Como o Ministério da Justiça usa o dinheiro do tráfico contra o próprio crime organizado

Como o Ministério da Justiça usa o dinheiro do tráfico contra o próprio crime organizado

O governo federal tem usado como estratégia de combate ao crime organizado e à corrupção causar prejuízos financeiros às quadrilhas. O Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP) arrecadou R$ 226 milhões com a venda de bens apreendidos de criminosos após leilões realizados em 2019 e 2020. E somente em 2021, esse número deve chegar a, pelo menos, R$ 250 milhões, segundo estimativa do secretário Nacional de Políticas sobre Drogas (Senad), Luiz Roberto Beggiora.

“Nosso objetivo é pegar o dinheiro apreendido do tráfico e de outros crimes em que há perdimento para a União como corrupção, lavagem de dinheiro e organização criminosa –, e transformá-lo em políticas públicas na área da segurança para combater esses crimes”, diz Beggiora em entrevista à Gazeta do Povo.

Segundo ele, o montante arrecadado com a venda de bens apreendidos do crime são a prova de que os esforços do ministério vêm trazendo resultados. Em 2019, foram acumulados R$ 92 milhões. Em 2020, R$ 134 milhões. O acréscimo significativo esperado para 2021 se deve ao aumento de bens de luxo apreendidos desde o ano passado.

Operação Rei do Crime – que desarticulou um importante e sofisticado braço financeiro do Primeiro Comando da Capital (PCC) –, por exemplo, rendeu uma série de bens leiloados, como postos de gasolina, lojas de conveniência, escritórios, helicópteros, carros e imóveis de luxo, caminhões e embarcações.

“Quando [a polícia] apreende drogas e pessoas, todos sabem que, na cadeia de comando, tem quem vai substituir [o líder de uma quadrilha criminosa]. Mas, quando se quebra o fluxo financeiro, nós mostramos, realmente, que o crime não compensa”, explica Beggiora.

Governo virou um dos maiores atores do mercado de leilões

O governo federal é, hoje, um dos maiores atores do mercado de leilões no Brasil – que movimenta anualmente em torno de R$ 6 bilhões.

O Ministério da Justiça opera no mercado com mais de 300 leiloeiros credenciados que fazem leilões de bens apreendidos semanalmente. “Saímos de oito leilões ao ano para perto de 260 leilões no ano passado. E ultrapassaremos esse número em 2021. E qual o custo disso para a União? Nada. Os leiloeiros recebem, por lei, 5% da arrematação”, explica Beggiora.

Com a sanção da Lei nº 13.886/19 – resultado da Medida Provisória (MP) 885/19 –, o governo federal conseguiu acelerar a venda de bens apreendidos. A legislação obriga o juiz a fazer a alienação antecipada do patrimônio apreendido em operações das polícias Federal (PF), Rodoviária Federal (PRF), Civil e Militar (PMs) no prazo de 30 dias a partir da apreensão.

Antes da lei, havia apenas uma recomendação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) para que os juízes priorizassem a venda antecipada dos bens apreendidos. A falta de uma determinação legal levava muitos magistrados a postergar a autorização de venda sob o argumento de que os bens não estavam “incomodando”.

O problema, explica Beggiora, é que um bem “encalhado” nos pátios das polícias geram custo às autoridades policiais, depreciam e perdem valor econômico. “O que a gente faz agora? Teve operação, eu ligo para o delegado, procuro saber quem é o juiz, fazemos apresentação e nos colocamos à disposição”, conta o titular da Senad.

Para onde vão os recursos arrecadados e como o governo os investe

As receitas dos bens vendidos abastecem o Fundo Nacional Antidrogas (Funad). Nos casos em que a Justiça autoriza a venda antecipada de algum bem e, futuramente, essa decisão é revertida após recurso, a Senad devolve o dinheiro atualizado pela Selic, a taxa básica de juros.

Os recursos arrecadados com os leilões de bens advindos do tráfico e de outros crimes são repassados para as políticas na área de segurança. Podem ser utilizados para a capacitação de profissionais na área da segurança; em pesquisa; compra de viaturas e equipamentos; investimentos nas fronteiras e em laboratórios de toxicologia e inteligência; e custeamento de operações como a Narco Brasil, que apreendeu 500 toneladas de drogas em junho.

Só na divisa entre o Paraná e o Paraguai, por exemplo, a Senad investiu R$ 13 milhões no sistema de comunicação digital geolocalizado, para fortalecer o combate ao tráfico na região fronteiriça. Ainda no Paraná, foram entregues no ano passado 19 vans com ar-condicionado e espaço para dois cães farejadores, usados em operações da PRF.

Desde 2019, os recursos também abastecem o Projeto Minerva, que visa a capacitar peritos e equipar laboratórios para identificar e alertar a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) sobre o surgimento de novas drogas. Há, hoje, mais de 900 entorpecentes sintéticos. “E cada vez mais surgem novas. Se a Anvisa não tipificar uma droga como ilícita, o juiz não pode condenar alguém”, diz Beggiora.

Trabalho de inteligência monitora laranjas em leilões

Além desses projetos, o governo estrutura um alinhamento com outros órgãos, como a Receita Federal, para fortalecer os serviços de inteligência e coibir o crime em suas mais diferentes áreas. A avaliação é de que somente com uma eficiente intercomunicação entre diversos órgãos será possível evitar que um bem apreendido do tráfico volte para as mãos do crime organizado, por meio da participação de laranjas nos leilões.

Na Itália, por exemplo, a lei não autoriza a venda de bens para evitar que a própria máfia os recompre. No modelo brasileiro, não há como impedir ou fiscalizar as centenas de interessados em um leilão de lances virtuais. Mas existe todo um trabalho de inteligência e investigação feito posteriormente a isso.

Beggiora explica que os detalhes dessas investigações não podem ser divulgados, mas afirma que o governo tem construído uma comunicação com órgãos como a Receita para evitar crimes futuros. “Isso estamos construindo, porque, como começamos no último ano [a venda de bens de luxo apreendidos], a gente tem que pensar quem está com os bens de alto valor”, diz.

“Pode ser que não tenha nada a ver com tráfico de drogas, mas pode ser que alguém esteja lavando o dinheiro de outra forma. Se ele não comprovar a origem, primeiro, ele tem que se acertar com a Receita, como comprou veículo, de onde saiu o dinheiro. E isso deixa um rastro para a polícia [investigar]”, diz o titular da Senad.

Quais são as prioridades da Senad até o fim de 2021

Com o volume de recursos arrecadados esperado para o Funad – que se soma ao orçamento do ministério –, a Senad mira a implementação de três projetos neste segundo semestre de 2021. Além disso, está prevista a inauguração de uma escola de cães farejadores, em uma estrutura que contará com sala para instrutores.

Outro dos projetos a ser implantado é o “cloacina”, criado para monitorar esgotos. Por meio de amostra de esgotos, é possível identificar percentuais de drogas em amostras colhidas do esgoto. “Cocaína, maconha, metanfetamina e outras drogas sintéticas, cada tipo de droga produz um metabólito diferente quando sai do esgoto”, diz Beggiora.

O “cloacina” pode contribuir tanto na prevenção ao crime como do consumo. Com a estimativa de drogas encontrados no esgoto de determinada região, será possível a polícia usar os serviços de inteligência para mapear e descobrir onde está um laboratório, refinar e diminuir a área de abrangência até chegar aos criminosos e usuários. Os dados também podem ajudar a criar políticas de prevenção específicas para aquela região.

Outro projeto é o “drogômetro”, o bafômetro para a identificação de drogas. Os testes iniciais ocorrerão em rodovias federais em 10 estados. Cerca de 9 mil testes serão conduzidos pela PRF, com apoio do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (RS). A lei já prevê como infração de trânsito gravíssima o uso de álcool e de outras substâncias entorpecentes.

O terceiro projeto a ser lançado até o fim do ano é o “Tô de Boa”. Consiste em uma ação de prevenção à cooptação de jovens entre 16 e 24 anos por traficantes. O programa prevê oficinas para que os jovens possam aprender uma profissão, praticar esportes e música.

O “Tô de Boa” foi inspirado em uma ação do governo de Minas Gerais, que ganhou, inclusive, um prêmio da Organização das Nações Unidas (ONU). “Tem reduzido 20% o número de mortes a cada ano”, diz Beggiora. “Nossa intenção é pegar o que está dando certo e adaptar. Cada estado terá suas adaptações.”


Confira a matéria na Gazeta do Povo

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