita, progressista e conservador são termos pensados numa tradição ocidental de pensamento, e a aplicação desses termos para outras sociedades é sempre complicada e imprecisa. O partido apoia, por exemplo, a manutenção da tipificação de relações homossexuais como um crime, sujeito à prisão.

Uma diferença sutil, mas interessante, entre os dois partidos é o fato de que o Coração da Tunísia, em sua identidade visual oficial, une sempre o nome do partido grafado em árabe com o nome grafado em francês. O Ennahda, por sua vez, usa apenas o árabe.

Isso não é consequência de um sentimento nativista contra a ex-metrópole colonial, mas, essencialmente, da identidade religiosa islâmica do partido. Na maioria das correntes do Islã, a tradução não é aconselhada, com a manutenção de nomes e orações em árabe. Tendo a maior bancada, foi o Renascença que havia nomeado o primeiro-ministro demitido, Hichem Mechichi, e é desse partido a principal voz que acusa o presidente de golpe.

Debate jurídico

A discussão sobre a legalidade do ato do presidente é mais profunda. Saied alega que sua ação é amparada pelo artigo 80 da constituição de 2014, que autoriza o Chefe de Estado a tomar “medidas excepcionais” em situações de “perigo iminente ao país”.

A primeira discussão, então, é se existiria esse tal “perigo iminente”. A Tunísia está envolta em protestos desde o início do ano. A crise econômica derivada da pandemia assola o país, com alto desemprego entre os jovens e a corrupção é um problema corriqueiro. Em números proporcionais, a Tunísia é o país com mais mortes por Covid tanto da África quanto dentre os países árabes; verdade seja dita, o topo da lista africana provavelmente é a África do Sul, mas o país sofre com subnotificação, o que reduz os números oficiais.

Um fator que contribuiu para o crescimento dos protestos foi a violência da repressão policial, já que o aparato de segurança é ainda marcado pelos vícios herdados do período autoritário. Então, para alguns, a situação é de perigo iminente. Para outros, não.

Ainda assim, o mesmo artigo 80 determina que o presidente só pode tomar tais “medidas excepcionais” após consultar o primeiro-ministro, o líder do parlamento e o tribunal constitucional. Nada disso aconteceu. No caso do tribunal, inclusive, ele sequer foi empossado ainda.

No mínimo, então, trata-se de concentração de poder nas mãos do presidente, que vai governar por decreto, sem supervisão judicial. Ele também assumiu os poderes da procuradoria do Estado, violando a barreira entre Executivo e Judiciário.

Ainda assim, parte da sociedade tunisiana e as forças armadas apoiam as ações do presidente. O que explica isso? Apenas a pandemia?

O apoio popular a Saied vem da sua retórica de anticorrupção, populismo penal e ter sido eleito como independente, sem filiação partidária. Em 2019, ele teve 18% dos votos no primeiro turno e 72% no segundo, mas o mais interessante é notar que, nas eleições presidenciais, 55% dos eleitores compareceram. Nas parlamentares, teoricamente mais impactantes, apenas 42%. Já o apoio das forças armadas e outras instituições é proveniente de uma disputa mais ampla de poder, entre seculares e religiosos.

Irmandade Muçulmana

Já comentamos aqui no nosso espaço que os últimos cem anos do Egito são marcados por um embate entre seculares e religiosos. No caso, especialmente, militares de um lado e a Irmandade Muçulmana de outro.

Pois bem, o Ennahda tunisiano foi inspirado em qual modelo?No da Irmandade Muçulmana, que busca fortalecer “valores tradicionais” e rejeita uma sociedade secular e “ideologias estrangeiras”, como o liberalismo e o socialismo. O Ennahda é acusado, inclusive, de usar as mesmas táticas da Irmandade, como infiltrar membros em organizações de Estado e assassinar opositores políticos.

É isso que explica o apoio das forças armadas aos atos do presidente, um espelho da situação egípcia, onde os militares se veem como guardiães de uma república secular, frente aos religiosos. Isso é visível na reação internacional à crise.

Países que classificam a Irmandade como um grupo terrorista, como os sauditas e a Rússia, fizeram declarações protocolares. Países com elos com o grupo, como Turquia e Qatar, condenaram as ações do presidente. O que explica a crise tunisiana atual, então, é a soma de três tipos de fatores.

Alguns são locais e, como visto, um pouco familiares demais ao leitor brasileiro, como corrupção, adaptação após um período autoritário e desencanto com a política partidária. Outros são globais, como a pandemia e seus efeitos econômicos.

O terceiro tipo é um elemento novo no cenário tunisiano, muito presente no Egito e crescente na vizinha Argélia: o embate entre forças políticas seculares e forças políticas religiosas, inspiradas na Irmandade Muçulmana.

É aí que mora o perigo, tanto à estabilidade interna do país quanto à democracia. O próprio Egito é marcado por uma série quase ininterrupta de ditaduras militares. A importância de preservar o legado da revolução de 2011 não pode ser invocada como justificativa para romper com esses avanços democráticos.

Confira a matéria no Jornal da Cidade

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