Antes de começar a entrevista, explico a Glenn Greenwald (e, agora, aos leitores) o propósito da conversa: conhecer um pouco mais do combativo jornalista que vem dando nó na cabeça dos esquerdistas por sua defesa intransigente da liberdade de expressão. E, de quebra, mostrar que um diálogo respeitoso e divertido entre duas pessoas que atuam em espectros políticos opostos é possível.
Ele responde com um lacônico “ok” e, no intervalo entre o silêncio constrangedor e a primeira pergunta, penso em todas as reações possíveis dos leitores mais exaltados, tanto bolsonaristas quanto lavajatistas, que talvez não estejam interessados no diálogo com o “inimigo”. Vão questionar por que estou dando espaço para Glenn Greenwald. “Aí tem”. Vão me chamar de isentão, de petista enrustido. “Seu isentão, petista enrustido!”. Vão dizer que é por isso que a esquerda sobrevive e que depois que isso daqui virar uma Venezuela não venha reclamar. E assim por diante.
Concluo rapidamente que, apesar da hostilidade em potencial, ainda assim vale a pena mostrar que dá para se sentar num bar imaginário ao lado de Glenn Greenwald e ter com ele uma conversa agradável, sem precisar apelar para a troca de sopapos. Garçom, me vê uma bem gelada!
Do outro lado da linha, Glenn parece brincar com uma lata. Ouço latidos de cachorros. E crianças fazendo algazarra. O entrevistado interrompe a entrevista duas vezes. Primeiro para dar bronca nos cachorros, que o ignoram. “Os cachorros só obedecem ao David [Miranda, deputado do PSOL e companheiro de Glenn há 16 anos], que não está aqui agora”, reclama ele. Depois para resolver os problemas de conexão.
A solução encontrada por Glenn, aliás, é generosa para com o entrevistador. Por meia hora, mais ou menos, ele se expõe à chuva e ao frio de Petrópolis, de onde fala empolgadamente e sem se irritar ou hesitar sobre todos os assuntos propostos. Sem querer que o entrevistado pegue uma pneumonia, ainda mais em tempos de Covid-19, me sinto obrigado a pôr fim à conversa um pouco antes do previsto. Uma pena.
Na entrevista abaixo, que você certamente lerá com uma atenção toda especial e com a generosidade intelectual que lhe é característica, Glenn Greenwald começa explicando porque é um defensor incansável das causas progressistas, faz “duras críticas” ao senso de humor de David Miranda, fala do policiamento de que é vítima por ser um inflexível defensor da liberdade de expressão (inclusive para o discurso de ódio) e reconhece o erro estratégico da retórica exaltada e intelectualmente desonesta de parte da esquerda.
Sempre que vejo seu nome, você está envolvido em briga, discussão, polêmica. Você não se cansa de brigar? Vale a pena tanto conflito assim?
Muitos de nós trabalhamos com coisas ligadas à nossa personalidade, que geralmente é formada quando somos crianças. Sempre gostei de debater, questionar tudo, argumentar. Minha mãe sempre reclamava de eu ficar perguntando “por que isso?”, “por que aquilo?”. Eu nunca aceitava o que falavam para mim. E tive uma experiência na infância que foi importante para mim, quando me vi como gay e a sociedade não aceitou. E isso me ensinou a nunca aceitar a autoridade, a sempre questionar tudo, debater e tentar entender os pontos de vista. Minha personalidade sempre procura o debate para questionar se a pessoa está pensando da forma certa. Mas isso não me dá raiva, tensão, ansiedade. Isso me dá força. É o que eu gosto de fazer.
[Neste momento, percebendo que o entrevistado está em desvantagem por responder às minhas perguntas numa segunda língua, sugiro que ele passe a responder às perguntas em inglês].
Ainda falando da sua personalidade, o que o faz rir?
Uso muito humor no jornalismo, no debate público. Não é necessariamente um humor que as pessoas percebam e gostam. É sarcástico, cáustico, irônico. É esse o tipo de humor de que gosto. Mas as pessoas têm senso de humor diferentes. Uma das séries de que mais gosto é Curb Your Enthusiasm. E eu passei meses tentando fazer com que David [Miranda] assistisse. Ele assistia, mas ficava dizendo que não tinha graça nenhuma. Acho que é uma questão de diferença cultural. Ele tem um estilo de humor diferente. Mas esse é o meu. Humor que deixa as pessoas incomodadas, que usa ironia, que usa deboche, que usa sarcasmo.
Você tem amigos bolsonaristas ou “de direita”? Como é seu relacionamento com eles?
Sim, claro. Aliás, a primeira vez que me convenci de que Bolsonaro venceria as eleições, em 2018, foi quando amigos nossos, incluindo amigos de infância do David que moravam no Jacarezinho, operários, pessoas das favelas, LGBTs e negros começaram a admitir que votariam em Bolsonaro. Era quase como se estivessem “saindo do armário”. E temos vários amigos que votaram em Bolsonaro. Não diria que sejam “bolsonaristas radicais”, mas, sim, tenho muitos amigos que não compartilham da minha visão política.
E você ainda conversa à mesa com esses seus amigos que votaram em Bolsonaro?
Com certeza. Não gosto que diferenças políticas interfiram na amizade. Aliás, uma das visões erradas que as pessoas têm a meu respeito é a de que, porque sou um agressivo, combativo, busco o debate político apaixonadamente, então eu devo odiar as pessoas que discordam de mim. Mas eu quase nunca levo isso para o lado pessoal. Augusto Nunes foi uma exceção, porque aquela nossa rixa não tinha a ver com política. O que me deixou com raiva foi ele ter dito que um juiz deveria tirar meus filhos de mim. Mas quando a rixa é apenas política… Eu gosto de conversar com pessoas e ter pessoas na minha vida com opiniões diferentes, porque você aprende muito a respeito de como as pessoas pensam. Você não se fia a imagens caricatas. Você realmente entende por que as pessoas pensam o que pensam, o que acho que é muito importante para um jornalista. E, por fim, evita que você fique muito à vontade com suas ideias sobre o mundo. Quando você conversa com pessoas que veem as coisas de uma outra forma, você pode aprender muito e até mudar de ideia sobre algumas coisas. Por isso é importante procurar ter na vida pessoas com opiniões diferentes da sua.
Mas você não acha que tanto a esquerda quanto a direita adoram viver em bolhas, simplesmente porque é agradável estar próximo de pessoas que pensam como a gente?
[Cães latem. Glenn grita com eles.]
Seus cachorros o obedecem em inglês ou português?
Eles não me obedecem em nenhuma língua. Eles só obedecem ao David. Eles não me respeitam. [Risos] Mas, sobre as bolhas, sempre tentei sair de bolhas. Quando comecei a trabalhar na Vaza Jato, ou antes, quando o David entrou para o Congresso, dei uma entrevista ao Pânico. E muita gente de esquerda me perguntou: “por que você vai àquela rádio [Jovem Pan]?” E eu respondia que é muito importante dialogar com as pessoas que discordam de você. Como você sabe, eu apareço na Fox News o tempo todo, e isso gera controvérsia na esquerda. Mas sempre acreditei nisso. Acho que a imprensa, os políticos, o governo têm interesse em nos manter divididos, cada um no seu canto, um na direita, outro na esquerda, o que significa que você tem que odiar a outra pessoa. E acredito que as pessoas têm mais em comum do que estão dispostas a admitir.
Por que você optou por morar no Brasil?
A primeira vez que vim para o Brasil acho que foi em 1996 e 1995. Estive no Rio de Janeiro por um dia. E disse para a pessoa que estava comigo: “Estou com medo de que, pelo resto da minha vida, eu nunca mais vá conhecer outra parte do mundo, porque sempre que eu tiver tempo para viajar vou querer vir para cá”. Me apaixonei pelo Brasil no primeiro dia que passei no Rio de Janeiro. E estou aqui há 16 anos. E, quando estou nos Estados Unidos, só consigo pensar em voltar para o Brasil. Então, apesar de todos os problemas, dos loucos e doentes que todo mundo conhece, é um país tão lindo e vibrante para mim em vários níveis e me ensina tanto. E é aqui que me sinto mais à vontade.
Meus leitores, boa parte deles lavajatistas, são evidentemente hostis ao seu trabalho e ao trabalho do Intercept em relação à Vaza Jato. Você sente orgulho do seu trabalho? Acha que fez o certo? O fim da Lava Jato não garante a impunidade de vários corruptos?
Tenho muito orgulho do nosso trabalho na Vaza Jato, porque acho que exercemos a função do jornalismo, que é a de expor a corrupção por parte de pessoas poderosas e que agiam em segredo. Nunca fui contra o trabalho da Lava Jato. Em 2017, fui convidado a falar num evento no Canadá que premia as melhores iniciativas de combate à corrupção. Eu tinha de fazer um discurso sobre cada um dos finalistas. Um era um jornalista egípcio, outro do Azerbaijão e o terceiro finalista era a força-tarefa da Lava Jato. Houve uma grande campanha da esquerda me pressionando a não ir a um evento que estava premiando a Lava Jato, mas não cedi. E eu fui e o Deltan [Dallagnol] estava lá, com outros membros da Lava Jato. E todos estavam nervosos, não sabiam o que eu diria. Fiz o discurso e disse que tinha críticas à Lava Jato, mas que, no geral, eles estavam fazendo um trabalho corajoso e importante. Elogiei o trabalho da Lava Jato, a tal ponto que eles pegaram meu discurso e reproduziram em suas contas no Facebook, incluindo Deltan. “Aqui está o grande jornalista Glenn Greenwald defendendo o trabalho da Lava Jato”. E isso foi depois da condenação do Lula.
O Brasil tem sérios problemas de corrupção e acho que o trabalho deles foi importante, mas não se pode combater corrupção com corrupção. Por exemplo, se há um criminoso à solta, alguém que cometeu um crime horrível, como estupro ou assassinato, você não pode permitir que a polícia simplesmente invada a casa de todo mundo e, quando ela finalmente capturar o bandido, diga “ah, agora desculpe por todas as leis que a polícia infringiu, afinal ela conseguiu pegar o bandido”. Não. A polícia precisa obedecer a lei porque, se a polícia infringir a lei, isso gera abusos contra a sociedade. Foi isso o que aconteceu com a Lava Jato. E a culpa pelo fato de a Lava Jato estar em perigo não é minha nem de outros jornalistas por revelarmos a corrupção por parte de Sergio Moro e da força-tarefa. A culpa é deles. Eles deveriam ter cumprido as regras. E, sim, eles descobriram muita corrupção, mas eles também foram corruptos ao abusarem do poder de processar e julgar. E isso é grave.
E queria acrescentar só mais uma coisa: para mim é uma ironia esse argumento de lavajatistas de que não se deve criticar o que Moro e a Lava Jato fizeram porque o trabalho deles foi importante e, ao criticar isso, você menospreza a importância do trabalho deles. Esse é exatamente o mesmo argumento e mentalidade que os defensores de Lula e do PT usaram durante o Mensalão, dizendo “certo, eles talvez tenham feito algumas coisas que não deveriam ter feito, mas estão tentando tirar pessoas da pobreza, melhorar o país. Por que vocês estão atacando Lula e o PT, impedindo que eles ajudem os pobres?”. É o mesmo argumento. E a resposta para isso era “não que eu seja contra a plataforma política do PT, mas pagar propina a deputados é algo que corrompe a democracia”. Não importa o que tenha motivado isso. Então é exatamente assim que vejo nosso trabalho de reportagem. Não sou contra a Lava Jato. Sou a favor da Lava Jato. Sou contra o abuso de poder por parte de juízes e procuradores. E foi isso o que a reportagem revelou.
Também não sou contra o jornalismo investigativo, claro. Mas usar mensagens hackeadas também não seria uma forma de corrupção? A gente não acaba entrando num círculo vicioso de abuso de poder, de corrupção do poder de cada instituição?
Olha, alguns dos maiores trabalhos jornalísticos já feitos só foram feitos porque as fontes infringiram a lei para obter informações. Porque em geral as autoridades, o governo, os poderosos conseguem usar a lei para esconder o que fazem. Então a única forma de obter informações sobre o que eles fazem é infringindo a lei. Eu lhe dou um exemplo: durante cinco anos, a Lava Jato e a Polícia Federal vazaram delações para a imprensa. Para a Globo, Folha, Estadão. Isso era ilegal. Sempre que a Lava Jato ou Polícia Federal vazavam detalhes de uma investigação, o que faziam constantemente, isso era ilegal. E a Globo estava ganhando muito dinheiro com essas manchetes, colocando isso no Jornal Nacional. E ninguém jamais disse “ah, a Globo não deveria estar divulgando acusações em delações porque o vazamento disso é ilegal”. Não. As pessoas diziam que isso era de interesse público. O mesmo serve para a conversa entre Lula e Dilma que teria revelado abuso de poder por parte de Dilma, que tentava pôr Lula no governo para protegê-lo. No final das contas, o STF disse que a gravação daquelas conversas era ilegal porque Moro precisava de permissão do STF para gravar Dilma. E ainda assim as conversas foram divulgadas. As pessoas consideravam isso uma informação importante, ainda que tenha sido ilegalmente obtida. [A ligação começa a falhar]
Glenn, a ligação falhou e eu perdi a última parte do que você disse. Mas peguei a maior parte da resposta. Você prefere repetir ou podemos prosseguir?
Não! Deixe-me repetir porque acho que é importante.
[Glenn começa com “alguns dos maiores trabalhos jornalísticos”, mas a ligação precisa ser restabelecida. Quando isso finalmente acontece, Glenn repete a resposta com uma precisão incrível, usando praticamente as mesmas frases, com as mesmas palavras, na mesma ordem. E acrescenta a parte que ficou inaudível].
Se você olha para os Estados Unidos, com o Pentagon Papers, com a reportagem que fiz com Edward Snowden sobre a NSA e como ela espiava todo mundo, incluindo o Brasil, com a Wikileaks e a corrupção dentro do Partido Democrata… A maior parte disso era de fontes infringindo a lei para dar informações a jornalistas. Informações que os jornalistas não teriam como obter, sobre o que poderosos estavam fazendo. Então é óbvio que jornalistas não têm o direito de infringir a lei. Mas se a fonte chega até você com informações relevantes e verdadeiras, o fato de elas terem sido obtidas ilegalmente não lhe dá o direito de omiti-las ou escondê-las ou ignorá-las. Na verdade você tem o dever de divulgar. Quando eu estava trabalhando numa reportagem com a Globo sobre como a NSA espiava a Petrobras, o Ministério das Minas e Energia e o sistema brasileiro de telecomunicações, ninguém nunca me perguntou por que eu estava divulgando aquelas informações obtidas à margem da lei. Fui ao Senado e fui inquirido pela direita, esquerda, centro… A Globo ganhou até prêmio pela reportagem. Então as pessoas parecem ter esse problema só quando a reportagem de alguma forma atinge seu lado político.
Mas o uso jurídico dessas mensagens é que complica a trama, não acha?
Sim. A lei obviamente diz que informações ilegalmente obtidas não podem ser usadas em processos judiciais. E o arquivo que nós tínhamos não pôde ser usado pelos advogados de Lula porque foi obtido ilegalmente. O arquivo acabou sendo usado só porque foi a Polícia Federal o apreendeu ao prender os supostos hackers [na Operação Spoofing]. Só por isso as mensagens acabaram usadas no processo judicial. Não o nosso arquivo, mas o arquivo obtido pela Polícia Federal.
Nessa nossa conversa, por duas vezes você mencionou o policiamento da esquerda, que criticou sua ida ao Pânico e a um evento no Canadá. Nós, na Gazeta do Povo, enfrentamos essa perseguição por parte da milícia virtual Sleeping Giants. Você tem um histórico de luta pela liberdade de expressão, por isso queria que você me dissesse o que pensa de iniciativas como a do Sleeping Giants e do policiamento por parte dessas pessoas que você chama de “ideólogos extremistas”.
Essa é uma das minhas maiores discordâncias com a esquerda, provavelmente a maior. Essa coisa de a esquerda ter se tornado o movimento político que acredita em censura, em policiamento do discurso, em proibir e banir ideias de que não gostam, em expulsar pessoas da Internet – que deveria ser livre do controle de empresas e do governo. Acredito que essa seja uma grande diferença cultural entre os Estados Unidos e o Brasil. Lá, o movimento pela liberdade de expressão ao longo de todo o século XX foi de esquerda. A organização que mais agiu para defender a liberdade de expressão defendia até mesmo nazistas e supremacistas brancos. Essa organização era a ACLU [American Civil Liberties Union], composta quase que totalmente por advogados esquerdistas. Eles eram meus heróis na minha juventude. Eles defendiam o direito à liberdade de expressão das pessoas mais odiadas do país. Antes de ser jornalista, eu era advogado constitucionalista e participei de muitos casos como esses, seguindo os passos da ACLU, defendendo supremacistas brancos e também extremistas de esquerda. Além disso, os votos mais importantes na Suprema Corte dos EUA, em casos que diziam respeito à liberdade de expressão, foram escritos por juízes de esquerda. O movimento pela liberdade de expressão ganhou força com o movimento antibélico, nos anos 1960. Era um movimento sediado em Berkeley, uma universidade de esquerda. Então para mim a liberdade de expressão sempre foi uma causa da esquerda, um dos mais importantes princípios da esquerda. Nos Estados Unidos, a censura geralmente vinha da direita. Eles queriam censurar material pornográfico, discos que…
[A ligação é novamente interrompida. Fico lá falando “alô, alô, tem alguém me ouvindo?” até perceber que não há o que fazer senão ligar de novo. Glenn atende e continua animadamente com a resposta].
Acho que no Brasil sempre houve essa ideia de que a liberdade de expressão deveria ser restrita, de que o discurso de ódio deveria ser contido. Não concordo com isso. Não confio em nenhuma autoridade que tenha poder para determinar quais ideias podem ou não ser expressas. Não acho que as pessoas devam ser expulsas da Internet por defenderem ideias de que as Big Tech ou governos não gostam. Acho que é muito perigoso dar ao Facebook ou ao Judiciário o poder de determinar o que é verdade e o que é mentira. E tenho falado sobre os perigos da investigação do ministro Alexandre de Moraes contra bolsonaristas, incluindo alguns que eu desprezo, como Oswaldo Eustáquio. É perigoso tirar bolsonaristas das redes sociais, obrigar Twitter e Facebook a silenciá-los, prendê-los por suas opiniões. Essa é definitivamente uma grande diferença que tenho com a esquerda. O que nunca entendi é que, se você perguntar a um esquerdista o que ele pensa sobre o governo, sobre o Judiciário, sobre as Big Tech, ele dirá que essas instituições são totalitárias, fascistas, direitistas. Mas daí você pergunta se ele quer dar poder a essas instituições para controlar o discurso e ele responde “sim, quero permitir que Mark Zuckerberg, o governo e o Judiciário possam determinar o que pode ou não ser dito na Internet”. Pra mim essa é uma ideia muito mais perigosa do que qualquer dessas ideias que eles tentam censurar.
Quando você se posicionou contra Joe Biden, deu um nó na cabeça de muita gente. Me parece que sua posição está mais para a de um anarquista. Você não reconhece autoridade. Mas agora você é casado com um político, com uma autoridade constituída. Não há uma contradição aí?
[Risos] Na verdade não me identifico como anarquista. Não vejo minha filosofia como uma que defende a extinção do governo ou o fim da política. Mas com certeza sou antiautoritarismo. Acho que esse é um rótulo justo. Em geral não gosto de rótulos como “esquerda” e “direita”, mas se alguém me pergunta com que rótulo me sinto à vontade, geralmente respondo “libertário”.
Quanto à sua pergunta, quando conheci o David ele não era político. Na verdade, lembro que, quando comecei minha carreira de jornalista e nós tínhamos que jantar com um político ou jornalista, o David dizia: “ah, não quero ir. Vocês vão ficar falando de política a noite toda. Isso é chato demais”. Ele realmente não queria saber de política. Queria trabalhar para a Sony, trabalhar com videogames. Foi a política que o encontrou e não ele quem encontrou a política. Ele foi detido no aeroporto de Heathrow [em Londres] e isso o radicalizou. O que [Edward] Snowden sofreu o radicalizou ainda mais. Ele fez campanha pelo asilo de Snowden. O fato é que, depois de 16 anos de casamento, você sempre terá diferenças políticas com a pessoa. Não compartilho de todas as opiniões políticas de David e nem ele as minhas. E não vejo uma contradição aí, porque não vejo David como um político autoritário. Ele tem falado em entrevistas sobre os excessos da esquerda, sobre a cultura do cancelamento e essa recusa em estabelecer um diálogo. E é interessante porque, quando David foi vereador no Rio de Janeiro, antes de virar deputado, ele trabalhou com vários vereadores de direita, incluindo Carlos Bolsonaro, a fim de aprovar leis. Então acho que ele faz uma política com a qual me sinto à vontade.
Levando em conta a polarização, radicalização, os movimentos identitários, a pandemia e até a expansão da China, como você imagina o mundo daqui a 30 anos? Ele é melhor ou pior do que hoje?
É difícil prever o futuro porque ele será determinado pelas batalhas que estamos travando agora. Acho que uma das invenções mais importantes dos últimos cem anos foi a Internet, justamente por ser um instrumento de libertação, permitindo que as pessoas se comunicassem e disseminassem ideias sem que autoridades pudessem controlá-las. Mas a Internet também é capaz de fazer o contrário, centralizando o poder nas mãos de governos e empresas, virando uma arma de vigilância e monitoramento. Então hoje há essa batalha para garantir que a tecnologia não permita o controle centralizado. Há todo um movimento agora em torno de criptomoedas. E não é um movimento financeiro. A ideia é contornar o controle centralizado. Por isso eu me atenho a essas batalhas: liberdade de expressão, Internet livre, privacidade. Porque, se perdermos essas batalhas, as tecnologias que estão sendo desenvolvidas serão usadas para controlar os seres humanos como nunca antes. Por outro lado, se vencermos essas batalhas, teremos uma liberdade como não vemos há séculos. Então sou otimista, mas não acho que esteja garantido que, daqui a 40 anos, o mundo será mais livre. Consigo vê-lo com facilidade sendo mais repressivo, mais autoritário.
A China é uma ameaça para o mundo?
Existe uma coisa muito interessante acontecendo entre a China e os EUA. Em geral, quando os Estados Unidos têm um inimigo, todos os centros de poder norte-americanos se unem. Foi assim com Cuba e União Soviética, durante a Guerra Fria, ou Venezuela e Irã. Grandes empresas, as Forças Armadas, a CIA, todos se unem e passam a ver o inimigo como tal. Hoje o que estamos vendo com a China é o oposto. Os centros de poder norte-americanos estão em dívida com a China. E não só Hollywood. Também as Big Tech. E, mais importante, Wall Street. Porque as empresas norte-americanas, nas últimas décadas, têm transferido a produção e empregos para o exterior, sobretudo para a China, porque a China não tem leis trabalhistas, os salários são baixos, eles têm fábricas insalubres que empregam mão-de-obra infantil. Assim, os maiores aliados da China são Wall Street, o Vale do Silício e Hollywood. Mas as forças armadas e a CIA veem a China como um adversário e uma ameaça. Assim, como a China será vista pelos EUA é uma grande incógnita. Acho que o mais provável é que China e EUA se aproximem e os EUA se tornem mais parecidos com o modelo chinês, e não que eles venham a se tornar grandes adversários, como numa nova Guerra Fria. E me preocupo com isso, porque não acho que a China seja uma ameaça para os EUA. A maior ameaça é a de que os EUA fiquem mais parecidos com a China.
Algo que me incomoda muito na esquerda é essa coisa de chamar Bolsonaro de genocida. Você se sente à vontade com esse rótulo? Ou você acha que isso é até desrespeitoso com povos que realmente sofreram genocídio?
É algo muito semelhante ao que aconteceu nos EUA, com Trump. As pessoas não se satisfaziam em criticar Trump pelo que ele merecia ser criticado. Trump defendia políticas que eu não só desaprovava como considerava perigosas. Mas não bastava dizer isso. Era preciso compará-lo a Hitler. Você tinha de dizer que ele era ditador, supremacista branco, que ele foi chantageado pela Rússia, que era um agente russo infiltrado. Rótulos malucos e extremistas tinham de ser colocados nele e, se você não fizesse isso, acabava acusado de ser um apoiador de Trump.
Um dos motivos para eu ser contrário a essa abordagem é que ela é desonesta. Trump não é um Hitler. E acho que é ofensivo usar o Holocausto e Hitler para se referir a alguém que não é, de forma alguma, capaz de tentar fazer o que fez de Hitler um ser tão unicamente mau, como matar milhões de pessoas por causa da sua raça e religião. Intelectualmente eu considero isso ofensivo, historicamente eu considero isso ofensivo. E também acho que é estúpido. Porque quando você usa retórica extremista, as pessoas perdem a confiança no que você está dizendo. Assim, quando chega a hora de realmente fazer soar o alarme para coisas realmente horríveis, as pessoas ignoram, porque essas palavras são ditas tão a esmo que perdem a força. Acho que isso acontece muito com palavras como “racismo”, “misoginia”. Se você as usa exageradamente, elas perdem a força. Acho que isso aconteceu com “antissemitismo”. As pessoas que criticavam Israel eram consideradas antissemitas com tanta frequência que a palavra perdeu sua força.
No Brasil o que acontece é algo bastante semelhante. Se você é de esquerda, não basta dizer que acha que Bolsonaro gerencia muito mal a pandemia e que, por isso, pessoas morrem. É nisso que acredito. Não basta dizer que ele preferiu crescimento econômico e defender sua popularidade política a proteger a vida das pessoas. Acho que essa também é uma crítica válida. Mas chamá-lo de genocida, como se houvesse um ato intencional de pôr fim à vida de um grupo por causa de sua raça, etnicidade ou religião, o que seria um genocídio de verdade, é errado. Não serei coagido a dizer algo que não é verdade.
E também acho que, quando você faz isso, consegue um monte de apoio. Se você vai para o Twitter e chama Bolsonaro de “genocida”, consegue 5 mil retuítes e 25 mil likes. Seu cérebro lhe diz: “você está fazendo algo de bom. Continue fazendo isso”. Esse é um dos efeitos nocivos das redes sociais. Acho que esse foi um dos motivos para a vitória de Bolsonaro e Trump. Os críticos foram tão irresponsáveis e tão descuidados com a verdade que ele se tornou uma figura admirável para as pessoas que ainda não estavam convencidas a votar nele. Então essa obsessão da esquerda em usar linguagem exagerada, sem se importar com o fato de ser ou não verdade, só porque isso faz com que eles se sintam bem, é ofensivo, desonesto e é sobretudo estrategicamente estúpido.
Sem contar que é mais difícil fazer uma crítica contundente e inteligente. É muito mais fácil xingar. E também é difícil reconhecer algo de bom no seu opositor.
Sim, mas vamos deixar claro uma coisa. Não é só a esquerda que faz isso. Se você perguntar a um bolsonarista o que ele pensa do Lula, ele dirá que é um comunista. Mas Lula governou o Brasil por oito anos e o capitalismo prosperou, os grandes empresários amam o Lula, o mercado quer Lula presidente de novo porque o Brasil cresceu em termos econômicos. Ele não era comunista, não governou como comunista e nunca vai. E nem se quisesse ele poderia. Acho que, como o debate é realizado nas redes sociais, sobretudo no Twitter, que é onde políticos e jornalistas passam a maior parte do tempo, isso encoraja esse tipo de linguagem que estimula as emoções. Se você for ao Twitter e disser “eis quatro coisas que acho que Bolsonaro fez de errado na pandemia”, você terá uns poucos retuítes, talvez 30 likes. Mas se você postar algo o chamando de assassino, fascista, genocida, um louco como Hitler, você terá 10 mil retuítes e sua popularidade vai aumentar. Então as redes sociais estimulam esse tipo de discurso.
Em seu livro mais recente, você conta sua luta por liberdade de imprensa e justiça no “Brasil de Bolsonaro”. E no “Brasil do STF”, como tem sido a sua luta? Concretamente o STF não é uma ameaça maior à liberdade de imprensa e à justiça?
Eu falo brevemente sobre o STF no meu livro, explicando que é preocupante e perigoso. Mas meu livro não é sobre isso. Temos que lembrar que é a história da Vaza Jato. Parece que foi há muito tempo, mas não foi. O que aconteceu na Vaza Jato é que uma fonte entrou em contato comigo em maio de 2019, cinco meses depois da posse de Bolsonaro e quatro meses depois de o PSL se tornar o segundo maior partido do Congresso. Bolsonaro estava no auge do seu poder quando começamos a trabalhar no caso. Na época, não havia apenas o bolsonarismo, mas também o lavajatismo. Eles trabalhavam juntos, ainda mais depois que Moro se juntou ao governo. E também tínhamos grandes empresários felizes com Paulo Guedes. Bolsonaro tinha uma aprovação de 65% quando começamos. Não havia essa grande rixa no PSL. Não tínhamos Moro saindo do governo. Nada disso tinha acontecido. Então era um movimento político muito poderoso. Bolsonaro era muito claro ao dizer que não acreditava em liberdade de imprensa. No último discurso que ele fez, antes de vencer o primeiro turno das eleições, ele prometeu um Brasil sem a Folha de S. Paulo, que tinha revelado as fontes de financiamento da campanha dele, um financiamento provavelmente ilegal. Então havia uma dúvida quanto à força dos valores democráticos num país governado por um presidente que havia passado 30 anos dizendo que não acreditava em democracia. Ele disse que acreditava que a ditadura militar foi melhor, que ele fecharia o STF, o Congresso. Sim, isso foi há muito tempo, mas fazia parte do charme de Bolsonaro.
Mas não era só retórica?
Na época, não se sabia. Hoje sabemos que era só retórica. Hoje, dois anos mais tarde, sabemos que o STF, o Congresso, a imprensa estão dispostos a enfrentar Bolsonaro, que houve uma divisão no movimento bolsonarista, que ele não tem a mesma força de antes, que ele provavelmente não poderia fazer essas coisas, que o Exército provavelmente não deixaria. Não sabíamos de nada disso em maio de 2019. E você pode dizer que era só retórica, mas não dava para saber, certo? Por que não levar a sério?
E lembre-se de que, nove meses depois de começarmos a divulgar as mensagens, eu fui processado criminalmente pelo Ministério Público. Mesmo depois de a Polícia Federal me investigar na Operação Spoofing e divulgar um relatório dizendo que não havia provas de que eu havia cometido algo remotamente parecido com um crime. Ainda assim fui processado. Então não dá para dizer que tenham sido ameaças vazias. Realmente fui processado criminalmente. Houve uma enorme campanha de fake news, com a conta “Pavão Misterioso” publicando transações falsas em bitcoin, sugerindo que eu havia pago hackers russos, que eu havia pago a Jean [Wyllys] milhares de dólares para ele renunciar ao Congresso e o David assumir. A revista Isto É publicou uma reportagem de capa sobre essa teoria da conspiração. E tudo isso circulou sem que ninguém pudesse saber se era ou não verdade. Recebi ameaças de morte muito claras. Não estou falando das ameaças que figuras públicas recebem todos os dias, com alguém enviando um email dizendo “cuidado por onde anda”. Essas ameaças não são sérias. Figuras públicas recebem isso todos os dias. Estou falando de ameaças com informações específicas sobre onde moro, que escola meus filhos frequentam. E isso foi um ano depois de Marielle Franco, uma das nossas amigas mais próximas, levar quatro tiros na cabeça. Então eu realmente levo essas ameaças a sério e tento não exagerá-las. Não sou de fazer drama. E quando começamos com a reportagem não sabíamos o quanto a liberdade de imprensa seria protegida neste país.
Mas concretamente essas ameaças às instituições não deram em nada. Bolsonaro não fez nada contra a imprensa enquanto instituição, não é? Era pura retórica. Gogó, como a gente diz.
Concordo. Foi o que já disse em várias entrevistas. Muitas das iniciativas antidemocráticas foram tomadas não por bolsonaristas, mas contra bolsonaristas. Mas não quero exagerar nisso. Houve histórias de pessoas protestando contra Bolsonaro e que acabaram presas, houve processos criminais abertos não só contra mim, mas também contra o presidente da OAB, por criticar Sergio Moro, houve investigações até sobre outdoors. Houve ataques à liberdade de expressão. Mas nada tão grave a ponto de dizermos que a democracia brasileira está prestes a se transformar numa ditadura. Concordo com você. Pessoalmente acho que a grande dúvida, quando Bolsonaro foi eleito, era quanto à força das instituições brasileiras na defesa da Constituição. O Judiciário, a imprensa, o Congresso. E acho que elas se mostraram bem sólidas. Mais sólidas do que muita gente imaginava. Concordo que é importante não usar hipérbole. Não acredito que o Brasil seja uma ditadura. Não acho que Bolsonaro tenha realizado uma campanha coordenada para decretar um novo AI5, nem fechou veículos de imprensa, nada disso. Acho que é importante tomar cuidado e não exagerar. Mas também acho que há um perigo no que o movimento pode fazer à medida que se reduz e se vê diante da possibilidade de perder as eleições de 2022.
Sei que você está morrendo de frio aí, então vou fazer apenas mais uma pergunta. Sou obrigado a fazê-la porque ela certamente aparecerá nos comentários da entrevista. Por que você luta por liberdade num país que não é uma ditadura, como o Brasil, e não em Cuba, Venezuela, China…?
Porque não moro nesses países. Nos EUA me perguntam o tempo todo por que não falo mais sobre Putin, por que não falo mais sobre esses outros países. E minha resposta é “eu não moro nesses países”. Os dois países pelos quais me sinto responsável são os Estados Unidos, do qual ainda sou cidadão e onde pago impostos, e o Brasil, onde vivo e também pago impostos. E pelos países que contam com o apoio de Brasil e EUA. Os EUA apoiam Israel, Arábia Saudita e Egito. Então escrevo sobre esses países também. Não dá para lutar contra todas as injustiças do mundo. Por que não luto contra Castro? Porque não sou cubano. Não falo espanhol. Não tenho um veículo de imprensa em Cuba. Ou Venezuela. Não tenho essa capacidade. Mas tenho a obrigação de, no país onde vivo, lutar contra coisas que considero injustas. E é também neste país que causo algum impacto, porque falo a língua, tenho um veículo de imprensa aqui, tenho uma liderança aqui. Acho que é uma armadilha retórica perguntar por que estou falando do Brasil e não de Cuba. Não moro lá, não tenho como influenciar esses lugares.
[Encerramos a entrevista com as cordialidades de praxe. Logo depois, recebo uma mensagem de Glenn sobre a intimação de Boulos para prestar depoimento por críticas feitas a Bolsonaro. “Um limite foi ultrapassado. De ambos os lados”, respondo. E ele: “Exatamente. É um ciclo que, uma vez iniciado, não pode ser contido”].
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