Esqueça o Vale do Silício, as startups brasileiras têm um novo alvo: o Nordeste brasileiro. Os ecossistemas de inovação brasileiros têm ganhado destaque no cenário internacional e a redução na taxa de êxodo de empresas nascidas em polos de inovação de diferentes regiões do Brasil para o Sudeste indicam um nível cada vez mais maduro de empresas que estão fora do eixo Rio-São Paulo. O mesmo acontece nos estados do Nordeste.
Segundo mapeamento mais recente da Associação Brasileira de Startups (AbStartups), existem hoje 1.171 startups no Nordeste. A grande maioria delas está concentrada nos estados da Bahia, Pernambuco e Ceará. Em relação ao perfil, destacam-se as empresas com soluções em educação, saúde e desenvolvimento de software.
A maior parte delas (28,5%) atuam no modelo de SaaS – software as a service -, seguida de vendas diretas (15,7%) e marketplace (11,3%), também de acordo com a Abstartups.
O ecossistema nordestino de startups vem em um processo intenso de evolução, de uma região exportadora de talentos tecnológicos para ambientes maduros e conectados, capazes não apenas de estimular, mas suportar a evolução de startups, segundo José Muritiba, diretor executivo da Associação Brasileira de Startups (Abstartups). “Vemos uma região muito mais madura e com empreendedores cada vez mais jovens que desejam ficar por ali. A região tem conseguido reter esses talentos”, diz.
Desafios
Para Muritiba, a robustez do ecossistema nordestino é inegável e tem ganhado destaque nos últimos anos. “No entanto, a maior parte das startups do Nordeste nunca recebeu nenhum tipo de investimento, tampouco foi acelerada ou incubada. Esses são desafios estruturais a serem superados caso a região defina como prioridade o mantimento de empresas inovadoras e evitar a fuga de talentos da região”, segundo Muritiba.
José Muritiba, diretor executivo da Associação Brasileira de Startups (Abstartups). Foto: divulgação.
Iniciativas
Nesse contexto, surgem diferentes agentes de inovação que ajudam a trazer uma sustentação inovativa para a região. Entre eles está o Porto Digital, na cidade de Recife, iniciativa liderada pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) focada em fazer com que as pessoas que se formam dentro do centro de informática, como engenheiros e tecnólogos, fiquem na região – além de facilitar a troca de experiências e criação de novas empresas.
A parceria entre grandes empresas, institutos e academia, tem gerado um ambiente muito próspero para o desenvolvimento de startups. “A partir do momento em que se entende o desenvolvimento do empreendedorismo como um pilar sócio-econômico, o ambiente tende a se desenvolver de maneira natural”, comenta Muritiba.Assim como o Porto Digital, surgem em outros estados iniciativas de destaque e programas de fomento ao empreendedorismo. Para Marina Lima, conselheira do Porto Digital e coordenadora de operações da Endeavor no Nordeste, essa é uma das principais provas de que o ecossistema tem amadurecido nos últimos anos.
“Trazer uma base sólida para o crescimento das empresas do Nordeste não é algo que uma entidade consegue fazer sozinha. Isso precisa ser articulado entre várias”, diz.
Além da Abstartups e a própria Endeavor, Marina destaca a atuação do Sebrae e de diferentes hubs de inovação na região, como o Hub Salvador, iniciativa da Prefeitura da capital cearense.
A Endeavor coordena um programa de aceleração para scale-ups, ou startups em fase de escala, para orientar e dar suporte a empresas que deixam a fase inicial e precisam ganhar tração no mercado. A instituição é, portanto, um dos inúmeros agentes de transformação que trazem mais maturidade ao ecossistema inovativo e aos empreendedores da região. “Nosso objetivo é fazer com que as empresas que crescem continuem crescendo”, diz. Nos últimos anos, a Endeavor já acelerou 125 empresas da região e auxiliou cerca de 250 empreendedores.
Como fazer o ecossistema crescer
Segundo Muritiba, um ecossistema de inovação é baseado em seis principais pilares: cultura, talento, densidade, acesso ao mercado, acesso a capital e ambiente regulatório. Desenvolver um ecossistema parte desses princípios e a criação de agentes de fomento, aceleração, capacitação e investimento financeiro contribui para o avanço e amadurecimento de comunidades inovativas.
“Nesse cenário, ganham destaque aquelas comunidades capazes de avançar nesses pilares, individualmente”, comenta.
Mais do que a criação desses agentes, uma lista que inclui universidades, hubs de inovação, empresas, programas de aceleração, coworkings e órgãos públicos como secretarias de desenvolvimento municipais e estaduais, é preciso diálogo, segundo Marina, da Endeavor. “Faz parte do papel desses atores se comunicar e entender o que podem fazer por cada empreendedor, com base no diálogo ativo e nas dores de cada região”, explica.
Segundo a especialista, a troca ativa de experiências também ajuda a superar alguns dos principais percalços para empreendedores: a solidão e a sensação de desinformação. No caso do programa voltado às scale-ups da Endeavor, há também a exigência de uma mentoria para empresas em fase inicial. “É vital que aqueles que já atingiram determinada maturidade ajudem outras companhias em fase de crescimento. Cobramos dos mentorados que eles também ofereçam mentoria para empresas em fases anteriores”, ela conta
Por fim, a especialista destaca a importância da criação de programas de formação e capacitação técnica pela iniciativa pública. “Não tem como criar um ecossistema de inovação na Bahia, por exemplo, apenas migrando a mão de obra vinda de outro estado. É preciso criar um ecossistema desde a base profissional”, conclui.
Os novos Vales do Silício
Um novo fenômeno chama a atenção do universo empreendedor brasileiro: a criação de Vales do Silício um tanto quanto “diferentes”. A região na Califórnia (EUA), conhecida como o berço do empreendedorismo tecnológico mundial, serve de inspiração para que empreendedores criem denominações próprias – e criativas – em todo o Nordeste brasileiro.
Esse é o caso da cidade do Rapadura Valley, em Fortaleza; do Jerimum Valley, em Natal; do Caju Valley, em Aracaju; e do Sururu Valley, em Maceió, capital do Alagoas. Em comum, os novos “vales da inovação” levam consigo uma marca registrada da cultura regional, sejam eles animais, lugares ou alimentos.
Para Muritiba, mais do que um fenômeno criativo, o surgimento dos Vales brasileiros servem para atrair a atenção de investidores e criar um senso de pertencimento e identidade às pequenas empresas. “Isso é crucial para fomentar o desenvolvimento dessas empresas”, avalia.
Inovação na prática
Como resultado de um mercado regional cada vez mais digital, há uma escalada no número de startups com soluções tecnológicas que nasceram no Nordeste, como é o caso da Autoforce, startup que nasceu e cresceu no Rio Grande do Norte – e é por lá que deseja ficar.
Fundada em 2015 na cidade de Natal pelos empreendedores Tiago Fernandes, Isaiane de Mendonça e Clênio Cunha, a startup está no centro do do chamado Jerimum Valley.
A solução da Autoforce é voltada a redes de concessionárias, com uma ferramenta de marketing que pretende acelerar – e facilitar – a venda de carros novos e usados por meio de um software. O olhar para o mercado automotivo surgiu de uma percepção de que faltava um novo canal de comunicação entre as lojas e consumidores diante de uma crise econômica que fez reduzir a verba para campanhas publicitárias e forçou a migração para o ambiente digital. “Queremos ser a VTEX do mercado automotivo”, disse Fernandes, CEO da AutoForce.
Desde o início, a AutoForce se apoiou no ecossistema inovativo do Nordeste para prosperar. A startup passou por um período de incubação no Instituto Federal do Rio Grande do Norte, onde aproveitou a estrutura, apoio jurídico e contábil. Depois de cinco meses, o faturamento da startup era próximo dos R$ 11 mil.
A troca de informações e experiência com outros empreendedores – algo vital para o amadurecimento das comunidades de inovação da região, segundo especialistas – foi um dos principais incentivos para o crescimento acelerado da AutoForce, diz Fernandes. Assim como a interação com diferentes players inovativos – a AutoForce também já estabeleceu parcerias com o Instituto Federal estadual e também com a Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) para possibilitar a entrada de alunos na empresa como estagiários.
Além disso, a startup também é uma entre as mais de 125 empresas nordestinas aceleradas pela Endeavor, ainda em 2019.
Hoje a AutoForce tem em sua carteira de clientes 90 grupos econômicos, e 550 concessionárias. A meta é chegar a 600 até o final do ano. Para isso, uma das principais apostas da startup está no lançamento de uma ferramenta de e-commerce, ainda em fase de testes, que permitirá a negociação, compra, assinatura e conclusão de toda a jornada de compra de um veículo de forma 100% online.
Apesar do desejo de expandir ainda mais a atuação em todo o território nacional, a empresa quer continuar no Nordeste e evitar a migração para São Paulo, onde há a maior concentração de startups no país. Em 2018, a empresa chegou a abrir um escritório na capital paulista, mas com o passar do tempo e a chegada da pandemia, a startup percebeu as vantagens em manter as raízes da operação no Jerimum Valley. “Tudo ficou mais eficiente, rápido e prático. Para o mercado que lidamos, não faz sentido deixarmos um estado tão rico como aqui”, diz.
A fórmula tem dado certo. A AutoForce já conta com parceiros como Mitsubishi e Stellantis, joint venture que reúne as marcas Fiat, Jeep, Citroën, Peugeot, Alfa Romeo, Chrysler e Dodge.
“Por muito tempo, vários colegas empreendedores diziam que o sucesso dependia de irmos para São Paulo. Isso não existe mais. Negócios podem ser feitos em todo o lugar do mundo”, conclui.
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