Foi uma mudança súbita: antes considerados uma alternativa segura por pais que pretendiam deixar os filhos longe dos embates ideológicos do mundo dos adultos, os desenhos animados deixaram de lado a neutralidade — pelo menos quando o assunto é a defesa do movimento gay e das cada vez mais numerosas categorias de gênero.
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Não há novidade no uso de desenhos animados para introduzir temas educativos — como as lições de He-Man ao fim de cada episódio ou a defesa, em Capitão Planeta, da preservação do meio ambiente. Mas, até poucos anos atrás, os desenhos não pretendiam ensinar as crianças sobre temas controversos, sobre os quais não há consenso — como o casamento gay. Esse tempo ficou para trás. Se algum pai ou mãe ainda tinha dúvidas, o mês de junho (mês do orgulho LGBT nos Estados Unidos e agora também no Brasil) deixou isso mais claro. Algumas das principais produtoras de desenhos infantis aderiram às celebrações, e decidiram produzir vídeos com a temática para o público infantil.
O canal do Nickelodeon no YouTube, por exemplo, publicou um vídeo em que a drag queen Nina West canta uma música sobre o mês do orgulho LGBT, explicando as cores da bandeira do movimento. “Azul, rosa e branco representam as pessoas transgênero / Porque cada letra em LGBTQ+ é igual / E preto e marrom representam as pessoas de cor gay e trans”, ela explica, em meio a animações coloridas e com traços infantis. O refrão diz: “Não lhe enche de orgulho mostrar quem você é por dentro?/ Com essa bandeira do orgulho no alto, seja verdadeiro consigo mesmo”.
O Cartoon Network se juntou ao concorrente para comemorar o mês LGBT. O canal exibiu um vídeo que, além de uma “família” com dois pais, tem como protagonista uma adolescente que se identifica como um garoto. “O Cartoon Network está celebrando crianças e famílias LGBTQIA+ que irradiam alegria, inclusividade e autoexpressão autêntica”, anuncia a narradora, entusiasmada.
Como é impossível explicar o que significa LGBTQIA+ (sigla que abarca, dentre outros, bissexuais, transexuais, intersexuais e assexuais) sem explicar o que é sexo, o conteúdo apresentado por esses canais infantis acaba por antecipar uma discussão delicada e fortemente ligada ao campo dos valores morais.
A Disney+, serviço de streaming da Disney, também produziu conteúdo para marcar o mês LGBT. Em seu canal no YouTube, a companhia publicou um minidocumentário da Marvel que celebra como “heroína” uma criança de 12 anos que nasceu um garoto e se identifica como garota. “Esta é uma mensagem realmente importante que nós temos que compartilhar com as próximas gerações”, diz, no vídeo, Sana Amat, vice-presidente de conteúdo da Marvel.
Já a Pixar, que pertence à Disney, veiculou a animação “Out”, que trata de um rapaz que se assume gay para os pais. Em um breve depoimento antes do início das cenas, o diretor Steven Hunter comemorou o fato de que o desenho inclui um beijo gay: “Eu nunca tinha visto dois caras se beijando em um filme da Disney”.
Nos últimos anos, as pautas do movimento LGBT ganharam espaço no mundo dos desenhos infantis — mesmo aqueles cujo público ainda está nos primeiros anos de vida. Dentre os desenhos que ganharam personagens LGBT, temporários ou permanentes, estão Clifford, Doutora Brinquedos, Ducktales, Meu Pequeno Pônei e Arthur. A Netflix foi mais longe e lançou SuperDrags, uma animação sobre um grupo de drag queens que combate o crime. Além disso, uma breve pesquisa no YouTube Kids, plataforma destinada às crianças, exibe uma variedade de vídeos com a temática LGBT.VEJA TAMBÉM:
Efeitos comprovados
A presença de conteúdo LGBT na programação infantil não significa que as crianças que consomem esse tipo de programação vão se tornar gays ou transexuais. Mas, se os estudos sobre a influência da TV sobre as crianças estiverem corretos, é provável que elas se tornam no mínimo mais inclinadas a adotar posições menos ortodoxas em temas como o casamento gay ou a mudança de gênero. O argumento de que esses “são apenas desenhos”, que não têm efeitos notáveis sobre o comportamento das crianças, já foi refutado: a programação infantil tem o poder de influenciar os telespectadores, para o bem e para o mal.
O Stanford Children’s Health, da Universidade de Stanford, por exemplo, adverte os pais a terem cuidado antes de exporem as crianças a certos tipos de conteúdo – embora não mencione especificamente a questão da homossexualidade. “Conforme as crianças crescem e se desenvolvem, elas podem facilmente ser influenciadas pelo que elas veem e escutam, especialmente nas mídias digitais”, diz o texto, explicando que essa categoria abarca a TV, a internet e smartphones. “Os dados demonstrando a influência negativa da exposição de crianças à violência, sexualidade inapropriada e linguagem ofensiva são convincentes”, apontou outro estudo, publicado pelo National Institute of Health, entidade do governo americano.
Pesquisadores já atestaram que a exibição de desenhos animados com o conteúdo adequado é capaz de influenciar crianças a adotarem hábitos mais saudáveis, como o de comer vegetais. “O que quer que as crianças aprendam enquanto assistindo aos desenhos animados, eles tendem a imitar, influenciando, portanto, seu modo de socializar com outras crianças e com o mundo”, afirmaram pesquisadores da Nigéria em um estudo similar.
Um levantamento feito com crianças adolescentes israelenses apontou que crianças mais vulneráveis tendem a se identificar mais intensamente com personagens com comportamento negativo, enquanto as crianças não-vulneráveis tinham mais propensão a seguir os modelos positivos. “A ligação que as crianças desenvolvem com os personagens de TV é similar aos relacionamentos que as crianças costumavam ter como partes de uma família estendida dentro de uma tribo ou um clã”, afirma o artigo.
No Brasil, o debate sobre o efeito da programação infantil ganhou força há alguns anos, quando organizações como o Instituto Alana começaram a advogar pela proibição da publicidade infantil. O argumento era o de que meninos e meninas são mais suscetíveis ao conteúdo audiovisual. “A publicidade na TV e na internet são as principais ferramentas do mercado para a persuasão do público infantil, que cada vez mais cedo é chamado a participar do universo adulto quando é diretamente exposto às complexidades das relações de consumo sem que estejam efetivamente preparado para isso”, diz um dos relatórios produzidos pela organização.
O Alana conseguiu o que pretendia. Em 2014, uma resolução do Conanda barrou esse tipo de divulgação para crianças de até 12 anos. “Considera-se abusiva, em razão da política nacional de atendimento da criança e do adolescente, a prática do direcionamento de publicidade e de comunicação mercadológica à criança, com a intenção de persuadi-la para o consumo de qualquer produto ou serviço e utilizando-se, dentre outros, dos seguintes aspectos: linguagem infantil, efeitos especiais e excesso de cores, trilhas sonoras de músicas infantis ou cantadas por vozes de criança (…) desenho animado ou de animação”, afirma o texto.
Como os desenhos com temática LGBT são recentes, não existem estudos aprofundados sobre o efeito desse tipo de conteúdo sobre as crianças. Mas há indícios de que o consumo de conteúdo sobre transexualidade na internet está associado a um fenômeno chamado de “disforia de gênero de desenvolvimento rápido”. O termo, cunhado pela pesquisadora Lisa Litmann, da Universidade de Brown, se refere a adolescentes, geralmente do sexo feminino, que passam subitamente a se identificar como transexuais, em parte por causa da influência do meio e da pressão de colegas.
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