A segunda “fatia” da reforma tributária

Uma verdadeira reforma tributária não passa apenas pela simplificação dos impostos, embora no caso brasileiro ela seja extremamente bem-vinda e, sozinha, já seria um enorme avanço, dado o manicômio tributário atual, que suga tempo, pessoal e esforços das empresas de maneira desproporcional. A oportunidade deveria também ser aproveitada para se rever a própria estrutura atual da tributação no Brasil, que onera demais a produção e o consumo – punindo, assim, especialmente os mais pobres. Uma redução drástica nestes impostos teria um enorme efeito benéfico, barateando produtos e serviços, e poderia ser compensada por uma tributação maior sobre patrimônio e renda, sempre com atenção ao princípio da justiça tributária – paga mais quem ganha mais.

É com essas linhas-mestras em mente que se pode avaliar a segunda parte da reforma tributária enviada pelo governo federal na semana passada, que trata exatamente do Imposto de Renda – tanto da pessoa física quanto da pessoa jurídica –, além de tributação sobre dividendos e certos tipos de investimento, entre outros itens. O texto, embora tenha seus pontos positivos, também tem limitações que já tiveram repercussão imediata no meio empresarial e revela, mais uma vez, as deficiências da opção por uma reforma fatiada em vez de se apresentar um texto abrangente.

O governo terá pouca margem para a necessária redução dos impostos sobre produtos e serviços, a não ser que busque compensações em outro lugar ainda não conhecido ou opte por soluções impopulares como a “nova CPMF”

A atualização da tabela do Imposto de Renda Pessoa Física foi promessa de campanha de Jair Bolsonaro e é um dos principais chamarizes para se conseguir apoio à reforma, mas a verdade é que o reajuste é uma questão de justiça. Desde 1996, a defasagem da tabela (quando ela não é reajustada de acordo com a inflação) já é de 113,09%, nos cálculos do Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal (Sindifisco), que faz esse acompanhamento há muitos anos. Cada ano sem correção, ou com correção abaixo da inflação, representa aumento indireto de impostos; para a defasagem ser zerada, a isenção deveria atingir quem recebe até R$ 4 mil mensais; na proposta do governo, esse valor será de R$ 2,5 mil (contra os R$ 1,9 mil atuais), o que reduz, mas não anula a defasagem.

No entanto, o reajuste da tabela é compensado com o fim do desconto simplificado para quem receber mais de R$ 40 mil no ano. A mudança pesará especialmente no bolso de trabalhadores da classe média que têm poucas deduções a fazer com dependentes e despesas com saúde e educação, já que para essas pessoas a declaração simplificada compensa em comparação com a declaração completa, podendo representar até mesmo a diferença entre receber restituição e ter mais impostos a pagar.

Compensação semelhante ocorrerá com as empresas, que terão alíquota diminuída no Imposto de Renda Pessoa Jurídica, mas terão sua base de cálculo afetada pelo fim dos Juros sobre Capital Próprio. Vários economistas já alertaram que essa alteração, na melhor das hipóteses, pode zerar a economia feita com a alíquota menor de IRPJ – na pior das hipóteses, haverá empresas pagando ainda mais impostos. Isso explica ao menos parte do desempenho da bolsa de valores brasileira, que regrediu após o anúncio da segunda fase da reforma tributária.

O que fica claro é que houve uma preocupação da parte do governo em fazer com que essas alterações resultassem em um “zero a zero”, ao fim das contas – o aumento de arrecadação previsto, de R$ 900 milhões em 2022, parece substancial, mas em termos proporcionais ele é ínfimo diante da receita trilionária levantada pelo poder público todo ano. No entanto, ao garantir que cada “pedaço” da reforma seja uma entidade autônoma com seus próprios contrapesos e compensações, o fatiamento revela sua incapacidade de alterar substancialmente a estrutura da tributação brasileira.

O parlamento e a opinião pública encarariam com desconfiança natural (e justificada) uma reforma do IR que aumentasse a carga tributária sobre o patrimônio e a renda sem que a contrapartida na redução dos impostos sobre produção e consumo já tivesse sido proposta. Como esta segunda parte da reforma foi desenhada para ter impacto nulo sobre a carga total, a tendência é que as outras duas partes também sejam elaboradas dessa forma; com isso, o governo tem pouca margem para a necessária redução dos impostos sobre produtos e serviços, a não ser que busque compensações em outro lugar ainda não conhecido ou opte por soluções impopulares como a “nova CPMF”. É o tipo de situação que poderia ser evitado se o governo tivesse apresentado a proposta completa, permitindo uma redistribuição mais significativa da carga tributária com todas as contrapartidas já previstas. A estratégia do fatiamento, portanto, tem tudo para seguir onerando pesadamente a produção e o consumo, desperdiçando uma chance única de melhorar o ambiente de negócios brasileiro.

Confira a matéria na Gazeta do Povo

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