A postagem ficou no ar por poucas horas, mas os prints renderam um dia de críticas e debates na internet: na noite do último domingo (27), a deputada federal Jandira Feghali, do Partido Comunista do Brasil (PCdoB), publicou em sua conta uma “meme” do ditador Josef Stálin, responsável pelo assassinato de pelo menos 10 milhões de pessoas no período em que esteve à frente da União Soviética.
O tom supostamente humorístico da publicação, que fazia referência às informações levantadas pela CPI da Covid-19, não impediu as críticas. “Deputada, este homem é um dos maiores genocidas do século XX. Não se faz piada com isso”, criticou um jornalista. Internautas também questionaram críticos do presidente Jair Bolsonaro que o classificam como “genocida”, mas não se manifestaram diante da “piadinha” envolvendo o ditador sanguinário. Na segunda-feira, o tema permaneceu entre os assuntos mais comentados do Twitter. A reportagem tentou contato com a deputada para entender o que a levou a publicar e, em seguida, apagar a postagem; mas não obteve retorno.
Ocorre que relativizar ou, como popularmente se diz, “passar pano” para a figura Josef Stalin não é exatamente uma novidade dentro do partido de Jandira Feghali. O nascimento do PCdoB remonta, justamente, ao rompimento de uma corrente declaradamente stalinista do primeiro Partido Comunista Brasileiro, conhecido como PCB, uma história documentada no próprio site da antiga legenda.
“A partir de relatório do XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética, que denunciava os desvios à legalidade socialista e o culto à personalidade nos tempos de Stalin, ocorreu uma grande discussão no interior Partido (…). Um pequeno grupo de companheiros, inconformados com o apoio do partido ao Relatório Kruschev e com o documento conhecido como Declaração de Março, de 1958, no qual o partido adequava sua política às novas circunstâncias, resolveu abandonar o PCB e criar outra legenda”.
O Relatório Kruschev em questão, também conhecido como “discurso secreto”, foi nada menos do que um discurso do primeiro-ministro Nikita Kruschev sobre os crimes praticados por seu antecessor – que viriam a ser conhecidos como “crimes do comunismo”. Sua fala, proferida diante do alto escalão do partido, foi documentada e circulou pela URSS em 1956 gerando grandes rupturas no bloco comunista.
“É claro que Stalin mostrou em toda uma série de casos sua intolerância, sua brutalidade e seu abuso de poder. Em vez de provar sua correção política e mobilizar as massas, muitas vezes ele escolheu o caminho da repressão e aniquilação física, não só contra os inimigos reais, mas também contra as pessoas que não tinham cometido qualquer crime contra o partido e o governo soviético”.
Alguns militantes passaram a defender uma “revolução pacífica”. Outros, que as palavras de Kruschev haviam sido plantadas pela CIA. E foi esta corrente que, no Brasil, deu origem ao partido de Jandira Feghali, Manuela D’Ávila e, até poucos dias atrás, do governador do Maranhão, Flávio Dino.
Liderado por João Amazonas, Maurício Grabois e Pedro Pomar, o grupo de dissidentes reivindicou o título de “verdadeiro” Partido Comunista (o PCB mudou para “Brasileiro”) e rechaçou a “via pacífica” para a revolução, rompendo com o secretário Kruschev e criando laços com a China de Mao Tse-Tung e com o Partido Comunista da Albânia, então liderada por Enver Hoxha. Também assumiram o compromisso de defender o “legado de Stalin”.
Não é preciso recorrer a fontes conservadoras ou liberais para checar a história: “a relação com o partido albanês era tão forte que os militantes do PC do B aprofundaram o culto a Stalin. Em sua conferência de 1978, decidiu que o partido comemoraria 1979 como ‘O Ano Stalin’. A pequena, camponesa e atrasada economicamente Albânia passou a ser considerada pelos dirigentes e militantes do PC do B ‘o farol da humanidade'”, conta o portal do extinto PCB, que relata a ausência de autocríticas do partido dissidente com relação aos crimes do comunismo.
Já no portal do PCdoB, permanece um artigo de 2018 que comemora a Batalha de Stalingrado, na qual os soviéticos enfrentaram a Alemanha nazista. O episódio é descrito com as seguintes palavras: “há 75 anos, no dia 2 de fevereiro, o Exército Vermelho Soviético, sob a lúcida direção política do Partido Comunista liderado por Stálin e contando com o inaudito heroismo das massas populares, triunfava num dos episódios mais importantes da Segunda Guerra Mundial”.
Uma busca pela tag “Stalin”, onde se encontra o primeiro texto, não traz nenhum resultado sobre o Grande Expurgo, que dizimou pelo menos 750 mil pessoas, nem sobre o Holodomor, a grande fome da Ucrânia. Por causa da experiência traumática, partidos declaradamente comunistas são proibidos na Ucrânia e na Polônia. No Brasil, um projeto de lei visa proibir a apologia ao comunismo, equiparando-o ao nazismo. Está parado na Câmara dos Deputados desde 2016.
De lá para cá, o PCdoB segue sem reconhecer as atrocidades de figuras como Stalin e Mao. O berço stalinista do partido ajuda a explicar o motivo de a ex-candidata à vice-presidente Manuela D’Ávila ter respondido de forma evasiva à pergunta sobre a ausência de autocríticas do partido com relação aos seus “ídolos” históricos. “Acho que aquele ciclo foi de guerra e de mortes no mundo inteiro. É o ciclo da bomba atômica”, disse Manuela, em entrevista ao programa Roda Viva. O “meme” de Jandira Feghali, portanto, não é nenhuma surpresa. Trata-se de mais uma prova de que, para parte da esquerda, acusar opositores de genocídio é muito mais fácil do que reconhecer os mais notórios exemplares dentro de casa.
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