Primeiro, a Câmara atacou a Lei da Improbidade Administrativa, facilitando um pouco a vida dos maus gestores sob o argumento de que estava apenas atacando imprecisões e subjetividades que amarravam as mãos dos bons gestores. Uma semana depois, no fim de junho, o alvo foi a Lei da Ficha Limpa. Os deputados aprovaram o PLP 9/2021, retirando a inelegibilidade do administrador público que teve suas contas reprovadas por irregularidade dolosa – ou seja, intencional –, mas que acabou punido apenas com multa.
As inelegibilidades são regidas pela Lei Complementar 64/1990, e a situação de inelegibilidade mais conhecida é aquela introduzida pela Lei da Ficha Limpa (Lei Complementar 135/2010), aplicada a quem teve condenação por colegiado por uma série de crimes, incluindo os de corrupção – era o caso, por exemplo, do ex-presidente Lula antes que o Supremo Tribunal Federal anulasse, de forma inexplicável, todos os processos que corriam contra ele na Justiça Federal de Curitiba. Mas a LCP 64/90 também prevê inúmeras outras situações que tornam uma pessoa inelegível. É o caso de outra introdução da Lei da Ficha Limpa, a alínea “g” do inciso I do artigo 1.º, que torna inelegíveis para qualquer cargo “os que tiverem suas contas relativas ao exercício de cargos ou funções públicas rejeitadas por irregularidade insanável que configure ato doloso de improbidade administrativa, e por decisão irrecorrível do órgão competente, salvo se esta houver sido suspensa ou anulada pelo Poder Judiciário, para as eleições que se realizarem nos oito anos seguintes, contados a partir da data da decisão”.
Não há motivo algum para livrar da inelegibilidade quem intencionalmente usou mal o dinheiro público
O PLP 9/2021, que agora vai ao Senado, pretende que a inelegibilidade não se aplique a quem teve as contas reprovadas devido a irregularidade dolosa, mas recebeu a pena mais leve, a de multa – os gestores podem ser responsabilizados em várias esferas, com diversas punições, chegando até a prisão. O argumento do relator, Enrico Misasi (PV-SP), foi o de que a mudança aumentaria a segurança jurídica, já que há “enorme disparidade nos julgados da Justiça Eleitoral, ora reconhecendo inelegibilidade aos administrados alcançados apenas com a sanção de multa, ora afastando a inelegibilidade, porquanto não há efetivamente, parâmetro para delimitar a atuação dos senhores julgadores”, segundo a justificativa do projeto. No entanto, se há disparidade, é porque alguns tribunais eleitorais não estão aplicando corretamente a lei; afinal, o texto é bem explícito: se as contas foram rejeitadas por “irregularidade insanável” cometida intencionalmente, aplica-se a inelegibilidade. Se alguma corte eleitoral mantém elegível um gestor que se enquadra nesses critérios, ela o faz ignorando a lei.VEJA TAMBÉM:
O relator argumenta, ainda, que “esta sanção [de multa], como previsto em lei e soe acontecer, somente é aplicada a pequenas infrações, sem dano ao erário, de simples caráter formal e, sobretudo, sem a ocorrência de atuação dolosa por parte do administrador”, escreve Misasi. Em outras palavras, os casos que resultam apenas em multa são de meros pecadilhos, não intencionais; se as irregularidades fossem mais sérias e dolosas, a punição seria maior. Ora, neste caso, o PLP 9 poderia até ser considerado inútil, já que a Lei da Ficha Limpa exige claramente a configuração do dolo para que se aplique a inelegibilidade. Se não houve dolo, também não haveria inelegibilidade, e então nem seria necessário alterar a lei. Mas, com a alteração, fica aberta uma brecha perigosa, beneficiando gestores que tenham suas contas condenadas por irregularidades comprovadamente intencionais, mas que, por algum motivo, acabem punidos pelos Tribunais de Contas de forma leniente, apenas com multa. Esses administradores, que pela redação atual da lei ficariam inelegíveis, deixariam de sê-lo com a aprovação do PLP 9. E não há motivo algum para livrar da inelegibilidade quem intencionalmente usou mal o dinheiro público.
Assim, aos poucos, a Lei da Ficha Limpa, resultado de enorme clamor popular, vai sendo erodida. Primeiro, veio a liminar de Nunes Marques, no fim do ano passado, que reduziu o período de inelegibilidade – a decisão ainda não foi analisada pelo plenário. Agora, um projeto de lei deixa uma pequena brecha para um gestor escapar da inelegibilidade mesmo se tiver cometido irregularidade intencional, bastando para isso que não receba pena maior que uma multa. São pequenos furos que, caso não sejam prontamente reparados, podem botar a perder um dique que é uma contribuição valiosa para a moralização da política no Brasil.
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