“Depois disso tudo, já não vejo a ciência como um domínio exclusivo. Todo mundo poder fazer a diferença.” (The Seeker, jovem indiano membro do Drastic)
“Foi fascinante observar, no curso da minha investigação ao longo do último ano, como esse grupo de ativistas – em parceria com alguns poucos bravos cientistas – arrancou das sombras a hipótese de origem laboratorial.” (Ian Birrell, jornalista britânico)
Os leitores desta coluna já haviam tomado conhecimento do “Drastic” – acrônimo para Decentralized Radical Autonomous Search Team Investigating Covid-19 (“Equipe descentralizada, radical e autônoma de investigação da Covid-19”) – no artigo do dia 9, que desnudava a vergonhosa atuação da imprensa autoproclamada “profissional” na cobertura (ou, antes, na ocultação) da origem da pandemia. Aquela foi, possivelmente, a primeira vez que o nome do grupo deu as caras num veículo de imprensa brasileiro.
No artigo da semana passada, por sua vez, comecei a descrever mais detalhadamente a atuação desses detetives diletantes que, por meio de um mutirão virtual para a coleta de dados e evidências, conseguiu romper a espiral de silêncio midiática, driblar a censura das Big Techs e forçar o ingresso da hipótese de origem laboratorial do novo coronavírus no debate público mundial. Qual não foi, então, a minha surpresa ao topar no último domingo, dia 20, com uma reportagem no programa Fantástico, da Rede Globo, intitulada “Polêmica sobre origem da Covid esquenta após imagens de morcegos no que seria laboratório de Wuhan”?
Com impressionante cinismo, o tipo de fonte até então tratada com deboche, por supostamente veiculada por malucos, paranoicos e extremistas políticos desautorizados pela “ciência”, era agora usada pelo jornalismo como referência
Como num passe de mágica, e contrariando toda a orientação editorial da emissora nos últimos 15 meses, a origem laboratorial do Sars-CoV-2 passava a ser descrita como uma possibilidade legítima e não mais como “teoria da conspiração” (embora o repórter trêmulo de insegurança tenha feito questão de enfatizar, pausadamente: “pos-si-bi-li-da-de”). Com impressionante cinismo, o tipo de fonte até então tratada com deboche, por supostamente veiculada por malucos, paranoicos e extremistas políticos desautorizados pela “ciência”, era agora usada como referência – a começar, inacreditavelmente, pelos próprios integrantes do Drastic, alguns dos quais entrevistados para a matéria. Antes de entrevistá-los, contudo, a imprensa deveria era pedir-lhes perdão de joelhos.
Mas a desonestidade não parou por aí, e atingiu o paroxismo quando, numa inversão perfeitamente simétrica da realidade, os autores da reportagem acusaram o ex-presidente americano Donald Trump e seus “imitadores” (uma referência pouco sutil a Jair Bolsonaro) de haver atrapalhado, com suas “teorias conspiratórias”, a discussão sobre o possível vazamento do vírus de um laboratório em Wuhan. Sim, por incrível que pareça, a tese central da reportagem era esta: aqueles que aventaram desde o início a possibilidade de origem laboratorial do Sars-CoV-2 eram justamente os responsáveis por interditar essa hipótese, que, do contrário, caso não fora esposada por leprosos sociais, teria circulado livremente na imprensa e na rede. Já veículos como a Globo, que passaram os últimos 15 meses afirmando peremptoriamente a existência de um “consenso científico” sobre a origem natural, e estigmatizando a hipótese alternativa como “teoria da conspiração”, estariam apenas exercendo o seu trabalho de bem informar. Em suma: a culpa não fora da Globo e de seus jornalistas “gente como a gente”, que mentiram – pois nunca houve “consenso científico” algum sobre a origem natural do vírus –, mas de Donald Trump e “imitadores”, que falaram a verdade, pois a hipótese de origem laboratorial sempre esteve ancorada em evidências robustas.
Mas deixemos de lado, por ora, o descaramento da imprensa autoproclamada “profissional” em conter os danos e apagar as pistas do antijornalismo praticado – um gesto moralmente equivalente ao do homicida que, no velório, chora abraçado aos parentes de sua vítima. Voltemos ao Drastic, cujas informações cruciais sobre a origem do vírus resultaram de uma notável independência de pensamento e resiliência diante de falsos consensos, e que jamais teriam vindo a público se dependêssemos de grupos de comunicação como a Globo, que, em conluio com as agências de checagem de fatos e as Big Techs, tudo fizeram para censurá-las.
vimos como a turma do Drastic descobriu que o RaTG13 – o parente mais próximo conhecido do Sars-CoV-2, revelado ao mundo em fevereiro de 2020 num artigo de Shi Zhang-li, a “mulher-morcego” – proviera de uma mina abandonada no condado de Mojiang, na província de Yunnan, onde, em 2012, seis mineiros contraíram pneumonia, tendo três deles vindo a óbito. Diante dessa descoberta, o grupo passou a especular se seriam esses os primeiros casos de seres humanos infectados por um precursor do Sars-CoV-2, talvez o próprio RaTG13 ou algum coronavírus aparentado.
Em junho de 2020, Shi admitiu à revista Scientific American ter trabalhado na mina em Mojiang na qual três homens haviam morrido de pneumonia. No entanto, tratando de evitar qualquer associação do RaTG13 às mortes, atribuiu-as não ao vírus, mas a um fungo. A evasiva não convenceu o pessoal do Drastic, que àquela altura já suspeitava que um coronavírus havia sido o patógeno causador das mortes, e que o Instituto de Virologia de Wuhan (IVW) estava, de algum modo, tentando esconder o fato.
Foi então que um membro do Drastic de quem falamos na semana passada, o indiano de codinome The Seeker, encontrou uma peça chave do quebra-cabeça. Bisbilhotando na rede sobre as mortes em Mojiang, ele acabou descobrindo um vasto banco de dados de publicações acadêmicas chinesas, intitulado CNKI. Trabalhando incansavelmente nos seus smartphone e laptop, e recorrendo ao Google Tradutor para compreender algo dos textos em chinês, o jovem nerd já estava por desistir diante da multidão de dados quando, finalmente, esbarrou numa preciosidade: uma dissertação de mestrado de 60 páginas escrita em 2013 por um estudante da Universidade Médica de Kunming (capital da província de Yunnan), cujo título era “Análise de seis pacientes com pneumonia grave causada por vírus desconhecidos”. A dissertação descrevia detalhadamente o passo a passo do tratamento dos mineiros infectados, e nomeava o culpado pela doença: “causada por um coronavírus de tipo Sars proveniente de morcegos”.
Antes de entrevistar os membros do Drastic, a imprensa deveria era pedir-lhes perdão de joelhos
Em 18 de maio de 2020, The Seeker postou o link do trabalho numa thread de membros do Drastic, seguido pelo link de uma tese de doutorado de um estudante do Centro de Controle e Prevenção de Doenças da China, que basicamente confirmava as informações contidas na dissertação. Pouco tempo depois da postagem, a China alterou o controle de acesso à plataforma CNKI, impedindo que uma pesquisa como aquela fosse feita novamente.
Havia agora, então, a possibilidade de um vírus de tipo Sars ter surgido em 2012 e sido acobertado pelo IVW, que, nos anos seguintes, continuou enviando pesquisadores para novas coletas a fim de enriquecer a coleção de seus laboratórios. Diante de uma tal história, era de se esperar que jornais de todo o mundo lhe dedicassem um espaço considerável. Mas, com algumas raras exceções (como, por exemplo, essa matéria no britânico The Sunday Times), a imprensa autoproclamada “profissional” ficou muda.
Dez dias depois de The Seeker ter postado a sua valorosa contribuição, o Drastic conseguiu localizar as coordenadas da misteriosa mina de Mojiang, mas foi só no fim do ano que parte da imprensa “profissional” se interessou pelo caso, dando início a uma verdadeira corrida para chegar até lá. Um dos primeiros a tentar foi o repórter John Sudworth, da BBC, que encontrou o caminho bloqueado por guardas e caminhões, e que mais adiante foi expulso da China por ordem de autoridades comunistas. Depois da BBC, foi a vez da Associated Press, da NBC, da CBS e de outros veículos, cujas tentativas tiveram resultados idênticos – o caminho bloqueado por árvores, caminhões e soldados do ELP. Um repórter do Wall Street Journal até conseguiu furar o bloqueio e se aproximar da entrada da mina, mas acabou detido e interrogado por cinco horas, depois do que a polícia apagou fotos de seu telefone celular. Até o presente momento, portanto, os segredos da mina permanecem intocáveis.
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