Desde o ano passado eu costumo ficar atenta a Sikêra Jr., e isto por três razões: (1) me inteirar de para onde vai uma significativa parcela do pensamento popular e (2) eu gosto. Em outros tempos, o pedante fingia que passava 100% do tempo livre se deleitando com clássicos da literatura e música erudita, de modo que passou pela minha cabeça começar este texto em latim para tirar onda. Mas depois lembrei que a tendência hoje entre os pedantes é não ler nada mais complexo do que Djamila, passar o tempo livre assistindo a séries e até BBB, para em seguida tentar convencer o leitor de que as séries e o BBB são coisas importantíssimas e profundíssimas. Então vamos combinar que, se ver e discutir BBB é aceitável, ver e discutir Sikêra Jr. não representa queda nenhuma no debate público. Até porque ele estava entrevistando o presidente da república e é um fenômeno de audiência.
A coisa que mais me chamou a atenção na entrevista foi que Bolsonaro falou com muita franqueza sobre a possibilidade de um golpe militar contra o STF e os governadores. Não usou estas palavras, mas deixou claras a época e a justificativa oficial para o golpe. A data seria após o fim do auxílio, e a justificativa é a violação do artigo 5º da Constituição, segundo o qual os cidadãos têm direito de exercer suas profissões e liberdade para celebrar cultos religiosos.
Qual não foi minha surpresa ao descobrir que a grande razão de comoção na esquerda era a foto com o CPF cancelado?
Como é o programa
O programa não é inteiramente policial. O público de um Datena costuma ser o de velhinhas amedrontadas que, por alguma razão, gostam de ficar mais amedrontadas ainda. Para dar vazão à revolta brasileira com a impunidade de bandidos comuns, Datena faz aqueles discursos inflamados contra a bandidagem e esbraveja furioso. O programa de Sikêra mostra casos policiais — nem todos letais — mas com escracho.
O seu bordão “Queima ou não queima?” é usado quando põem a foto do bandido na tela. Comenta a aparência do bandido — o penteado, aquele risquinho que fazem na sobrancelha, o cordão — e arremata com esse bordão que lança dúvida sobre a macheza do sujeito. Vendo um bordão desse, o tuiteiro alienado acha que é homofobia e que todos os espectadores de Sikêra vão sair por aí matando gays. Isto é ignorar o papel que a macheza tem na reputação de bandidos. Mas o programa conta com gays assumidos nos seus quadros, como o correspondente do Rio de Janeiro, cuja marca registrada é aparecer mostrando a tatuagem “Amor” no antebraço antes de narrar as notícias mais cabeludas.
Aparecem também casos em que o bandido é bem sucedido, e aí entra o estilo tradicional de programa policialesco acrescido de crítica da “lacração” e da “imprensa maconheira”. Se a vítima dos bandidos for um negro, ele vai dizer que o caso não sai na mídia tradicional nem vira hashtag porque o negro morto era trabalhador, ou porque era pobre.
Ao mostrar bandidos que têm namorada, aproveita para dar conselhos amorosos às telespectadoras. Comenta que, pela aparência (penteado, sobrancelhas, roupas, expressão facial etc), já se via que não era médico, nem advogado, nem trabalhador, era bandido e maconheiro. Aposta que a mãe não gostou do genro. Aconselha as mulheres a estudarem e a não se desesperarem por um homem em particular, pois, segundo ele, homem “é igual a ônibus: passa um e depois vem outro.” O conselho para os homens é de não fumar maconha, pois quem fuma maconha “dá o caneco”.
O bordão “CPF cancelado” aparece quando alguma operação policial (ou cidadão armado em legítima defesa) mata o bandido. Antes de dar a matéria, ele diz esse bordão e os membros do elenco saem correndo pelo palco com CPFs gigantes com uma tarja vermelha escrito “cancelado”, feito aquele da foto. Os telespectadores conhecem os membros do elenco pelos apelidos. Dois usam fantasias, que são o Samurai e o Burro. Eventualmente os membros do elenco pirraçam Sikêra. Um deles, o Coringa, tem uma risada estridente que atrapalha a narração e é alvo das mais furibundas broncas do apresentador.
De resto, o programa mostra casos pitorescos (como a mulher que flagrou o marido com uma égua), algumas polêmicas (como Xuxa tomando as dores da égua, processando Sikêra e fazendo campanha por sua demissão), assombrações e coisas do quotidiano (como as medidas sanitárias). Muito raramente, há política partidária.
Bolsonaro no programa
O programa funcionou em perfeita normalidade. O Coringa riu alto e deixou Sikêra brabo, como de costume. O efeminado assistente Michelle Obama foi servir água e ouviu piada de Bolsonaro. Ele fez piada de japonês também com Samurai. Ambos conversaram sobre bolsa de colostomia: Bolsonaro usou por causa da facada, e Sikêra por ter engolido parte de uma dentadura quebrada. Explicando-se, Bolsonaro fala do médico que o pegou em Juiz de Fora. Sikêra leva para o duplo sentido e o põe na defensiva, mas sem perder o humor ou se fazer de vítima. Nesse clima, trataram de assuntos relativos à covid e à política.
Não tenho dúvidas de que, com o povão, ambos ganharam pontos. Ambos se mostraram simples, bem-humorados, raciocinando de modo prático sobre coisas práticas, desprovidos daquela covardia que faz as pessoas baixarem a cabeça ao politicamente correto.
Termômetro razoável
Nas ruas, nos ponto de ônibus, nas filas de serviços estatais, no comércio de funcionamento diminuído, a pergunta onipresente é: mas qual o sentido de restringir os horários (ou os ônibus), se assim fica todo mundo apinhado? Ligue as TVs progressistas, abra os jornais, e dificilmente você verá alguma medida restritiva ser recebida com ceticismo. No entanto, se eu procuro um resumo de Sikêra no Youtube, ou assisto a um programa, é certo que estará lá esse questionamento muito óbvio, que todo mundo faz.
Por mais que eu andasse na rua a pé em Salvador, por mais que eu frequente boteco, e por mais que eu tenha a vantagem de conhecer um pouco da mentalidade rural vivendo no interior, a minha percepção de clima de opinião não é infalível. Assim, identifiquei em Sikêra uma suplementação útil.
Quando houve aquele caso do policial surtado em Salvador, os bolsonaristas conseguiram dar a impressão de que havia na Bahia uma comoção popular, que uma greve de polícia era iminente e que dela sairia uma revolução. Escrevi neste jornal que isso não era verdade, que isso era um fenômeno urbano de internet sem penetração popular, que na verdade o ator político era um amotinado muito impopular, e foi um festival de xingamentos furiosos nos comentários.
Não teve greve nenhuma, revolução nenhuma, mas eu quis mesmo assim ver o comentário de Sikêra a respeito. Eis que no vídeo sobre o policial em Salvador ele quase não falou do ocorrido propriamente dito. (Disse apenas que não era mártir nem bandido.) Para a minha surpresa, estava furioso com Bolsonaro, exigindo que honrasse os votos que recebeu e desse um golpe de Estado (“fizesse alguma coisa”, nas palavras dele).
Olhando em retrospecto, isso bate com minhas observações. Ouvi Lula elogiado como figura que, apesar de tudo, sabe se impor e sabe impor respeito. Bastou Lula aparecer de máscara para Bolsonaro aparecer de máscara, o que mostraria qual dos dois é o macho e qual é o frouxo.
Será que, hoje, só um ditador seria considerado digno de voto pelos brasileiros? Situação paradoxal, porém compreensível. Que jeito o brasileiro vê de poder trabalhar em paz? Como democrata, minha vontade é a de ver o impeachment de ministros do STF. Do jeito que a coisa anda, qualquer hora os ministros entendem que o Brasil é uma monarquia e Átila Iamarino é imperador do Brasil.
Dúvidas
Por que se falou abertamente de golpe de Estado em rede nacional e as oposições não falam nada? Eu tenho três respostas que não se excluem: (1) não viram esse programa do populacho (mas BBB pode), (2) só procuraram infrações identitárias, sem nem prestar atenção à ameaça de golpe (3) viram tudo, repararam em tudo, reconhecem que um golpe seria popular, mas não querem mover uma palha para defender a legitimidade do STF e torcem para varrer a ideia de golpe para debaixo do tapete.
Se o motivo 3 for forte, é possível que tenhamos um golpe antes das eleições, e que esse golpe tenha bastante respaldo popular. Um 64 parte 2, numa outra época em que uma outra potência comunista desponta no mundo. Acontece que a China depende de nós para comer, e a política internacional não parece disposta a aceitar Bolsonaro.
E se um golpe legitimasse, na opinião pública internacional, uma intervenção “democrática” da China no Brasil?
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