A polêmica fala do presidente Jair Bolsonaro sobre “fazer eleições limpas ou não ter eleições” causou um grande revés ao debate do voto impresso auditável. A leitura feita por parlamentares da comissão especial da proposta de emenda à Constituição (PEC) 135/19 é de que Bolsonaro dificultou a aprovação do texto na Câmara dos Deputados.
“A minha impressão é de que subiu no telhado”, diz à Gazeta do Povo o deputado Júlio Delgado (PSB-MG), membro titular da comissão. “A fala do Bolsonaro contaminou toda a discussão do processo”, acrescenta o parlamentar, que se diz contrário ao voto impresso, mas a favor da auditagem pós-eleição.
A avaliação feita por Delgado é partilhada por outros membros do colegiado. Mesmo governistas concordam com a leitura. “Estou bem apreensivo. Ele [Bolsonaro] ferrou tudo, dá a impressão de que não quer o voto impresso”, afirma um deputado governista da comissão. “Ele fez questão de atrapalhar. As falas na sexta-feira [9] foram um balde de água fria”, desabafa um segundo parlamentar da base.
Em contas feitas por deputados governistas, dos 34 membros titulares da comissão, 40% votariam, hoje, a favor. Para aprovar na comissão, será necessária maioria simples do colegiado, ou seja, 18 votos, a metade mais um.
Para chegar a esse número, o relator da PEC, Filipe Barros (PSL-PR), e o presidente da comissão, Paulo Eduardo Martins (PSC-PR), articularam para adiar a votação do relatório que estava prevista para esta quinta-feira (15) a fim de ganhar tempo e tentar conquistar os votos que faltam.
Com adiamento da votação, relator defende novas audiências públicas
Barros e Martins anunciaram o adiamento da votação para agosto, após o recesso parlamentar, que vai de 18 a 31 de julho. Agora, o relator quer aproveitar a sessão desta quinta para apresentar e votar um requerimento de audiência pública, a fim de fortalecer o debate antes da votação do relatório.
O relator defende a realização de novas audiências pelo fato de que alguns membros da comissão especial foram substituídos por seus partidos, em movimento de oposição ao voto impresso. “Houve muita troca de membros e acho que vale fazer mais duas audiências para esclarecer o debate”, justifica Barros à reportagem.
O presidente da comissão especial concorda que é necessário aprimorar o debate. “Tem deputado que não acompanhou as audiências”, diz à reportagem. Martins defende a votação sem os holofotes de desconfiança ao processo eleitoral jogados por Bolsonaro e sem as defesas equivocadas feitas pelos opositores do voto impresso, que associam o voto impresso ao retorno do voto em cédulas físicas manualmente preenchidas.
“A ideia é votar quando tiver condições de votar. Hoje, está muito difícil, por conta da irracionalidade do debate. Eu não acho esse o clima mais favorável para se apreciar uma matéria assim. Além disso, tem o recesso [parlamentar], que pode ter ou não ter. Tem muita instabilidade para o calendário”, sustenta.
Articulações e data limite: a corrida contra o tempo da PEC do voto impresso
Só adiar a votação da PEC 135/19 não assegura a aprovação da matéria. Filipe Barros e Paulo Eduardo Martins têm consciência disso. Por isso, trabalham para esclarecer os principais pontos do texto e abrir negociações sobre eventuais mudanças no projeto.
Ainda na terça-feira (13), Paulo Martins conversou com parlamentares da comissão, a exemplo de Júlio Delgado. Barros retomou conversas com líderes e presidentes partidários. “Farei reuniões com vários partidos para ouvir sugestões, críticas e questionamentos de cada uma dessas bancadas”, afirma.
O relator admite que há ressalvas feitas por partidos em relação ao texto. “Até por conta de toda a polarização que vivemos em relação a essa matéria, que é técnica, mas foi polarizada, infelizmente. Tenho buscado distensionar e explicar aos partidos”, afirma. “Por isso, entendo que a votação pode ficar para agosto, justamente para votarmos minimamente pactuado entre os partidos”, acrescenta.
Apesar dos esforços em adiar a votação para agosto a fim de fortalecer o debate, os partidos mais opositores ao voto impresso tentam votar o texto antes, durante um provável “recesso branco”. É discutido na Câmara que, em vez de folgar duas semanas, os parlamentares trabalhem na próxima semana para votar a reforma eleitoral e o voto impresso na esteira desse debate. Assim, a Câmara tiraria apenas uma semana de folga, entre 25 e 31 de julho.
A ideia de votação da PEC do voto impresso auditável na próxima semana ou em qualquer outra antes de agosto é refutada por Martins. O parlamentar insiste que uma semana só seria insuficiente para amenizar o clima de tensão política. À reportagem, ele reforça, contudo, que vê agosto como data limite para a votação.
“Tem limites, porque é preciso aprovar até outubro [para que o voto impresso seja implementado nas eleições de 2022]. Se houver um recesso e a gente não conseguir votar esta semana, tem que votar logo após o recesso”, diz. “Leva tempo. Temos que aprovar na comissão, no plenário [da Câmara] e no Senado, em dois turnos [nas duas Casas]. Se postergar muito, chega a um tempo que é inviável, por isso, temos que trabalhar com a maior velocidade possível para construir um ambiente favorável o quanto antes”, acrescenta Martins.
O que é negociável e possível de ser alterado na PEC do voto impresso
A fim de votar um texto “minimamente pactuado”, como diz Filipe Barros, o relator tem sinalizado aos partidos a disposição em alterar pontos do parecer. Um desses pontos é sobre a implementação gradual das urnas de voto impresso. Outro é sobre a apuração. O relatório atual propõe que a apuração ocorra nas próprias sessões eleitorais em 100% dos registros impressos.
A ideia de que as apurações ocorram nos próprios locais de votação em 100% dos votos impressos é um dos pontos de maior resistência dos partidos políticos. Como alternativa, Barros tem sugerido alterar para apuração em 100% dos fóruns eleitorais. “É uma sugestão feita por alguns deputados que até concordam com a apuração total, mas não nas sessões eleitorais”, afirma o relator.
A apuração nos fóruns eleitorais poderia levar Barros a alterar outro dispositivo, o de prever a possibilidade de eleitores serem fiscais do próprio processo eleitoral. A questão é que mesmo essa possibilidade é criticada pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e por alguns partidos.
Outra possibilidade negociada é que a apuração ocorra por amostragem, ou seja, de forma estatística. A sugestão seria fazer a apuração pelo registro digital de voto (RDV), o voto computado eletronicamente na urna — como ocorre atualmente —, e fazer a auditagem com o registro impresso em 10% das urnas após o início da apuração.
A alternativa por amostragem é a mais pacífica entre as regras de apuração, mas não tem a concordância de defensores do voto impresso, como Barros. “É postergar um problema. A gente faria a auditagem em 10% e, inevitavelmente, quem perder [a eleição] vai pedir a apuração nos outros 90%”, avalia.
O modelo por amostragem também levaria Barros a alterar o artigo que tenta mitigar a judicialização no país. No texto atual, partidos políticos poderiam requerer a recontagem de votos de uma respectiva seção eleitoral no prazo de até cinco dias da data do pleito apenas “havendo fundados indícios de irregularidade na apuração”. “No caso da apuração por amostragem, não precisaria, necessariamente, ter forte indício de fraude para pedir a recontagem do resto”, diz Barros.
O que é inegociável na PEC do voto impresso
Ao passo em que alguns pontos são negociáveis por Barros, outros não são. Como a própria necessidade de impressão do registro de voto. O PT, que, em 2015, votou a favor do voto impresso, tem feito oposição ao parecer do relator. O partido tem sugerido o modelo proposto pela “Associação GRITA!”, que não tem apoio de Barros.
O relator não discorda do modelo apoiado pelo PT por motivos políticos, mas técnicos. Ele mantém um diálogo constante com acadêmicos que são contrários ao que sugere o “GRITA!”. O professor Mário Gazziro, do departamento de Engenharia da Informação da Universidade Federal do ABC (UFABC), explica que a proposta não se trata de voto impresso, apenas propõe uma cópia do RDV fora da urna.
“Não traz nenhuma melhora na segurança do processo eleitoral, pois um software adulterado iria mudar também o registro externo deles. Ainda por cima, trás uma nova forma de ataque, visto que seria mais um ponto externo de possível adulteração”, avalia Gazziro, que é membro do comitê de tecnologias eleitorais da Sociedade Brasileira de Computação (SBC). Ele é um dos acadêmicos ouvidos por Barros.
O TSE também é contrário ao modelo apoiado pelo PT. “Essa solução foi avaliada pela equipe técnica e ela replica algo que nós já temos na urna eletrônica [o RDV]”, disse o secretário de Tecnologia da Informação, Júlio Valente, em reunião com parlamentares da comissão especial em 21 de junho.
O relator não somente trata como inegociável a impressão do voto em todas as urnas — ainda que admita negociar alterações no relatório para uma apuração por amostragem —, como também vai manter em seu parecer que o voto impresso seja constitucional. Além disso, Barros vai mudar o relatório para prever constitucionalmente o conceito técnico do que é: o registro do voto; a apuração; e a totalização. A ideia é clarear o debate, principalmente em relação às fases de apuração e totalização.
“A discussão da auditagem do voto ser pública e na seção eleitoral se dá sobre isso, de não fazer uma apuração secreta, sigilosa. Hoje, a totalização feita pelo TSE ocorre numa sala-cofre sem o público poder ver aquilo que acontece dentro. É uma loucura. No meu ponto de vista, chega até a ser inconstitucional”, diz Barros. “Por isso, quero conceituar tecnicamente cada um dos processos”, acrescenta.
Outro ponto considerado inegociável por Barros é o de o voto impresso ocorrer em, ao menos, 55% das urnas. Alguns partidos políticos cobram o relator de iniciar a implementação das urnas de voto impresso em apenas 3% das máquinas. “O próprio TSE respondeu à comissão que 55% das urnas já são adaptáveis ao voto impresso. Qualquer porcentagem abaixo disso não faz nem sentido discutir”, avalia.
Mesmo com mudanças ao texto, aprovação pode ser difícil; Bolsonaro vai articular
Mesmo com mudanças ao relatório, como ajustes na apuração, a aprovação do parecer de Barros ainda pode ser uma tarefa complexa. “Acho difícil. A fala do Bolsonaro contaminou muito o debate. Ele não precisava fazer a ameaça que fez. Se queria tanto isso, errou na dosagem e na forma de se expressar, que ele não sabe”, critica Julio Delgado.
A leitura do deputado do PSB não é muito diferente entre governistas. “O debate está tão tenso que o Filipe pode montar o relatório mais consensual e, ainda assim, vai ter deputado e partido criticando o voto impresso. O presidente [Bolsonaro] vai ter que dar um jeito”, avalia um deputado da base.
Como mostrou a Gazeta do Povo, partidos do Centrão cobram cargos do primeiro escalão do governo. A “fatura” política subiu após a polêmica provocada por Bolsonaro. Mas interlocutores do Palácio do Planalto têm dito que o presidente da República vai trabalhar pessoalmente para chegar a um acordo com as legendas.
“O presidente vai chamar eles [presidentes partidários] para conversar”, afirma um interlocutor palaciano. Contudo, ninguém crava, por ora, quais arranjos políticos e ministeriais serão acertados para atingir os votos necessários pela aprovação da PEC 135.
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