A disposição de enfrentar o medo e o risco sempre me fascinou. Tanto que escrevi dois livros que têm essa característica humana como pano de fundo. O primeiro conta a história do alpinista brasileiro que escalou quatro vezes o Monte Everest, a montanha mais alta do mundo. O segundo versa sobre os perigos do jornalismo em situações de conflito armado. Há um pouco da minha própria experiência em ambos. Aprendi que o medo é aliado de montanhistas e correspondentes de guerra. O medo racional, melhor dizendo.
Existe o medo que paralisa e que, muitas vezes, é uma expressão exagerada ou descolada da realidade. Há o medo racional, que inspira prudência e gestão de riscos, garantindo a sobrevivência sem impedir conquistas e realizações. E existe a negação do medo ou de uma situação de risco, uma atitude autodestrutiva que ameaça também a integridade e a vida de outras pessoas.
Falemos primeiro da negação do medo. Em uma escalada em dupla ou em grupo, é preciso confiar nos parceiros. Ligados todos por uma corda, coloca-se a própria vida nas mãos daquele que está abrindo a via. Se um dos integrantes toma uma atitude imprudente, ignorando os riscos ou desrespeitando os protocolos de segurança — deixando de prender a corda no mosquetão ou fazendo uma ancoragem mal feita na rocha, por exemplo — coloca em perigo não apenas a si próprio, como a todos os outros.
O equivalente, no contexto pandêmico, é a pessoa que diz não temer o vírus, o que a leva a dispensar cuidados básicos como uso de máscaras e distanciamento social, contaminando a si própria e a outras pessoas.
Negação de risco não é demonstração de coragem.
O medo é um sentimento que serve à autopreservação. De fundo irracional, ele pode ser controlado e administrado para se tornar a base de decisões acertadas, racionais. O objetivo passa a ser superar o obstáculo, protegendo a si próprio e às outras pessoas em volta.
A preservação dos outros é fundamental. Uma pesquisa divulgada este ano pela Universidade Federal de Minas Gerais com mais de 200.000 brasileiros, principalmente entre profissionais de saúde, revelou que o medo mais presente é o de contaminar pessoas queridas, não a si próprio. Aqui, a consciência de que o risco existe é clara, mas manifesta-se de maneira mais irracional sobre aquilo que se acredita ter menos controle.
Quando se está trabalhando em uma guerra, ocorre algo parecido. Individualmente, são adotados os cuidados que se crê necessários e possíveis para minimizar os riscos para si próprio, mas é muito mais difícil ter controle sobre o que acontece com as outras pessoas à sua volta.
Na Guerra Civil da Líbia, em 2011, o fotojornalista brasileiro André Liohn viveu uma situação dessas. Durante a cobertura de um combate em Misurata, ele, que já conhecia o padrão dos ataques das forças do ditador Muamar Kadafi por estar há mais dias atuando na cidade, identificou uma situação de risco extremo e tentou convencer outros jornalistas a deixar o local junto com ele. Não lhe deram ouvidos. Mais tarde, no mesmo dia, dois deles, os premiados fotógrafos americanos Tim Hetherington e Chris Hondros, morreram em um ataque com morteiros no mesmíssimo lugar onde Liohn havia estado com eles.
Na gestão de situações de risco, informação conta muito. E o primeiro passo é não negar a existência desses riscos. Isso não significa que é possível eliminá-los ou que se tem controle sobre tudo.
O jornalista Lourival Sant’Anna, também experiente em coberturas internacionais, escreveu em 2019 o livro “Minha Guerra Contra o Medo — O que o risco de morte ensina sobre a vida”, com seis lições que podem ser úteis também para lidar com a pandemia.
A primeira é focar em tarefas cotidianas, para não deixar o medo dominar a mente. A segunda é ser sincero consigo mesmo e com os outros, para manter coerência com os próprios atos. A terceira é aceitar a possibilidade do acaso, mas estar preparado para improvisar quando as coisas saírem do controle. A quarta é equilibrar instinto, razão e experiência. A quinta é preocupar-se genuinamente com o próximo.
A verdadeira coragem consiste em reconhecer a existência dos riscos e enfrentá-los de maneira racional, cuidando de si e dos outros.
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Meus dois livros citados nesse artigo são “No Teto do Mundo”, em coautoria com o alpinista Rodrigo Raineri (editora Leya), e “Correspondente de Guerra”, com o fotojornalista André Liohn (editora Contexto). A história de Liohn é tema do documentário “Você não é um soldado”, dirigido por Maria Carolina Telles e lançado este ano. O filme foi selecionado para quatro festivais internacionais de documentários, mas ainda não está disponível no Brasil. O trailer pode ser assistido aqui.
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