Democracia não é apenas um conjunto de regras. É também – e sobretudo – cultura: princípios, valores, mentalidade, comportamentos, costumes, crenças, visão de mundo, ética, moral; ingredientes imateriais semeados e cultivados no consciente coletivo de um determinado povo ou nação e estimulados, continuamente, como um inesgotável plebiscito de todos os dias.
Assim como não há ditadura “de direita” ou “de esquerda” – pois toda ditadura é ditadura –, da mesma forma não há democracia ideologicamente segmentada. Para merecer a designação, ou é universalmente acatada e validada por todos (não importa a tendência ou simpatia política), ou não passa de farsa, de trama, manipulação.
É com base nessa premissa que se pode afirmar, de maneira categórica, que, efetivamente, não há (nunca houve) democracia no Brasil. A começar pela conduta dos partidos políticos e de suas célebres lideranças, quem, por força do papel social que ostentam e simbolizam, deveriam dar o bom exemplo – e não o fazem –, servindo de referência educativa para todos.
O que mais se nota no cenário político nacional – inclusive por parte daqueles que se dizem “progressistas” (sic!) –, é a rejeição peremptória de resultados eleitorais adversos; tentativas obstinadas de desmoralização de oponentes; demonização e perseguição desarvorada de adversários vitoriosos nas urnas.
Negam-se, tais “exímios democratas”, a acatar, com naturalidade, um dos fundamentos pétreos de todo e qualquer regime democrático autêntico: a alternância no poder. Ao fazê-lo, revelam, na prática, o seu mais recôndito desdém (hipocritamente não declarado) ao princípio basilar e instituidor de toda engenharia política do Pacto: a prevalência da vontade popular como fonte única e legítima do poder, expressa, majoritariamente, por meio de eleições livres, diretas e universais.
Partidos que perdem as eleições e, no dia seguinte, já estão a postos para tramar contra os adversários triunfantes, na tentativa de desestabilizá-los e derrubá-los a qualquer preço, não passam de organizações fascistas e delitosas, de viés despótico e totalitário, antítese absoluta e despudorada daquilo que pregam e alardeiam. Pois não aceitar perder (ainda que provisoriamente) o poder, com respeito às regras, implica em dar testemunho inequívoco de uma mentalidade antidemocrática, camuflada de falso vanguardismo, com demonstração tácita de menosprezo para com a vontade popular e de desrespeito aos princípios mais medulares e relevantes do modelo.
Por ser representativa, isto é, dirigida por delegados temporários, escolhidos diretamente pelo o povo para cumprir, em seu nome, as imprescindíveis funções governativa e legislativa, uma democracia só funciona se houver apreço, por parte de todos, a esses representantes eleitos, indistintamente, de vez que avalizados pelo conjunto majoritário dos cidadãos, fonte única e insubstituível de toda soberania possível.
Mas o que se observa no cotidiano dos espaços decisórios e nos domínios das instituições, via de regra, são desplantes, desaforos, gritos, boicote, maquinação, chantagem, conspiração, ardis, descortesia, malandragem, trapaças, achaques, rasteiras, pirraça, em suma, indecorosas e reprováveis condutas, reiterada e metodicamente interpostas como recursos rotineiros de travamento e procrastinação deliberativa. Não se faz política com argumentos, com equilíbrio, com a razão – na busca incessante do bem comum –, mas com acusações, ameaças e fraude – na caça indiscriminada das vantagens obscenas de ocasião.
A comunhão de ódios – como alertava Tocqueville (1805 – 1859) – parece tornar-se, cada vez mais, a base exclusiva dos entendimentos oportunistas de circunstância.
De tudo – e pelo mau exemplo –, fica sinalizado à sociedade que a política é a arena dos bandidos e espertalhões, não dos homens íntegros e virtuosos. Pois são os fatos – e não as narrativas – que estão a testemunhar, diuturnamente, que os partidos, quase sempre, não passam de organizações criminosas, de gangues safardanas; e, suas “tendências internas” (puro eufemismo), de grupelhos vis ou meras “facções” – dando fundamento empírico à máxima de Voltaire (1694 – 1778), que dizia repousar na perversidade, e não na grandeza do espírito humano, a fonte última da política.
Não, definitivamente não há democracia no Brasil. Pois não há compromisso dos próceres e autoridades constituídas (resguardadas as honrosas exceções) para com a vontade soberana e majoritária da população. Não há dileção ao sentimento popular. Não há caráter de atitude, nem responsabilidade de espírito. Até a Suprema Corte, que deveria ser o bastião da Justiça e baluarte mor da segurança do ordenamento jurídico (alicerce do Pacto), transformou-se em seu algoz.
O que se visa, ao fim e ao cabo, não é o bem público (do conjunto da coletividade), mas aquele dos estelionatários, das sórdidas camarilhas, das corporações cabulosas, dos seletivos compadrios. Não se mira a grandeza republicana de um Projeto de Sociedade, de Nação ou de País, mas, tão somente, a mediocridade entorpecida de um Projeto privativo de Poder – com o uso pervertido e patrimonialista do Estado, em todas as suas teias e combinações.
Eis, enfim, as variáveis encadeadas da dilacerante equação política do país. E a decifração terminativa de sua máxima e pungente charada.
A “democracia republicana”, formalmente subscrita na Constituição “Cidadã”, há muito foi capturada e raptada pelas garras vorazes da cleptocracia oligárquica (renovada em suas chefias, capatazias e consórcios) e metamorfoseada num regime político em que o depositário último do poder não é (nunca foi) o povo (demo), mas os corruptos e ladrões (clepto) – tornando toda a paisagem, na superfície, uma traiçoeira e aleivosa miragem.
Sim, a “democracia”, no Brasil, é uma impostura. Ilusão. E a política, que para Proudhon (1809 – 1865) deveria ser a “ciência da liberdade”, longe está de cumprir o seu desígnio utópico, pois eivada de vícios, logros e ilicitudes. Eis porque, na crença de Renan (1823 – 1892), “a revolução do futuro será o triunfo da moral sobre a política” – já que esta, por ora, tem usado o homem (a sociedade) como um meio, e não como um fim.
Sem moral, sem ética, sem princípios, sem a justa mentalidade compromissada com o interesse geral e o bem comum não é possível a liberdade, a proclamação da república, a supremacia democrática. Para isso, não carecem normas e regulamentos – estes sobram. O que falta é caráter e decência – e, como base de tudo, educação, educação e educação.
Disso depende o futuro do país, no século XXI. Sua fortuna ou sua miséria. Sua soberania ou escravidão.
Alex Fiúza de Mello. Professor Titular (aposentado) de Ciência Política da Universidade Federal do Pará (UFPA). Mestre em Ciência Política (UFMG) e Doutor em Ciências Sociais (UNICAMP), com Pós-doutorado em Paris (EHESS) e em Madrid (Cátedra UNESCO/Universidade Politécnica). Reitor da UFPA (2001-2009), membro do Conselho Nacional de Educação (2004-2008) e Secretário de Ciência e Tecnologia do Estado do Pará (2011-2018).
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