Depois da motociata bolsonarista: reflexões de um cronista desastuto

(São Paulo - SP, 12/06/2021) Motociata Acelera pra Jesus. Foto: Alan Santos/PR

Hoje acordei bem cedo, abri caminho pela neblina pesada que se abatia sobre a cidade, abri o computador e, todo animado, comecei a escrever sobre a motociata bolsonarista que reuniu algo entre meia dúzia e um milhão de motos em São Paulo. Mas logo de cara me deparei com um parêntesis que precisa ser aberto urgentemente. Um minutinho.

(Pronto. O parêntesis implorava para ser aberto porque essa coisa de motociata não está certa. Não, nada contra as máquinas barulhentas e seus pilotos com cara de mau. Estou me referindo à palavra. Se “motociata” é para ser uma passeata de moto, o certo seria “motosseata”. Se “motociata” é para ser uma carreata de motos, o certo seria “motorreata”. De qualquer forma, a palavra feinha, coitada, já entrou para o dicionário informal. Agora é só esperar duas décadas para o Houaiss incluí-la também. Fecha parêntesis e continua o texto).

Como eu dizia antes de ser interrompido por minhas próprias elucubrações lexicais, acordei cedo para escrever sobre a motociata. Pretendia até fazer uma brincadeira com a novilíngua antibolsonarista que, a fim de evitar associar o governo Bolsonaro a qualquer adjetivo positivo, prefere, à custa do bom senso e da boa-fé, dizer que a economia “despiora”. Daí o “desastuto” lá do título. Estava, pois, todo animado. Porque, observando a manifestação de sábado, vislumbrei a esperança de tempos menos turbulentos.

Afinal, não era dia cívico nem nada do gênero e o homem conseguiu reunir milhares de pessoas para expressar apoio a ele. Sem entrar no mérito do que leva uma pessoa a admirar um político, seja ele quem for, o fato é que a megamotociata foi um evento que, em outros tempos, deixaria os curiosos sociólogos, cientistas políticos e jornalistas assoberbados e perguntando uns para os outros “como, por que, cadê?!”. Mas, ao que parece, não se faz mais sociólogos, cientistas políticos e jornalistas curiosos como antes.

Dizia a mim mesmo e a quem mais estivesse por perto para ouvir que o apoio popular ao contestado presidente, expresso pela imagem impressionante não só do oceano de motos, mas também das pessoas que acompanhavam a procissão no canteiro central da rodovia, talvez obrigasse toda a realidade abstrata das manchetes, da CPI da Covid e até dos institutos de pesquisa a humildemente reconhecer sua debilidade. E, aqui, peço permissão para abrir mais um parêntesis. Posso?

(Obrigado. Aqui quero ressaltar a palavra “debilidade”, que uso no sentido de que pode haver algo de falho, de incerto, de impreciso nessa tal de realidade abstrata. Falhas, incertezas e imprecisões decorrentes não necessariamente da má-fé dessas pessoas que se alimentam de dados e citações, mas que ignoram o que pensa o José da Silva, motoboy dono de uma CG125 que esteve presente à motociata. Acho, só acho, e tem amigos dizendo que ando achando muito ultimamente, que essa debilidade é mais fruto do pessimismo, da arrogância e da certeza de “estar do lado certo da história”. Agora cuidado com o dedo que eu vou fechar o parêntesis de novo).

Acreditava, portanto, que a motociata (não me conformo com a palavra; parece nome de mortadela) aproximaria essas realidades concreta e abstrata, de modo que as pessoas voltassem a se ver e a ver o país que habitam na televisão e nas redes sociais. Isso, por sua vez, acalmaria os ânimos exaltados demais e amenizaria as hostilidades entre, por exemplo, público e imprensa. E, de uma vez por todas, daria um fim à fantasia toda do fascismo imaginário, do golpe chavista no horizonte ou de qualquer outra antevisão pessimista do tipo.

Mas daí

Mas daí começaram a me chegar mensagens do outro lado deste fétido Rubicão. E minhas esperanças foram para o ralo. No Facebook, leio de alguém desesperado que todas aquelas pessoas (todas!) são “comensais da morte, embaixadores das sombras, áulicos da torpeza, proxenetas da indecência. Não há baixeza que lhes seja estranha, não há vileza que não lhes povoe os sonhos noturnos, não há abjeção que lhes escape”.

No mesmo Facebook, o grande Bolívar Lamounier escreve uma patética carta aos comandantes das Forças Armadas, pedindo semiveladamente (e mui democraticamente) um golpe contra o atual presidente. Um dos escritores que eu mais respeitava nesse Brasil varonil apela ao maniqueísmo rastaquera para escrever: “E aí? De um lado o direito à vida. Do outro o direito de matar. A escolha é sua”. Isso sem falar no festival de estupidez de Barbara Gancia e até de uma importante instituição jornalística que, para combater Jair Bolsonaro, publica uma curiosa análise psicanalítica dos motoqueiros.

Tudo isso foi me embrulhando o estômago – ou será que foi a pizza dormida que comi no café da manhã? Procurei, procurei e nada de encontrar uma palavra inteligente sobre, por exemplo, a ausência de pedidos de intervenção militar ou o promissor abandono da retórica mais agressiva, daquele tipo que pede o extermínio dos diferentes. Nenhuma autocrítica. Nem um “a” sobre as ambições, sonhos e desejos legítimos daquelas pessoas que, como eu e você, querem para si e para seus filhos um país melhor – e que, por acaso e talvez equivocadamente (e diferentemente de mim), depositam essa esperança no homem que ocupa temporariamente o cargo de Chefe do Poder Executivo.

E, quando percebi, não só a neblina tinha se dissipado como minha esperança de dias um tiquinho mais tranquilos tinha dado lugar à incômoda sensação de que, na verdade, sou um desastuto (“burro”, na novilíngua). Ou, no mínimo, um observador caolho, incapaz de perceber que essa belicosidade toda só vai se dissipar mesmo no dia em que a força prevalecer e a realidade concreta ceder à abstrata (aquela cozinhada em fogo brando na academia e nas redações) – e nunca o contrário.

Confira a matéria na Gazeta do Povo

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