A memória do Holocausto banalizada: fala de Renan Calheiros na CPI está fora de lugar

Em 8 de agosto de 1945, representantes das quatro potências que combateram as tropas nazistas durante a Segunda Guerra Mundial – Estados Unidos, Grã-Bretanha, França e União Soviética – assinaram, em Londres, o acordo sobre o Tribunal Militar Internacional, incumbido de julgar os crimes cometidos pela Alemanha de Adolf Hitler.

Três meses depois, teriam início os Julgamentos de Nuremberg, que resultou em doze condenações à morte, três à prisão perpétua, e três a prisões de 20, 15 e 10 anos. Entre os condenados à pena capital estava, por exemplo, o secretário particular de Hitler, Martin Bormann, e o diretor dos programas de trabalho escravo, Fritz Sauckel. Até 1949, outros 12 outros tribunais militares julgariam os Processos de Guerra de Nuremberg, que se referiam a 117 acusações por crimes de guerra contra outros membros da liderança nazista.

Foi a esta série de julgamentos que o senador Renan Calheiros (MDB-AL) comparou a CPI da Covid, cujo objetivo é apurar ações e omissões do governo federal e eventuais desvios de verbas federais enviadas aos estados para o enfrentamento da pandemia. Nesta terça-feira, 25 de maio, a sessão foi palco de um bate-boca entre o relator e alguns parlamentares da base do governo, que responderam ao discurso de Calheiros que fazia menção ao comandante do Exército nazista Hermann Goring, condenado à morte por enforcamento.

“Desculpe-me, Sr. Relator: é um absurdo querer comparar a situação que nós estamos enfrentando aqui […] com o genocídio que ocorreu na Alemanha, disse o senador Fernando Bezerra Coelho (MDB-PE, líder do governo no Senado, seguido pelos senadores Marcos Rogério (DEM-RO) e Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ). Para acalmar os ânimos, o presidente da Comissão, Omar Aziz (PSD-AM), disse que o relator poderia prosseguir com a fala, mas que o tribunal de Nuremberg não poderia “ser utilizado como referência nenhuma a ninguém”. “Vossa Excelência está falando de uma das maiores atrocidades que houve na história”, disse Aziz.

Em resposta, Renan Calheiros disse que não estava comparando as duas situações, nem fazendo pré-julgamentos. Mas, mais tarde, foi ao Twitter reiterar a fala: “Nunca houve comparação entre a Pandemia  o Holocausto. O Holocausto é incomparável!”, escreveu. “Mas é comparável, sim, assustadoramente comparável, à atitude de negação dos oficiais nazistas e de algumas autoridades que depuseram na CPI”, diz o senador, em referência ao depoimento da médica Mayra Pinheiro, secretária do Trabalho e da Gestão do Ministério da Saúde desde abril de 2019 e conhecida por sua defesa da cloroquina.

No ano passado, foi a vez de o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Celso de Mello, em mensagem privada revelada pela imprensa, estabelecer paralelos entre a atuação de Bolsonaro e o líder nazista, por conta de referências feitas por figuras do governo a símbolos da alt-right. “Guardadas as devidas proporções, o ‘ovo da serpente’, à semelhança do que ocorreu na República de Weimar (de 1919 a 1933), parece estar prestes a eclodir no Brasil!”, disse Mello.

Super Trunfo ideológico

Não é de hoje que o Holocausto, o extermínio de cerca de seis milhões de judeus, é tratado como uma espécie de Super Trunfo ideológico: a carta mais forte de um baralho capaz de ganhar qualquer argumento; um recurso ironicamente apelidado de Reductio ad Hitlerum. Há mais de trinta anos, é conhecida a máxima do advogado americano Michael Godwin: “Na medida em que cresce uma discussão online, a probabilidade de surgir uma comparação com Adolf Hitler ou o nazismo aproxima-se de 100%”. (Ainda assim, antes das eleições de 2018, o próprio Godwin tratava como cabível a comparação entre o presidente Jair Bolsonaro e o ditador nazista).

Há diversas variáveis a serem analisadas na situação específica em questão. Muitos estudiosos estabelecem paralelos entre o bolsonarismo e a ascensão de Estados totalitários na história – inclusive à esquerda – por conta do caráter messiânico do líder, dos ataques violentos aos opositores, descredibilização da imprensa e acenos para grupos extremistas que, ainda que sua intencionalidade não seja comprovada, acabam por criar uma conexão entre os diversos governos que, ao longo da história, tentaram se impor como salvação última a um mal iminente; como no caso do ex-secretário de cultura, Roberto Alvim, que fez referência explícita ao Ministro da Propaganda do Partido Nazista, Joseph Goebbels.

No contexto da CPI da Covid, entretanto, há ainda quem analise que falas como a do general Eduardo Pazuello, que ora diz que “o presidente nunca deu ordens diretas para nada”, ora delega a responsabilidade de, por exemplo, não agir imediatamente frente ao colapso do sistema de saúde de Manaus; ou culpar o Congresso Nacional pela recusa às propostas de venda de vacina da Pfizer, podem ser comparadas à postura de agentes nazistas que, embora não estivessem no comando do partido, tacitamente obedeceram ordens que levaram pessoas à morte. Este comportamento foi extensamente analisado pela filósofa Hannah Arendt, autora do conceito de “banalidade do mal”.

Banalização do Holocausto

O problema da comparação recorrente do bolsonarismo com o nazismo reside, contudo, principalmente na intencionalidade dos atos. Em 1948, a Comissão para a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio foi chancelada pela Assembleia Geral das Nações Unidas. A palavra genocídio, então, passaria a descrever os crimes do nazismo e, posteriormente, de outros regimes totalitários. Hoje, é comum descrever as ações de Nuremberg como o “julgamento do genocídio nazista”.

Ocorre que a definição de genocídio segundo o documento é: “entende-se por genocídio qualquer dos seguintes atos, cometidos com a intenção de destruir no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso, como tal: a) matar membros do grupo; b) causar lesão grave à integridade física ou mental de membros do grupo; c) submeter intencionalmente o grupo a condição de existência capaz de ocasionar-lhe a destruição física total ou parcial; d) adotar medidas destinadas a impedir os nascimentos no seio de grupo; e) efetuar a transferência forçada de crianças do grupo para outro grupo”.

A questão da intenção é, portanto, crucial para a definição de genocídio e, portanto, para que se estabeleça um paralelo preciso entre as ações tomadas pelo governo de Jair Bolsonaro ao longo da pandemia do coronavírus e o Holocausto nazista. Como explica o colunista Francisco Razzo, “por genocídio não se entende simplesmente ser responsável pela morte de muitas pessoas – ou seja: em tese, ainda que ficasse provada a responsabilidade do governo pela morte das pessoas nessa pandemia, isso não seria suficiente para acusá-lo e condená-lo por genocídio”.

Para o cientista político Igor Sabino, bacharel em Relações Internacionais e doutorando pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), a comparação específica com o Holocausto não é consenso na comunidade judaica. “Existem duas maneiras de estudar o Holocausto: primeiro, como um evento único, histórico. Este um ponto mais defendido pelos judeus mais conservadores, que entendem que o antissemitismo foi um elemento essencial para que o Holocausto acontecesse; mas há aqueles que dizem que o Holocausto, apesar de suas características específicas, também pode ser comparado a outros genocídios. Comparam, por exemplo, com o genocídio de Ruanda, do Sudão ou da Armênia”, explica Sabino, à Gazeta do Povo.

“Acredito que a fala do relator da CPI faz sentido quando se trata da questão da banalidade do mal, mas a grande preocupação que eu tenho é que isso seja usado para banalizar também a memória do Holocausto; no sentido de esquecer esse elemento especial antissemita que nenhum outro crime contra a humanidade teve”.

Confira a matéria na Gazeta do Povo

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