O Supremo Tribunal Federal (STF), por meio de uma liminar concedida pelo ministro Gilmar Mendes, determinou, nesta segunda-feira (28), que o Ministério da Saúde adote medidas específicas para atender transexuais e travestis dentro do Sistema Único de Saúde (SUS). No mesmo dia, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) publicou um manual para orientar juízes e magistrados de todo o país a como agir em casos de LGBTs acusados, condenados pela Justiça ou presos.
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Para especialistas na área do Direito ouvidos pela reportagem, esses posicionamentos do Judiciário, adotados com a justificativa de viabilizar a garantia de direitos fundamentais a uma parcela específica da população, podem ser perigosos. Mesmo que se alegue que esse tipo de decisão seja necessária para evitar a discriminação contra LGBTs, na prática elas podem fortalecer estigmas e até se concretizar em discriminação a outros grupos.
Esse é o alerta feito por Antonio Jorge Pereira Jr., doutor em Direito pela USP, professor de mestrado e doutorado em Direito Constitucional da Universidade de Fortaleza. Ele lembra que um dos princípios básicos que deve orientar o sistema jurídico é a igualdade humana. Quando o Judiciário adota um tratamento que ultrapassa a tolerância e o respeito e se converte em promoção ou privilégio a determinados grupos, pode estar, a despeito de qualquer boa intenção, fazendo uma “discriminação às avessas” com aqueles que não fazem parte de determinado público. “Isso tende a gerar mais suscetibilidade de alguns e sentimento de superioridade em outros, em detrimento da igualdade que a Lei e a Justiça deve ter com todas as pessoas”, salienta.
Acesso ao SUS para travestis e transexuais
O ministro Gilmar Mendes, do STF, atendeu a um pedido do Partido dos Trabalhadores (PT) e concedeu liminar determinando que o Ministério da Saúde altere os sistemas de informação do SUS para atender travestis e transexuais. Pela decisão, o ministério terá 30 dias para promover as mudanças.
Atualmente, os sistemas de gestão de consultas e atendimentos feitos pelo SUS só permitem o acesso a algumas especialidades, a determinados gêneros. Como exemplo, uma consulta com um ginecologista só pode ser marcada para uma mulher; do mesmo modo, apenas uma mulher grávida pode fazer pré-natal. Por isso, homens transexuais (que nasceram biologicamente mulheres e possuem órgãos femininos, como útero) tinham dificuldade em serem atendidos por um ginecologista ou, no caso de gravidez, de fazerem o acompanhamento pelo SUS.
Com a liminar, o agendamento de consultas e exames para pessoas trans será feito em conformidade com o sexo biológico, independentemente do gênero autodeclarado ou registrado em documentos oficiais. Hoje, a Justiça determina que as pessoas trans podem mudar seus nomes e mesmo o gênero que consta em documentos como certidão de nascimento, carteira de motorista e carteira de trabalho.
O que diz o Manual do CNJ
O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) também escolheu o chamado “Dia Internacional do Orgulho LGBTQIA+”, 28 de junho, para lançar um manual com orientações para juízes sobre como pessoas LGBT devem ser tratadas pela Justiça. O manual é um desdobramento da Resolução 348/2020, também do CNJ, que estipula as diretrizes e procedimentos a serem observados pelo Poder Judiciário, no âmbito criminal, com relação ao tratamento da população lésbica, gay, bissexual, transexual, travesti ou intersexo. As medidas valem para custodiados, acusados, réus, condenados, privados de liberdade, em cumprimento de alternativas penais ou monitorados eletronicamente.
Além de conceitos norteadores do tema – como legislação de referência, glossário de termos, dados sobre autodeclaração e uso de nome social – o manual reúne diretrizes para a aplicação de medidas relacionadas à definição do local de privação de liberdade de LGBTs, assim como quanto à ocorrência de relatos de violência ou grave ameaça, bem como especificidades de mulheres lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais e de homens transexuais.
Outro ponto abordado é o da identificação de LGBTs, que deve ser feito exclusivamente por meio de autodeclaração, assim como consulta quanto ao gênero da unidade e ala onde prefere cumprir a custódia. O texto também garante o direito à maternidade de mulheres lésbicas, travestis e transexuais e aos homens transexuais, além de disposições sobre a garantia de assistência material, à saúde, jurídica, educacional, laboral, social e religiosa. De acordo com a normativa, as diretrizes se aplicam também a procedimentos da justiça juvenil e durante a execução da medida socioeducativa.
No texto, ressalta-se a necessidade de um suporte de equipe multidisciplinar para fornecer subsídios técnicos para acesso a programas, serviços e políticas públicas concernentes aos direitos dessa população em qualquer fase judicial, inclusive na estrutura da justiça juvenil. O CNJ reforça ainda o direito ao acesso a tratamento hormonal e manutenção, garantia de atendimento psicológico e psiquiátrico e cuidados no contexto da Covid-19. E há orientações quanto à assistência religiosa, acesso a trabalho, a educação e a demais políticas ofertadas nos estabelecimentos prisionais e socioeducativos.
O manual também elenca precedentes, decisões paradigmáticas e boas práticas nacionais e internacionais – entre elas, decisões do STF, do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e da Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH), além de normativas e demais conteúdos técnicos na área.
Órgão político?
Pereira Jr explica que o CNJ é um órgão administrativo do Judiciário e não político, portanto não pode adotar medidas que evidenciam algum posicionamento político, seja ele qual for. Igualmente, não deve impor normas que extrapolem a igualdade de tratamento. Na opinião do professor, a maior parte dos brasileiros que por algum motivo estão no sistema de justiça criminal não têm a devida atenção do CNJ. Por isso, o jurista avalia que a ação direcionada à população LGBT pode ser enquadrada como tratamento diferenciado.
“O CNJ deveria atender necessidades prementes dos jurisdicionados, independentemente de orientação sexual e identidade de gênero. O respeito geral é devido a todos. Normatizar privilégios e modos diferenciados de tratamento para além das semelhanças é discriminar uns em relação aos outros; é criar privilégios onde não se justifica”, ressalta Pereira Jr.
Ativismo no STF
Além do CNJ, as medidas voltadas para o público LGBT no STF também têm tido destaque. Foi a Corte, por exemplo, que equiparou a discriminação de LGBT ao crime de racismo em 2019; a medida mais recente foi determinar a adequação do SUS ao atendimento de travestis e transexuais. No entender do professor e mestre em Direito Público Henrique Quintanilha, esse e outros posicionamentos do STF ultrapassam a esfera jurídica e invadem competências do Legislativo.
Ele ressalta que repetidamente partidos políticos ou grupos, após tentarem, sem sucesso, aprovar determinadas propostas no âmbito do Legislativo, recorrem ao Judiciário para obter o que desejam. “Essa sincronia entre partidos e o STF tem chamado atenção por tratar não de assuntos urgentes e que poderia haver uma omissão do legislador, mas em temas exclusivamente ideológicos, que normalmente não mudam a realidade das pessoas”, diz.
Para Quintanilha, nesses casos sempre há uma “opção política” do julgador em relação a quem favorecer, o que quebra a premissa básica de a Justiça ser imparcial e coloca a figura do juiz como um ator político, que decide muitas vezes com base em suas convicções politico-ideológicas. Isso, segundo o jurista, é pernicioso ao Sistema Judiciário na medida em que pode desviar a atenção dos verdadeiros problemas e necessidades da população.
“A violação à dignidade e à igualdade começa, no mais das vezes, dentro do próprio sistema de Justiça, seja na penitenciária, seja nos tribunais superiores, e isso nada tem a ver com ser o réu ou condenado declaradamente inserido na chamada população LGBT”, ressalta.
Para ele, posicionamentos como o adotado pelo CNJ seguem a linha do “politicamente correto”, que em nada muda a realidade, nem dos presos, nem das vítimas. “A não ser para pior ou para causar ainda mais confusão para quem vai aplicar isso: juízes de execução penal e policiais penais”, alerta.
Falta de discussão com a sociedade
Na avaliação de André Fernandes, professor de Filosofia do Direito da CEU Law School, pesquisador da Unicamp e professor-visitante da Universidade de Navarra, é preciso analisar esses posicionamentos do CNJ e do STF a partir de um viés mais amplo. Para ele, diversos órgãos judiciários acabaram adotando pautas progressistas e isso sem discuti-las com a sociedade.
No caso das políticas de gênero e pessoas LGBT, para o professor posições defendidas por órgãos internacionais como a Organização das Nações Unidas foram assumidas quase que “por osmose” pelo Judiciário brasileiro. Ele ressalta que, mesmo existindo posições discordantes, praticamente não há espaço ao contraditório.
Segundo Fernandes, com o tempo as posições dos órgãos judiciários acabam por envolver todas as instâncias da Justiça.
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