Por 70 anos, as reuniões entre presidentes americanos e líderes soviéticos eram assombradas por uma ameaça: a aniquilação nuclear mútua. Agora, no encontro entreJoe Biden e Vladimir Putin, pela primeira vez, as armas cibernéticas ganham o topo da agenda. A mudança vem se desenhando há uma década, enquanto Rússia e EUA se voltaram para um arsenal de técnicas no que tem se tornado um conflito cotidiano e de baixa intensidade. Mas, em reuniões de cúpula, esse tipo de disputa era tratada como secundária.
Não mais. A crescente frequência e sofisticação dos ataques contra a infraestrutura americana revelaram uma gama de vulnerabilidades que nenhum presidente poderia ignorar. Para Biden, a tarefa mais imediata é convencer Putin de que ele pagará um preço alto por querer dar uma de mestre das perturbações digitais.
Não será fácil. Se uma década de conflito cibernético ensinou algo foi que as ferramentas tradicionais de contenção fracassaram. Enquanto Putin adora se gabar de seus investimentos em novos torpedos nucleares e armas hipersônicas, ele também sabe que não pode usá-los. Seu arsenal cibernético, por outro lado, é utilizado diariamente.
Biden deixou claro que pretende dar a Putin uma escolha: cessar os ataques e coibir os cibercriminosos que operam a partir do território russo ou encarar um leque de custos econômicos. O americano sabe, porém, que Putin pode muito bem ignorá-lo. “Não há garantias de que sejamos capazes de mudar o comportamento de uma pessoa ou de seu país”, afirmou Biden. “Autocratas têm imenso poder e não têm de responder publicamente por suas ações.”
A dissuasão é um problema que muitos dos mais graduados assessores de segurança nacional consideram há anos. Eles são os primeiros a dizer que tratados de controle de armas, a principal ferramenta utilizada na era nuclear, não se adaptam bem ao meio cibernético. Há atores demais e nenhuma maneira de fazer algo equivalente a uma contagem de ogivas e mísseis.
Mas a esperança é levar Putin a considerar que certos alvos devem ser deixados fora da mira em tempos de paz. Essa lista inclui redes de transmissão de energia, eleições, redes de fornecimento de água e combustível, usinas nucleares e sistemas de comando e controle de armas nucleares. Na teoria, isso pode parecer fácil, mas vem se provando complicado na prática.
“O ex-presidente Ronald Reagan sempre dizia, ‘Confie, mas confira’”, recordou Eric Rosenbach, ex-diretor de policiamento cibernético no Pentágono, que ajudou a administrar os primeiros momentos do conflito digital com Rússia, China e Irã quando Biden era vice-presidente. “Quando se trata de russos no mundo cibernético, não podemos confiar neles nem conferir se estão seguindo o combinado. Os russos violam os termos de qualquer acordo cibernético.”
Putin nega que seu país use essas armas, sugerindo que as acusações são parte de uma gigantesca campanha de desinformação liderada pelos americanos. “Fomos acusados de várias coisas”, afirmou o russo à NBC News, no fim de semana. “Interferência em eleições, ciberataques. E nenhuma vez eles se preocuparam em produzir qualquer tipo de evidência ou prova. Apenas acusações infundadas.”
Na verdade, evidências foram produzidas, mas é muito mais difícil apresentá-las, além de explicá-las, do que as fotos dos mísseis soviéticos em Cuba que o ex-presidente John Kennedy exibiu na TV em um momento crítico, em 1962. Putin, porém, age corretamente em um aspecto. A calma com que ele consegue negar qualquer conhecimento de operações cibernéticas demonstra por que os mecanismos de dissuasão não resolvem ameaças digitais.
Se a história do controle de armas se repetir – o que é improvável – as expectativas devem ser mínimas. É tarde demais para almejar a eliminação do armamento cibernético. Seria o mesmo que ter esperança de que as armas de fogo fossem eliminadas. Analistas afirmam que o melhor que poderíamos esperar seria uma primeira tentativa de organizar uma “Convenção Digital de Genebra”, para limitar o uso de armamento cibernético contra civis. E o melhor lugar para tentar isso pode ser mesmo Genebra.
Mas isso é quase certamente além do que Putin está disposto a aceitar. Com sua economia excessivamente dependente de combustíveis fósseis e seu povo mostrando sinais de inquietude, o último superpoder que resta a Putin é perturbar seus rivais democráticos/ TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL
*É JORNALISTA
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