Não é preciso esperar a guerra acabar para investigar seus crimes

23ª Reunião do Conselho de Governo (Brasília _ DF, 19/11/2019) Palavras Ministro de Estado da Economia, Paulo Roberto Nunes Guedes.

A pandemia não é uma guerra, mas é frequentemente descrita com metáforas bélicas. Como em uma guerra, há muitos mortos por uma causa antes inexistente. Como em uma guerra, o sistema médico-hospitalar entra em colapso. Como em uma guerra, os óbitos estão tendo impacto demográfico, reduzindo a expectativa de vida da população e levando o país, pela primeira vez, a ter um saldo negativo de nascimentos versus mortes. Como em uma guerra, há uma linha de frente, onde um grupo de combatentes (os profissionais de saúde) luta contra um inimigo. Como em uma guerra, há estratégias vencedoras e estratégias perdedoras. E há comandantes preparados e despreparados. Como em uma guerra, há crimes sendo cometidos.

Paulo Guedes, o ministro da Economia, disse que a CPI da Covid-19, que iniciou seus trabalhos na semana passada no Senado, é um “tribunal de guerra”. Guedes acredita ser inoportuno apurar crimes de guerra enquanto o conflito está em andamento.

“Quer fazer a agenda de CPI, pense que estamos no meio de uma pandemia. Faça, mas com alguma moderação pra não desorganizar tudo. Tanto as medalhas quanto as avaliações nos tribunais de guerra são feitas logo após a guerra”, disse Guedes em entrevista ao jornal O Globo.

Uma CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) não é um tribunal. A CPI não julga, apenas investiga. É uma investigação pautada pela política, obviamente, pois se dá no âmbito do Poder Legislativo. Mas indiciamentos e punições, se ocorrerem, são feitas pelo Ministério Público e pelo Poder Judiciário. Ou então o relatório final da CPI pode embasar (mais um) pedido de impeachment pela Câmara dos Deputados. Daí, sim, é um julgamento. Um julgamento político.

Se CPI fosse tribunal, ainda assim a comparação feita por Guedes não teria sustentação. Não é preciso esperar uma guerra acabar para estabelecer um tribunal para julgar seus crimes.

No final de 2008, eu estive no Sudão para escrever uma reportagem sobre o conflito em Darfur, uma região no oeste do país africano que há anos enfrentava um duro embate entre rebeldes e o governo de Cartum e suas milícias. Vi com meus olhos o horror da guerra, seu efeito sobre a população civil. Quando eu estava lá, aldeias continuavam sendo bombardeadas, mulheres seguiam sendo estupradas por bandos armados aliados ao regime, milhares de famílias continuavam abandonando suas casas para irem viver em campos de refugiados superlotados.

Omar Al-Bashir era o ditador sudanês, no poder desde 1993. Apenas três meses depois de eu publicar minha reportagem, o Tribunal Penal Internacional expediu uma ordem de prisão contra Al-Bashir por cinco crimes contra a humanidade, dois crimes de guerra e três acusações de genocídio.

O conflito em Darfur não havia terminado. Ele ainda estava em andamento, como eu próprio havia testemunhado, mas isso não impedia que seus crimes fossem investigados e seus responsáveis, denunciados.

Al-Bashir continuou no poder nos anos seguintes, mas teve que tomar cuidados redobrados em viagens internacionais: para não ser detido, só visitava países cujos governos estavam dispostos a ignorar a ordem de prisão vinda de Haia.

O ditador sudanês foi deposto em 2019 após intensos protestos populares e, desde então, está sendo julgado em seu próprio país por outros crimes. Há negociações em andamento para que, posteriormente, ele seja entregue ao Tribunal de Haia, na Holanda. O julgamento de Al-Bashir só não foi concluído antes pela impossibilidade de levá-lo a apresentar-se pessoalmente diante da corte.

A pandemia não é uma guerra e CPI não é tribunal. Ainda que fossem, nada impediria que seus crimes fossem investigados e punidos desde já.

Confira a matéria na Gazeta do Povo

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