“É até irônico que essas máquinas de votar, que supostamente deveriam resolver os problemas causados pelos sistemas eleitorais antiquados, estejam simplesmente tornando os problemas invisíveis para o eleitor.” (Penny M. Venetis, professora de Direito na Rutgers University)
“Se você acredita que a tecnologia pode resolver seus problemas de segurança, então você não conhece nem os problemas e nem a tecnologia.” (Bruce Schneier, criptógrafo, moderador do Crypto-Gram Newsletter)
Em 2005, na Alemanha, cerca de 2 milhões de eleitores utilizaram urnas eletrônicas para votar. Quatro anos depois, o Tribunal Constitucional Federal considerou a eleição inconstitucional. O argumento foi que, tendo sido integralmente eletrônico, sem possibilidade de auditoria por qualquer meio físico independente, o processo violara o direito básico de garantia de publicidade. O juiz Andreas Vosskuhle anunciou a decisão do tribunal com estas palavras: “A eleição como fato público é o pressuposto básico para uma formação democrática e política. Ela assegura um processo eleitoral regular e compreensível, criando, com isso, um pré-requisito essencial para a confiança fundamentada do cidadão no procedimento correto do pleito. A forma estatal da democracia parlamentar, na qual o domínio do povo é midiatizado através de eleições, ou seja, não exercido de forma constante nem imediata, exige que haja um controle público especial no ato de transferência da responsabilidade do Estado aos parlamentares”.
Em 2013, a Suprema Corte da Índia tornou obrigatória a impressão do voto, instruindo a autoridade eleitoral a adotar o sistema de votação eletrônica de “segunda geração”, conhecido como VVPAT (Voter Verifiable Paper Audit Trail, ou “documento de auditoria em papel verificável pelo eleitor”), que permite auditar a apuração eletrônica por meio de uma segunda via de registro do voto, gravado em meio distinto ao do equipamento de votação, e acessível à conferência do eleitor. No sistema VVPAT, quando um eleitor aperta o número de seu candidato na urna eletrônica, é impresso um boletim de papel contendo os dados do voto, que o eleitor pode conferir no ato. Segundo os juízes indianos, o sistema garantiria eleições mais livres e justas, evitando desconfianças.
“Urnas eletrônicas que não produzem um registro em papel de cada voto computado não são confiáveis.”
Editorial do The New York Times publicado em 2009.
Medidas similares de recusa de votação integralmente eletrônica foram tomadas em países como Holanda (pioneira na adoção da votação eletrônica, mas que se arrependeu em 2007), França, México, Irlanda, Bélgica, Paraguai, Peru e Rússia. Em todos esses, foram implementados mecanismos de verificação externa da votação eletrônica. A preocupação com a votação eletrônica era tão generalizada que, em 2009, o New York Times chegou a publicar um editorial afirmando taxativamente: “Urnas eletrônicas que não produzem um registro em papel de cada voto computado não são confiáveis (…) Na votação eletrônica sem impressão, os eleitores fazem sua escolha, e quando os votos são todos inseridos, a máquina computa os resultados. Não há meios de assegurar que uma pane ou truque intencional de um software malicioso ou de um hacker não possa ter alterado o resultado. Se houver uma eleição muito disputada, não há como fazer uma recontagem confiável”.
Enquanto tudo isso ocorre no planeta Terra, as autoridades eleitorais brasileiras, cuja soberba é diretamente proporcional à inépcia, andam tão cheias de si que encontram tempo para debochar de quem, a exemplo dos magistrados alemães e indianos, bem como do editorialista do NYT, exige uma medida óbvia de transparência e confiabilidade: que o sistema eletrônico seja passível de auditoria por meio não eletrônico. Foi o que fez, por exemplo, o Tribunal Regional Eleitoral do Paraná (TRE-PR), ao postar no TikTok um vídeo irônico, no qual os proponentes do voto impresso são representados como portadores de uma mentalidade “medieval”. Exibindo uma jovem enrolada num lençol, emulando o que os idealizadores da peça imaginam ser um traje típico da Idade Média, e tendo ao fundo um majestoso castelo, o vídeo é acompanhado do texto: “Quando a pessoa fala de voto impresso em pleno século 21”. Depois da gracinha, segue a informação pretensamente séria, mas que, de fato, parece ser a verdadeira piada: “A urna eletrônica é 100% segura”.
Antes de tudo, convém notar o provincianismo temporal dos autores da patacoada, que reproduzem feito papagaios o fetiche progressista segundo o qual a passagem do tempo é sinal inequívoco de aprimoramento. Dizem “em pleno século 21” sem corar, como se o referido século, coincidentemente o seu próprio, tivesse algo de muito especial. Tampouco demonstram sinal algum de vergonha ao repetir o clichê surrado que trata “medieval” como sinônimo de “atrasado”, e que é a marca inconteste do ignorante. Como escreve o filósofo Eric Voegelin em A Crise e o Apocalipse do Homem, oitavo volume de sua História das Ideias Políticas: “Ao fim do século 19, a alegada escuridão da Idade Média tornara-se o sintoma pelo qual o semieducado podia ser diagnosticado; e, se qualquer pessoa iluminada quisesse fazer piada sobre a escolástica, a piada voltava-se contra essa mesma pessoa”. Ora, não é preciso ser nenhum medievalófilo para reconhecer que na Idade Média tínhamos Agostinho e A Cidade de Deus, Aquino e a Suma Teológica, Dante e a Divina Comédia, a Catedral de Chartres, a ética cavalheiresca, o canto gregoriano, as universidades etc. E, sobretudo, que não tínhamos magistrados com idade mental inferior a 12 anos mandando postar vídeos engraçadinhos no TikTok.
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