Familiares de dois pacientes que morreram após passar por um estudo para testar a eficácia da cloroquina – realizado em Manaus (AM) com a participação de mais de 70 pesquisadores de diversas instituições e universidades – denunciam a equipe por suposta tentativa de fraude nos resultados do estudo. Segundo eles, os pesquisadores teriam tentado fazer parecer que pacientes tomaram uma dose baixa do remédio, quando, na verdade, teriam tomado uma dose maior, o que os teria levado à morte. A denúncia é reforçada por depoimentos de médicos que acusam a equipe de aplicar uma superdosagem fatal de cloroquina nos pacientes.
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Ambas foram enviadas ao Grupo de Atuação Especial de Investigação do Ministério Público do Estado do Amazonas (MP-AM), que está realizando um Procedimento Investigatório Criminal para investigar o estudo.
Durante o ano que se seguiu, os nomes dos 22 pacientes que morreram durante o estudo e seus familiares ficaram em anonimato, por questões éticas e legais relacionadas a esse tipo de pesquisa, que deve ser sigilosa. E foi o que Conep, Ministério da Saúde e MP de Bento Gonçalves alegaram quando a Gazeta do Povo solicitou as informações.
Entretanto, por meio de um cruzamento de dados de mortes de pessoas infectadas com Covid-19 com a data e o local em que estudo foi realizado, a reportagem conseguiu encontrar e falar com familiares de duas pessoas que participaram do experimento e morreram. Eles acreditam que a superdosagem foi responsável pela morte de seus familiares e denunciam uma possível tentativa de fraude dos pesquisadores.
O músico amazonense Robson de Souza Lopes, de 43 anos, conhecido como Binho, foi internado no dia 20 de março de 2020 e ficou 10 dias no Hospital Delphina Aziz, local onde estava sendo realizado o estudo Clorocovid. Binho foi o segundo a morrer no estado do Amazonas em decorrência de infecção por Covid-19.
A esposa de Binho preferiu não se pronunciar porque ainda se encontra muito abalada pela morte do marido, mas Lucia Noronha Azevedo, de 47 anos, cunhada de Binho, e que acompanhou toda a internação, conta que desde o primeiro dia ele ficou intubado. Lucia afirma que Binho não tinha comorbidades, era saudável e que em nenhum dia passou mal. Ela explica que Binho tomou a dose mais alta de cloroquina e que, para ela, foi isso que o levou ao óbito.
“Dia 27 falei com ele no leito, ele estava intubado. Porém, pedi para ele mexer a cabeça se estivesse ouvindo, e ele mexeu. Aí não acreditei. Pedi para mexer os pés, ele mexeu os dois. Eu orei e cantei com ele e ele começou a chorar”, lamenta.
Três dias depois, a família recebeu a notícia de que ele estava reagindo bem aos medicamentos e que seria o primeiro a receber alta. Mas, no final do mesmo dia, 30 de março, veio a notícia de que ele havia falecido, deixando a família em choque.
Lucia conta que, no dia da internação de Binho, a esposa dele assinou um documento com autorização para participar do estudo, mas depois do falecimento solicitaram que outra autorização fosse assinada. “Eles foram na minha irmã para ela assinar outro protocolo, dizendo que ele tinha recebido a dose menor. Ela não assinou”, salienta.
Entretanto, a ficha médica de Binho fornecida pela família à reportagem mostra claramente que ele foi participante do grupo que foi medicado com a dose maior de cloroquina.
Outro a morrer após participar do estudo foi o agricultor Ozaniel Almeida Rosa, de 55 anos, morador de Manaus, mesmo tendo dois resultados negativos em testes para Covid-19, segundo a família. Primeiro indígena a morrer devido à Covid-19 no Brasil, Almeida Rosa foi internado em 23 de março e morreu no dia 5 de abril. A família acusa o estudo de negligência e de ter apenas recebido pedido autorização para que ele participasse dias após a morte.
A esposa de Almeida Rosa, a servidora pública Norma Maria Cunha, de 57 anos, contou que ele estava bem quando chegou no hospital e que era saudável. Mas, quando ele deu entrada na unidade hospitalar, após ser realizada uma tomografia que acusou uma tuberculose, a equipe médica solicitou que ele ficasse em observação. Isso espantou Norma pois, para ela, Almeida Rosa poderia realizar o tratamento em casa. No entanto, os médicos insistiram para que ele ficasse um pouco mais para maior avaliação. Almeida Rosa e sua esposa não sabiam, mas ele nunca mais voltaria para casa.
Emocionada, Norma fala da última vez que conseguiu falar com o esposo. “Ele havia esquecido o celular em casa e me pediu para buscá-lo. Disse que iria ficar me aguardando na recepção. A gente se abraçou na despedida”.
Na volta, Norma descobriu que não poderia mais ver nem falar com ele, pois não era permitida a entrada de celular. O contato com o marido foi ficando cada vez mais difícil depois que ele foi para a chamada “Sala Rosa”. Essa sala era onde ficavam em observação os pacientes infectados com Covid. Para a esposa, foi ali que Almeida Rosa contraiu o vírus. Nesse momento ela conta que lhe informaram que ele havia sido escolhido para participar de um estudo sobre cloroquina, mas conta que em nenhum momento pediram a autorização da sua família.
Norma, que é profissional da área de saúde, conta que ficou desconfiada do procedimento que foi realizado, pois não lhe davam notícias sobre o estado do marido e chegaram a tratá-la mal durante a sua busca por informações.
No terceiro dia, Norma, sentindo um mal-estar, foi realizar exames no hospital, pois ela suspeita que poderia também estar com tuberculose por causa do contato que teve com Almeida Rosa. Desse modo, conseguiu ver de relance o marido, mas, quando tentou se aproximar, os seguranças não a deixaram entrar.
Após algumas horas, ela diz que recebeu a notícia de que ele havia sido transferido para a UTI e estava intubado. A justificativa dada pelo médico era que Almeida Rosa passou mal e não reagiu bem à medicação. Norma ficou indignada, pois tinha conversado com ele no dia anterior e o visto horas antes na observação. O marido passou 13 dias intubado. A esposa afirma que durante esse tempo os médicos tentaram retirar o tubo de respiração para fazer uma ‘experiência’, mas tiveram que recolocá-lo em seguida.
“Eu trabalho na área de saúde e sei que uma pessoa intubada duas vezes não pode resistir. Porque você vai ferir a garganta da pessoa”, Norma se dirigiu indignada para o médico. Nesse momento ela conta que entrou em desespero.
Na sequência, Norma adoeceu e teve que ficar isolada em casa. Nesse período, recebeu a notícia de que o marido havia falecido por meio do filho, Maycon Jhonny Cunha Carvalho, de 38 anos, que acompanhou de perto a internação de Almeida Rosa enquanto sua mãe estava internada.
Carvalho também conta que, dias depois da morte de Almeida Rosa, uma equipe de enfermeiros foi até a casa de sua mãe para pedir autorização para que ele participasse do estudo. Ele explica que se recusaram a assinar, pois não tinham autorizado nem sido consultados.
Para Carvalho, Almeida Rosa não estava infectado com Covid quando chegou ao hospital, mas com tuberculose, e que isso, aliada à superdosagem de cloroquina, foi o que levou o pai a óbito. Carvalho conta que até hoje não conseguiu ter acesso à ficha médica e que planeja uma ação judicial.
“Ele não estava com essa porcaria aí. Fizeram aplicação de remédio sem necessidade, de uma doença que ele não estava sofrendo, era de outra”, disse.
Segundo Amanda Costa, advogada especialista em Direito Médico e Direito Penal, os pacientes que participam de pesquisa devem fornecer termo de consentimento após receberem claras informações sobre os riscos físicos, psicológicos e sociais que podem ocorrer ao aceitarem participar do experimento, que deve estar cercado de garantias éticas e científicas.
Porém, uma pesquisa realizada em desconformidade ética pode levar os responsáveis a responder no tribunal de ética, civilmente e até criminalmente.
“O tribunal de ética atua através de uma denúncia, que não pode ser anônima, onde é instaurada uma sindicância para investigar se os atos do médico foram contra a ética e princípios médicos. Na justiça comum, podem responder por homicídio na forma culposa por imprudência, por exemplo, com 1 a 3 anos de detenção, conforme o artigo 121 do código penal”, disse.
De esperança a contestações
No início de 2020, a cloroquina se tornou a grande promessa no combate à Covid-19, após estudos preliminares como o publicado pelo médico francês Didier Raoult e a indicação do presidente americano Donald Trump da suposta eficácia. No Brasil, o medicamento foi recebido com grande entusiasmo por apoiadores do presidente Jair Bolsonaro.
Porém, essa esperança não foi confirmada. O medicamento, que já é conhecido há quase um século e utilizado com sucesso para o tratamento de malária e lúpus, teve sua eficácia questionada e, até agora, não há estudos definitivos sobre o tema, apenas pesquisas que mostram benefícios do uso de um coquetel de medicamentos nas primeiras fases da doença. Um dos primeiros estudos a tentar comprovar algo sobre o uso da cloroquina contra a Covid-19 foi o chamado Clorocovid, realizado em Manaus, em abril de 2020.
Composto por uma equipe multidisciplinar de mais de 70 pesquisadores de diversas instituições e universidades, como a Fundação de Medicina Tropical Dr. Heitor Vieira Dourado, a Universidade do Estado do Amazonas e a Universidade de São Paulo, o estudo tinha o objetivo de testar a eficácia de diferentes dosagens de cloroquina no tratamento do Covid-19.
A razão para ser realizado na capital amazonense foi a sua longa experiência com cloroquina no combate à malária, cujo tratamento é feito com esse remédio.
A proposta do estudo foi enviada no dia 20 de março de 2020 à Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep) e aprovada em tempo célere: em apenas três dias a equipe analisou e aprovou a realização – no mesmo dia da aprovação foi iniciada a distribuição dos remédios para os pacientes. O estudo contou com a participação de 81 pacientes internados em estado grave no Hospital Delphina Aziz, de Manaus, hospital referência para atender os casos do Covid-19 na cidade.
Os pacientes foram divididos em dois grupos. No primeiro, 41 pessoas receberam uma dose alta do remédio (600 mg 2x/dia durante 10 dias), muito acima do limite indicado na bula (máximo de 1.500 mg em 3 dias) e no segundo, 40 receberam uma dose menor, mas também excedente ao indicado (450 mg, duas vezes ao dia, no primeiro dia e 450 mg dose única por mais 4 dias, totalizando 5 dias de tratamento).
A intenção era comparar a reação à dose alta de cloroquina, utilizando como controle a dose baixa com a justificativa de que seria antiético não fornecer a medicação para um grupo de controle. Na ocasião, o Ministério da Saúde, junto à Secretaria de Ciência e Tecnologia e Insumos Estratégicos (SCETIE), recomendou a dose baixa para o tratamento de pacientes com quadro clínico grave.
Para participar do estudo, os pacientes ou seus familiares deveriam assinar termos de autorização livre e esclarecida, por meio dos quais permitiriam que os pesquisadores dessem a medicação e coletassem dados para a pesquisa após explicação clara sobre os riscos do estudo.
O início das mortes em estudo com cloroquina
Pacientes começaram a morrer após o início da aplicação do medicamento. Assim, a equipe decidiu suspender a aplicação da dosagem alta, segundo eles, no 13º dia, aplicando a todos os participantes do estudo apenas a dose mais baixa. No total, morreram 16 pessoas que receberam a dose alta e 6 que receberam a dose menor.
O médico e pesquisador Marcus Vinícius Guimarães Lacerda, da Fundação de Medicina Tropical Dr. Heitor Vieira Dourado, e especialista em Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz Amazonas (Fiocruz – AM), que liderou o estudo, foi acusado, sem provas, nas redes sociais de ter matado intencionalmente com doses altas de cloroquina.
Inquéritos foram abertos pelo Ministério Público (MP) de Bento Gonçalves, no Rio Grande do Sul, e pelo Ministério Público Federal (MPF) do Amazonas, para apurar se houve negligência ou superdosagem medicamentosa que teriam causado as mortes dos pacientes. Além disso, o estudo foi alvo de procedimento do Conep.
Porém, mesmo com investigações em andamento, diversas instituições passaram a fazer uma campanha de defesa do estudo e do líder do grupo, Lacerda. Os inquéritos e investigações foram arquivados após apurações que seguiram em sigilo.
Em entrevista concedida à Gazeta do Povo em 16/04/2020, Lacerda disse que a equipe seguiu a dosagem do “consenso chinês”, que também fez testes com o medicamento, e que se alguém deveria ser chamado de criminoso seriam os chineses, pois foram eles que começaram a utilizar essa dose. Há pesquisas da década de 1980 que confirmam que ultrapassar as medidas previstas de cloroquina na bula resulta em intoxicação grave, mas o médico disse que era necessário testar se o mesmo ocorria em caso de pacientes com Covid-19.
Médicos questionam o estudo com cloroquina na CPI do Covid
Mais de um ano após o fim do estudo, Lacerda tem novamente os holofotes voltados para si por causa da CPI do Covid, criada para apurar irregularidades na condução da pandemia no Brasil. Em 17 de maio, o senador Luis Carlos Heinze (PP-RS) enviou solicitação à Polícia Federal propondo investigação sobre uma suposta superdosagem do estudo Clorocovid.
Cerca de um mês depois, os médicos infectologistas Francisco Cardoso e Ricardo Zimmermann foram convidados por Heinze a dar esclarecimentos na CPI da Covid sobre os medicamentos do chamado “tratamento precoce”. Cardoso disse que a questão fundamental para as mortes no estudo foi uma superdosagem causada por uma confusão entre as formulações do medicamento utilizado no estudo chinês, citado pelo médico Marcus Lacerda como sua principal referência, e o brasileiro, fabricado pelo Instituto de Tecnologia em Fármacos da Fiocruz (Farmanguinhos).
Cardoso explicou que a equipe de pesquisadores do Clorocovid errou na hora de replicar o estudo chinês, cuja cloroquina possui comprimidos de 500 mg de fosfato de cloroquina, equivalente a cerca de 300 mg de cloroquina pura; enquanto o comprimido brasileiro possui 241 mg de difosfato de cloroquina, mesma coisa de fosfato, e equivalente a 150 mg de cloroquina pura. Porém, a equipe teria se confundido ao ler a bula do remédio brasileiro, que seria cloroquina pura e não fosfato, dando na prática, o dobro da dose do estudo chinês.
“No estudo de Manaus eles deram 1200 de mg de cloroquina base, calculado em fosfato, dá cerca de 2.000 mg por dia para os pacientes. A própria bula da cloroquina fala que deve-se evitar dar mais de 1500 mg em três dias seguidos. Eles deram para esses pacientes 3.600 mg de cloroquina em três dias. Sete pacientes morreram nestes 3 dias”, disse, alertando para não se deve confundir cloroquina com a hidroxicloroquina, que possui dosagem diferente e margem de segurança melhor.
Cardoso afirmou que, como o estudo era randomizado, ambos os grupos tinham o mesmo grau de risco e, em tese, deveriam ter a mesma taxa de mortalidade. Porém, o grupo que recebeu a dosagem maior de cloroquina teve quase 3 vezes mais mortes do que o grupo que tomou a dose menor. Para ele, o estudo foi uma tragédia e “uma vergonha para a ciência nacional”.
Agora, o MP do estado do Amazonas está conduzindo um procedimento investigativo para definir as responsabilidades das mortes durante o estudo CloroCovid. Entretanto, segundo nota enviada pelo MP à Gazeta do Povo, a investigação corre sob sigilo legal.
A reportagem conversou com o médico amazonense Mário Vianna, presidente do Sindicato dos Médicos do Amazonas (Simeam), convidado pelo MP-AM a explicar o pedido de providências feito por ele, em maio de 2020, ao Conselho Regional de Medicina do Amazonas para apurar as responsabilidades sobre a pesquisa, que para ele era “obscura”.
“O motivo da minha denúncia foi o absurdo de se utilizar doses tão elevadas para o tratamento dos pacientes selecionados. E também o critério de seleção dos pacientes, que só respeitou a idade ser acima de 18 anos. Não foram retiradas pessoas com sabida cardiopatia e até mesmo, segundo informações, gestantes”, disse.
Além disso, uma peça-chave surge para responder algumas perguntas: os relatos de familiares das vítimas, que acusam os pesquisadores de fraudar o estudo.
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