A declaração da suspeição do ex-juiz Sergio Moro pelo Supremo Tribunal Federal (STF) para julgar o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva já começou a anular todo um esforço de investigação empreendido pela força-tarefa da Lava Jato de Curitiba, com apoio da Polícia Federal, nos últimos sete anos.
Ato contínuo ao reconhecimento do STF de que Moro foi parcial no processo do tríplex do Guarujá, todas as provas, colaborações e depoimentos tomados ao longo da apuração do Ministério Público Federal (MPF) do Paraná contra o petista se tornaram “imprestáveis”, para usar um jargão jurídico.
Isso significa que não podem ser reaproveitadas pela Justiça Federal e o MPF do Distrito Federal, para onde foram encaminhadas as suspeitas de corrupção e lavagem de dinheiro que recaiam sobre Lula no caso da cobertura no litoral paulista. Ou seja, para prosperar, a investigação teria que começar novamente do zero, com nova coleta de provas e testemunhos para embasar outra denúncia (pedido de abertura de ação criminal) à Justiça.
“Quando o Supremo Tribunal Federal declarou a incompetência do ex-juiz Sérgio Moro para o julgamento de Luiz Inácio Lula da Silva, reconheceu também, implicitamente, a incompetência dos integrantes da força-tarefa Lava Jato responsáveis pelas investigações e, ao final, pela apresentação da denúncia”, opinou, na última segunda-feira (28), o ministro Ricardo Lewandowski, ao determinar que a Justiça Federal não pode mais usar as informações do acordo de leniência da Odebrecht na ação penal relativa ao caso da doação de um terreno ao Instituto Lula. Ou seja, como o acordo de leniência fez parte do trabalho da força-tarefa, ele também estaria maculado.
Lewandowski afirmou ainda que “a suspeição constitui causa de nulidade absoluta” e que “não apenas a suspeição, mas também a incompetência dos juízes — e mesmo a dos membros do Ministério Público — configura causa de nulidade absoluta” do processo.
O ministro do STF seguiu raciocínio parecido com o do colega Gilmar Mendes, que na semana anterior havia estendido os efeitos da suspeição de Sergio Moro no caso tríplex para os outros dois processos envolvendo o ex-presidente que foram remetidos ao juízo do Distrito Federal: o sítio de Atibaia e o terreno do Instituto Lula. Todos os atos decisórios do ex-juiz nessas ações, inclusive na fase pré-processual, foram anuladas por decisão monocrática de Gilmar.
Em seu despacho, o ministro afirmou que Lula foi processado nas três ocasiões em um “cenário permeado pelas marcantes atuações parciais e ilegítimas do ex-juiz Sergio Fernando Moro”. “Assim, por isonomia e segurança jurídica, é dever deste Tribunal, por meio do Relator do feito, estender a decisão aos casos pertinentes”, sustentou Gilmar.
“Com essa extensão que atende ao pedido que formulamos, todos os processos em que o ex-juiz Sergio Moro atuou envolvendo o ex-presidente Lula estão maculados pela nulidade irremediável — de forma de que nenhum ato poderá ser reaproveitado em qualquer instância”, disse na ocasião, em nota, o advogado Cristiano Zanin Martins, que representa Lula.
Por enquanto, a anulação do acordo de leniência da Odebrecht só vale para o caso de Lula. Mas, se a mesma lógica da manifestação de Lewandowski for usada, outros casos podem ser impactados.
A gente tem sido surpreendido com decisões bastante inusitadas, diz ex-procurador da Lava Jato
O procurador da República Roberson Pozzobon, que foi membro da força-tarefa da Lava Jato de Curitiba, reagiu assim à decisão de Lewandowski: “a gente tem sido surpreendido com decisões bastante inusitadas em relação aos casos da Lava Jato e seus desdobramentos. Com todo o respeito, a decisão partiu de premissas completamente equivocadas.”
Pozzobon destaca que o acordo de leniência da Odebrecht “trouxe, talvez, o maior acervo probatório de corrupção sistêmica da história do mundo”, e mostra preocupação com o futuro desse acervo. “A gente está falando de mais de uma década de corrupção retratadas em sistemas com autenticidade confirmada por autoridades de três países – Brasil, Estados Unidos e Suíça. Há documentos bancários comprovando lavagens de dinheiro e corrupção. A gente está falando de centenas de políticos no Brasil, com partidos envolvidos, de presidentes e ex-presidentes de toda a América Latina, dos países onde a Odebrecht atuava… É preocupante uma decisão que torna sem efeito todo esse rico acervo probatório que mostra os fatos como eles aconteceram”, diz.
Cooperação informal entre países foi tratada como irregular por Lewandowski
A suspeição de Moro ocupa as páginas finais da extensa manifestação de Lewandowski para anular o acordo de leniência com a Odebrecht no caso de Lula, mas não foi o único nem principal motivo controverso para sustentar essa decisão.
O fundamento inicial levantado pelo ministro foi o contato estabelecido entre autoridades brasileiras e estrangeiras sem emprego dos canais formais que devem ser empregados para isso. “Foi possível constatar que, efetivamente, ocorreram inúmeras tratativas com autoridades, entidades e pessoas estrangeiras a respeito da documentação pleiteada pela defesa, tudo indicando que passaram ao largo dos canais formais, quer dizer, que teriam acontecido à margem da legislação pertinente à matéria”, disse Lewandowski.
Pozzobon explica que a necessidade legal de formalização, que deve ocorrer no Ministério da Justiça por meio do Departamento de Recuperação de Ativos e Cooperação Jurídica Internacional (DRCI), não exclui a possibilidade de um contrato prévio entre autoridades.
“Isso não tem nada de errado”, afirma. “É comum, é corriqueiro, e até recomendado em vários tratados internacionais que exista o contato direto e não formalizado entre autoridades estrangeiras, até para que se consigam formalizar os pedidos de cooperação internacional pelos canais diplomáticos da melhor forma possível”
Segundo ele, há dois tipos de contato entre autoridades estrangeiras. O primeiro tipo, que demanda a formalização por meio de uma autoridade central, são os pedidos de cooperação internacional, que visam a produzir provas para uso em processo. “Tudo o que tramitou na Lava Jato e que diz respeito a provas tramitou por meio do Ministério da Justiça, que é a autoridade central”, afirma Pozzobon.
“Nunca houve nenhuma irregularidade — e eu estou falando aqui de mais de 500 pedidos de cooperação internacional realizados no âmbito da Lava Jato, com 58 países. Nunca houve nenhuma irregularidade reconhecida pelo Poder Judiciário em todos esses procedimentos.”
O procurador diz que, além do contato formalizado, costuma haver entre autoridades estrangeiras na área de persecução penal algumas conversas que ocorrem “antes, durante e depois dos pedidos de cooperação, quando formalizados”. “Essas conversas ocorrem por diferentes formas: ligações, telefonemas, mensagens, e-mails… Embora elas tenham caráter oficial — não são conversas particulares —, elas não são formalizadas necessariamente, porque são contatos prévios.”
Pozzobon ainda esclarece que esse tipo de contato é recomendado pelo Grupo de Ação Financeira Internacional (GAFI), uma organização internacional que define as boas práticas de prevenção e repressão da lavagem de dinheiro no mundo, e da qual o Brasil é membro. A mesma recomendação também aparece na Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção, e também é feita pelo Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime. Além disso, indicações semelhantes constam nos manuais da Advocacia-Geral da União (AGU) e da 2ª Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal, segundo o procurador.
“Não entendo alguém falar que, ocorrido esse contato, que é recomendado, haveria nulidade no acordo da Odebrecht. Isso nos deixa absolutamente perplexos e preocupados. Se um factoide como esse, que foi reproduzido em alguns veículos da imprensa, de que teria ocorrido uma cooperação internacional sem observar formalidades na Lava Jato, repercutiu em uma decisão como essa, tudo mais pode acontecer”, critica.
Para o procurador, vários acordos da Lava Jato podem ser afetados pela justificativa apresentada por Lewandowski. “Não estamos falando só do ex-presidente. A própria higidez do Brasil nos seus procedimentos de cooperação internacional depende disso. Tem vários acordos celebrados — inclusive com a participação da AGU e CGU (Controladoria-Geral da União) — que ocorreram exatamente da forma como as negociações dos acordos de leniência da Odebrecht e da Braskem aconteceram.”
Ele cita os casos do acordo de leniência com o estaleiro Keppel Fels, que ocorreu após uma cooperação entre os governos de Brasil, Estados Unidos e Singapura, com a Technip, que envolveu cooperação entre Brasil e EUA, e com a Samsung, em que também houve cooperação com os norte-americanos. “Nada de diferente ocorreu no acordo de leniência que também não tivesse acontecido de forma recomendada em todos esses acordos.”
Pozzobon espera que a decisão seja revista. “É fundamental para o combate à corrupção, para o enfrentamento da macrocriminalidade organizada, que o Brasil siga com as boas práticas em termos de cooperação internacional. Torço para que essa decisão seja não apenas um caso isolado, mas um caso revisto.”
Ele critica, ainda, a ausência do contraditório na manifestação de Lewandowski. “Não tem o contraditório. É só a defesa que fala lá. Se o Ministério Público tivesse sido ouvido, se o DRCI (Departamento de Recuperação de Ativos e Cooperação Jurídica Internacional) tivesse sido ouvido, e as demais autoridades que participaram dos acordos, se verificaria que algumas das premissas da decisão para impedir o uso das provas estão descoladas da realidade e das boas práticas internacionais.”
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