O que os índices econômicos dizem sobre nossas escolhas de vida

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No livro “TrópicosUtópicos”, o economista Eduardo Giannetti comenta algo que pareceu chocante a esta leiga em indicadores: se um rio deixar de ser potável e a população precisar comprar garrafas d’água, isto significa um aumento de PIB. Admito. Quem aprende friamente o conceito de PIB é capaz de chegar a essa conclusão sozinho – mas saíamos do governo Dilma, obcecado por “pibão”, e criticávamos a “presidenta” porque o PIB afinal de contas encolheu. Para petistas e antipetistas, o PIB era uma coisa boa em si.

Giannetti, notório marineiro, focava na questão ambiental. Mas essa crítica dele à valorização do PIB me parece ter um escopo mais amplo. Se houver uma inflação do ovo e as pessoas seguirem comprando a mesma quantidade, isto implicará aumento do PIB. Se um contingente de pensionistas ou beneficiários de programas sociais sair do campo para a cidade sem aumentar a renda, arcará com um custo de vida mais alto e contrairá dívidas, mas isto implicará aumento do PIB.

Ontem me lembrei dessa sacada ao ler, nesta Gazeta do Povo, que o Sul tem a expectativa de ultrapassar o Nordeste em consumo de famílias. Diferentemente do PIB, amado pelos desenvolvimentistas, o consumo de famílias costuma ser querido pelos liberais. Liberais preferem este índice ao do PIB porque governos deficitários podem fazer grandes obras públicas que entram na conta. Consumo de famílias, não. É uma economia privada e, ainda que haja famílias subsidiadas por programas sociais, suas escolhas não deixam de revelar o clima econômico nacional.

Mas logo descobri que o consumo de famílias também é um índice estritamente pecuniário. No fim das contas, se um rio deixar de ser potável e as famílias precisarem comprar garrafas d’água, também o consumo de famílias aumentará e também o economista liberal festejará.

Se eu fosse contribuir com os indicadores do país

Que é possível mudar de local sem mudar de renda, já sabemos, por causa de quem recebe do governo sem trabalhar (seja aposentado, seja pé-rapado). Mas, com a pandemia, os patrões descobriram que os funcionários não precisam de um escritório físico para trabalhar e estão cortando despesas prediais. Se a Gazeta quisesse contribuir com os índices do país, gastaria um dinheiro para botar no mínimo uma mesinha e um computador para mim numa redação em Curitiba. Eu, dotada de espírito cívico, teria de me mudar para Curitiba.

Segundo a reportagem, na média nacional, um quarto das despesas dos brasileiros é com habitação, aí inclusos água, telefone e gás. Friso que é um quarto das despesas, não da renda. Os 100% das despesas podem ser superiores ou inferiores à renda, de modo que esse indicador não diferencia os endividados dos com poupança.

Continuando, eu teria de sair de uma casa num município nordestino de extensão majoritariamente rural para me mudar para a capital do Paraná. As chances de eu morar em apartamento numa capital seriam bem mais altas, de modo que eu contribuiria com a economia nacional pagando condomínio, dinheiro que vai direto para o ralo. Se eu fosse trouxa, correria o risco de ir para num cubículo novo daqueles cheios de áreas comunitárias. Pagaria condomínio para olhar as nádegas dos vizinhos na piscina custeada por mim. Haja civismo!

O segundo lugar nas despesas dos brasileiros é a alimentação, quase um quinto do total. No núcleo urbano de uma cidade rural do interior no Nordeste, eu pago feliz da vida 3,50 pelo litro de leite cru. Se eu me mudasse para Curitiba, contribuiria com o consumo das famílias com 3,75 ao comprar um leite menos gostoso.

Aqui, o economista liberal diria algo como “o leiteiro nordestino é tão pobre, mas tão pobre, que precisa vender mais barato o leite”. E diria isso apenas por causa de uma dedução do seu esquema pré-concebido, sem nunca pôr os olhos no leiteiro. Em mim, ele não desperta piedade nenhuma. Deu até trabalho a minha inclusão em sua clientela. Do que pude depreender, ele tinha uma rota certa e foi persuadido por um amigo comum a ampliá-la um pouquinho. Seguiu também o conselho dele de não parar apenas na minha porta, mas anunciar leite mais alto, para os meus vizinhos também serem incluídos. O amigo comum trabalha na cidade, enquanto que o leiteiro é da zona rural.

Como vimos ao tratar de Weber, é racional, da parte do ser humano, trabalhar só até atingir um o conforto desejado. Se o leiteiro não precisa vender leite no meu bairro, para que trabalhar mais? Certo está o leiteiro, doido é o workaholic. O cidadão urbano pensa diferente, sobretudo porque a vida econômica da cidade é infinitamente mais instável do que a da vida rural, de modo que a ansiedade recomenda todo acúmulo de dinheiro.

Gastos com saúde

Olhei o preço da coxa com sobrecoxa antes de botá-la no forno: 10 reais o quilo. Não chateei o chefe perguntando pelo preço curitibano. Mas chateio mais uma vez o leitor lembrando que hoje o povo de apartamento se entope de junk food pelo iFood, que não tem nenhum restaurante cadastrado na minha cidade. Na minha cidade também não tem McDonalds; tem feira com gêneros alimentícios trazidos de lombo de burro da zona rural, a serem comprados com dinheiro vivo.

Digamos que, num passe de mágica, todos os interioranos do Nordeste gastassem o que não têm para se entupirem de pizza borrachuda e parassem de comprar barato comida saudável para preparar em casa. Esse seria um feito positivo para o índice de consumo das famílias – que, no entanto, oneraria o SUS mais pra frente. E, se um rico escolher viver de pizza borrachuda, o gasto dele no Sírio Libanês também entra no consumo das famílias.

Uma causa prosaica para a queda do Nordeste

No São João, Salvador se transforma numa cidade deserta. Explicação: é raro encontrar um soteropolitano que não tenha família no interior. O São João é, em parte, o Natal nordestino, quando as famílias se reúnem em festividade do solstício de inverno. Como quase todo mundo na capital tem origem no interior, a cidade fica vazia pelo menos nos dias 23 e 24 de junho. Se o dia 23 cair numa quarta, terça acaba a semana e Salvador vira um túmulo.

Assim como as cidades de São Paulo e do Rio de Janeiro, em meados do século passado as capitais nordestinas foram inundadas por um grande influxo de migrantes rurais. O roceiro vai para uma capital (pode ser a do Brasil, pode ser a da Bahia) e estabelece na periferia uma espécie de embaixada familiar, pronta para hospedar parentes desejosos de se aventurarem na cidade grande. Como os vínculos são mantidos, é uma via de mão dupla: quem quebrar a cara na cidade pode voltar à casa antiga, muitas vezes sediada numa pequena propriedade rural gerida pela própria família – aqueles que levam verduras em lombo de cavalo para a feira. Lá, fará parte da mão de obra familiar.

O ambiente urbano é muito mais propenso aos impactos econômicos da Covid do que o ambiente rural. É possível que a queda do consumo das famílias nordestinas reflita uma migração em sentido contrário, um caminho de volta. A explicação do economista ouvido pela reportagem era o turismo. A maioria da população baiana está no interior e o turismo está concentrado na capital. Não faz sentido que abranja muitas famílias.

Se eu fosse gestora pública, tentaria ver o consumo de gás nas periferias da capitais. Na zona rural, cozinha-se com lenha. Por isso é de se esperar que uma migração de volta faça cair o consumo de gás – que também afeta o bendito índice.

Mas, dessa história toda, me incomoda muito ver que tratamos gasto como indício de fartura. Às vezes é só indício de más escolhas ou alto custo de vida.

Confira a matéria na Gazeta do Povo

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