Não faz muito tempo da última vez que a palavra Panzerkampfwagen, que, em alemão, significa “veículo blindado de combate” – o “tanque”, em português -, foi lançada contra a reputação de Joseph Ratzinger. O teólogo da Baviera que, desde que foi alçado ao cargo de prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé pelo Papa João Paulo II, recebeu o apelido de “Cardeal Panzer”, por causa de seu rigor e assertividade no combate às ideologias e defesa da ortodoxia católica. A alcunha o acompanhou durante o tempo em que esteve à frente da Igreja Católica e, cinco anos após sua surpreendente renúncia, voltou à tona em um artigo escrito por um crítico voraz.
Muito já foi escrito sobre a vida e os pensamentos do Papa Emérito, hoje recolhido no convento Mater Ecclesiae, em Roma. Ainda assim, a imagem de um homem rígido e implacável, sem capacidade de diálogo nem misericórdia, ainda impera mesmo entre o rebanho que lhe coube apascentar entre 2008 e 2013. Sua relação com o nazismo, seu rechaço à Teologia da Libertação e outras querelas o acompanham até hoje, especialmente por parte dos que insistem em contrapor seus mais ínfimos gestos ao carisma do Papa Francisco. Nesse sentido, a biografia “Bento XVI – Servo de Deus e da Humanidade” (Editora Quadrante), que acaba de chegar ao Brasil, traz uma rica contribuição para público interessado não apenas nos meandros do catolicismo, mas em toda a filosofia do século XX.
Lançado em 2016, com prefácio do Papa Francisco e uma entrevista exclusiva com o biografado, o livro, escrito pelo teólogo Elio Guerriero, expõe não apenas os fatos marcantes, mas oferece um mosaico que abrange a vida de Bento XVI e a construção de seu pensamento, bem como o contexto histórico e social de cada acontecimento em que esteve envolvido e as pessoas que estiveram ao seu lado e o influenciaram nos desafios que enfrentou como arcebispo de Munique, como braço direito de João Paulo II e, por fim, como Pontífice – passando por todas as conhecidas polêmicas. Trata-se, nas palavras de Francisco, de um relato “abrangente, fidedigno e equilibrado da sua vida e do desenvolvimento do seu pensamento”; um contraponto aos conhecidos espantalhos.
“Os estereótipos aos quais você se refere (adesão ao nazismo, negligência com os pobres e com as denúncias de pedofilia) ainda estão vivos. Este é um fato curioso e é uma das razões pelas quais decidi escrever sua biografia. Preste atenção: Ratzinger nasceu em uma pobre família antinazista na Alemanha, foi obrigado a guerrear aos 16 anos e há quem ache que ele era simpático ao nazismo!”, diz Guerriero, em entrevista à Gazeta do Povo.
Anti-nazismo de berço
De fato, correm os anos e a foto em preto e branco que mostra o jovem Joseph Ratzinger trajando o uniforme da juventude hitlerista continua a servir à narrativa de quem insiste que o “Papa Panzer” teria sido, além de rígido, literalmente nazista. A verdade é que a conhecida deserção de Ratzinger do Exército de Hitler em meio à Segunda Guerra Mundial foi gestada em sua própria família: seu pai, um policial militar rígido e profundamente católico foi, desde a primeira hora, um antinazista convicto.
Joseph Ratzinger – o pai – tinha o hábito de se informar através de um jornal católico que, já em 1932, se posicionava contra o nazismo. “O nacional-socialismo é uma praga (…). Significa: hostilidade para com os países vizinhos, ditadura interna, guerra civil e popular. É sinônimo de mentira, ódio, fratricídio, de grandes dificuldades”, dizia um editorial.
Como consequência da proliferação de grupos apoiadores de Hitler, o pai de Bento XVI era convocado para aplacar conflitos e proteger civis dos ataques da juventude nazista. Horrorizado, assistiu os dois filhos – Joseph e Georg – serem obrigados a marchar uniformizados pela “glória da Alemanha”, o que o levou a classificar o Fuhrer como um “vagabundo”, um “canalha” que levou seu país à ruína.
Posteriormente, Joseph pai decidiu se aposentar mais cedo, agravando consideravelmente a situação financeira da família, para que não fosse obrigado a servir ao Exército nazista. Teve um primo com Síndrome de Down assassinado pelos nazistas, bem como outra conhecida da família que sofria de distúrbios mentais. Convocado a ir à guerra, o futuro Papa ouviria insultos dos membros da SS (a milícia nazista) ao anunciar que pretendia ser sacerdote. Aos 18 anos, decidiu abandonar o quartel, ciente de que os guardas tinham ordens explícitas de atirar em desertores à queima roupa.
Os capítulos que tratam da juventude do Papa Emérito, contudo, não se restringem aos horrores da guerra: o contexto no qual o ex-cardeal nasceu e foi criado é peça fundamental de sua formação. “Joseph Ratzinger é alguém que constrói sua personalidade em uma geografia específica e a partir de contextos específicos”, explica o professor Rudy de Albino Assunção, especialista no pensamento de Bento XVI. “Ele nasceu na Bavária, região muito próxima da Áustria. Vem de uma família pobre e católica. Sua formação intelectual depende de todos esses ambientes”, explica.
O retrato do século XX
Joseph Ratzinger nasceu em 16 de abril de 1927. Viveu, portanto, quase todo o século XX. Ao amarrar as experiências pessoais e o desenvolvimento intelectual do ex-cardeal aos acontecimentos históricos que permearam sua vida, Guerriero oferece também o retrato de uma era. Bento XVI, por exemplo, já foi retratado como alguém que passou de um “jovem padre progressista” ao “bastião do conservadorismo” que lhe marcou. Isso porque, na década de 1960, ainda como padre, Ratzinger atuou indiretamente no Concílio Vaticano II, como assistente do Cardeal Josef Frings, arcebispo de Colônia, destacando-se por defender a renovação da Igreja Católica, que deveria “enfrentar o presente com uma nova linguagem e com mais abertura”.
Foi a própria experiência o que acabou por modular suas expectativas. De volta à Alemanha em 1966, como professor da Universidade de Turbinger, Ratzinger foi testemunha da ascensão do marxismo como referencial máximo no ambiente acadêmico. Também assistiu de camarote a efervescência dos movimentos estudantis de 1968 e o surgimento das esquerdas totalitárias. Ocorre que o sacerdote já conhecia suficientemente bem o efeito das utopias para se deixar enganar pelos discursos de progresso.
“Ratzinger naturalmente entrou nos movimentos de renovação que marcaram sua época. E, como acontece com quase todo jovem que conhece a intuição original de um movimento, depois de certo tempo percebeu que teve gente que exagerou, gente que lucrava com a militância, gente que traiu os ideais. Ele viu o nascimento e os resultados dos grandes movimentos dentro e fora da Igreja”, explica Assunção.
É com esta mentalidade que, como prefeito da Congregação para Doutrina da Fé do Papa João Paulo II, Joseph Ratzinger “detecta” os ideais tóxicos que se escondem debaixo da teologia da libertação. Como aponta o biógrafo, ele não apenas “via que a teologia da libertação não era, em hipótese alguma, um pensamento nascido do grito de injustiça do povo latino-americano; pelo contrário, considerava-o um pensamento criado em laboratório nas universidades alemãs ou americanas”.
Esta percepção o leva a afastar, oficialmente, as ideias marxistas do cânon da Igreja Católica e a protagonizar a celeuma com o ideólogo Leonardo Boff, retratado pela mídia da época como o pobre franciscano perseguido pelo terrível tanque de guerra (ainda que todas as testemunhas da conversa tenham explicitado que o encontro foi absolutamente cordial).
Tampouco ganhou espaço com o público as reflexões de Ratzinger acerca da visão cristã da libertação, publicadas em março de 1986, nas quais o então cardeal afirmava que “as novas comunidades eclesiais de base, ou outros grupos de cristãos, formados para serem testemunhas deste amor evangélico, são motivos de grande esperança para a Igreja”.
“Mesmo como cardeal na época em que era responsável pela congregação da fé, ele vivia muito pobre e doava a renda dos direitos de seus livros (alguns deles foram traduzidos em muitas línguas!), principalmente para freiras que tinham dificuldades para se sustentar. Em muitos livros defendeu a fé das pessoas simples e pediu aos teólogos e aos padres que os respeitassem e há quem o considere insensível aos problemas sociais”, explica Guerriero.
Polêmicas e renúncia
A biografia apresenta também um relato metódico de como o Papa Bento XVI enfrentou a proliferação de denúncias de pedofilia envolvendo o clero católico. “Ele foi o primeiro a condenar o fenômeno, o primeiro a exigir perdão em nome da hierarquia e conheceu pessoas que sofreram por essa violência e exigiram perdão chorando”, diz o biógrafo, que conviveu com Ratzinger durante anos.
Para Guerriero, aliás, a renúncia de Bento XVI, em 2013, não foi surpresa nenhuma. “A aceitação de sua eleição como sucessor de João Paulo II foi mais uma vez um ato de obediência (…). Num famoso ensaio, ele mencionara a estrutura um tanto martiriológica do ministério do primado petrino. Na linguagem um tanto tortuosa dos teólogos, queria dizer que ser Papa requer a mesma paciência e a mesma resistência ao sofrimento que um mártir”, escreve o autor, que retrata também os pormenores do Conclave que o levou ao pontificado – “uma eleição que parecia estar no ar e que ele não desejava” (aqui, os “fiéis” do Ratzinger retratado pelo diretor Fernando Meirelles no filme “Dois Papas” podem ficar decepcionados).
Uma entrevista exclusiva, ao final da obra, explicita o contexto da renúncia e acrescenta pormenores da intimidade de Bento XVI. “Em 2013 (…), houve uma série de compromissos que eu não considerava mais ser capaz de levar adiante”, diz o entrevistado, afirmando que estava certo de que seu sucessor, quem quer que fosse, daria conta do recado. E foi o que aconteceu. A relação de amizade entre os verdadeiros dois papas apresentada no prefácio é reforçada pelo relato de Ratzinger de que, com frequência, recebe pequenos presentes e cartas escritas pessoalmente por Francisco, que costuma visitá-lo antes de grandes viagens. “O que ele diz sobre a disponibilidade para com os demais homens não são somente palavras. Ele as coloca em prática comigo”.
O relato de Guerriero foi lido pelo biografado que, segundo o autor, “fez pequenas correções relacionadas à origem de sua família”. Para o teólogo italiano, que mantém contato com o papa emérito, seu grande legado está no “esforço por encontrar um equilíbrio justo entre fé e razão”. “Sem razão a fé tende a se tornar fideísta, sem fé, não só a razão, mas o homem, se empobrece, sem esperança e sem olhar para o céu e para a beleza. Até a possibilidade de receber justiça para os pobres torna-se utópica”, explica. “É claro que a busca por justiça começa neste mundo, mas se torna uma possibilidade real no outro mundo. O que as pessoas realmente precisam é de um amor que vem de Deus e dá aos homens a possibilidade de se amarem. Como o poeta italiano Dante, o papa Bento XVI diz: “Deus é o amor que move o sol e as outras estrelas”.
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