Membros da comunidade escolar de Presidente Prudente, município no interior de São Paulo, denunciam uma tentativa – por parte da gestão da Secretaria Municipal de Educação (Seduc), cujo mandato terminou no último ano – de instituir a contragosto de profissionais, sem amplo debate e consulta à comunidade um currículo municipal fundamentado única e exclusivamente em uma concepção marxista de educação.
A indignação com o currículo chegou até o Conselho Nacional de Educação (CNE), recebida por um grupo de estudos comandado pelo conselheiro Gabriel Giannattasio, também professor do Departamento de História da Universidade Estadual de Londrina (UEL). O objetivo do GT é discutir temas relacionados à “liberdade e responsabilidade acadêmica e diversidade de pensamento na educação brasileira”. Nesta quinta-feira (15), o CNE, em deliberação sobre a denúncia, afirmou que o órgão não tem “competência para analisar o caso” e que o ente responsável pela elaboração do currículo tem autonomia para fazê-lo. Mas, como a questão não foi decidida nesta quinta, o CNE ainda deverá dar um parecer sobre o caso.
O documento, direcionado à Educação Infantil, ao Ensino Fundamental I e à modalidade de Educação Especial, é baseado na chamada teoria histórico-crítica. Ela é idealizada, em parte, pelo educador Dermeval Saviani, filósofo e professor emérito da Unicamp. Entre outras coisas, a linha do currículo despreza o ensino religioso – componente curricular obrigatório previsto na própria Constituição -, a Educação de Jovens e Adultos (EJA) e “exige de quem a ela se alinha um posicionamento explícito perante a luta de classes e, portanto perante a luta entre o comunismo e o capitalismo”, nas palavras de Newton Duarte, entusiasta da PHC. “Quem prefira não se posicionar em relação à luta de classes, não poderá adotar de maneira coerente essa perspectiva pedagógica”, diz ele.
“Não havia consenso nem unanimidade entre a comunidade educacional [do município] e foi a partir desta insatisfação que o CNE recebeu questionamentos vindos de representantes do poder legislativo local, Conselheiros Educacionais do Município, pais de alunos e professores da rede municipal”, explicou Giannattasio durante a reunião de deliberação. Nesse momento, um dos conselheiros interrompeu Giannattasio e afirmou que a minuta elaborada pelo educador para responder ao caso “dá um belo artigo acadêmico”.
Homologado “sob pressão”
Elaborado desde 2018 e com vigência até 2030, o documento teria sido homologado pelo Conselho Municipal de Educação (Comed) em 7 de dezembro de 2020 “sob pressão da então secretária municipal de educação”, segundo fontes ouvidas pelas reportagem e que não serão identificadas por temerem represália. O regimento interno do Comed prevê a necessidade de uma análise técnica para a aprovação de um documento desse porte – o que não ocorreu.
O currículo foi publicado no Diário Oficial do município em 21 do mesmo mês. Sua implementação deveria entrar em vigor no início do ano letivo de 2021, mas foi temporariamente suspensa com a troca da gestão da prefeitura. Procurada, a Seduc não informou se o documento será implementado.
O principal questionamento levado ao CNE pelos denunciantes é o de que o currículo não atende à “pluralidade de ideias”. Além disso, não teriam sido realizadas audiências e consultas públicas para discutir seu teor, descumprindo instrumentos legais e regimentos ligados à educação. Os educadores também questionaram ao órgão se “currículos dos entes federados podem se pautar em princípios e conceitos de educação e ensino que, explicitamente, contrariam as diretrizes da BNCC”.
Os municípios possuem autonomia para elaborarem seus próprios currículos escolares, se assim o desejarem, desde que observados os pressupostos do currículo estadual e da Base Nacional Comum Curricular (BNCC). A presidente do Conselho, Maria Helena Guimarães, afirmou, no entanto, que o órgão não pode “entrar no mérito dessa questão” e que o município tem autonomia para elaborar o currículo.
Giannattasio defendeu que “nos limites da lei, ninguém tem autonomia absoluta. “A autonomia dos entes federativos não é absoluta e não pode assim ser tratada. Como sabemos o direito é um sistema que opera na lógica dos pesos e contrapesos. Assim a autonomia pode ser exercida nos limites da hierarquia do arcabouço constitucional, portanto ela jamais pode transgredir um princípio normativo”, afirmou.
“A secretaria de educação foi questionada desde o início da elaboração do currículo. Gostaríamos de uma justificativa para a escolha da teoria, mas nunca houve qualquer tipo de resposta”, critica uma educadora. “No máximo, a resposta obtida era de que se tratava da ‘teoria mais avançada'”.
Falta de transparência
O documento foi elaborado com assessoria técnica da Fundunesp (Fundação para o Desenvolvimento da UNESP), sob um contrato de R$ 294 mil celebrado em 2018, sem licitação. No documento contratual, constava o encaminhamento pedagógico que deveria ser dado ao conteúdo: pedagogia histórico-crítica. Embora sendo custeadas com recursos públicos, as versões preliminares do currículo foram tornadas sigilosas pela gestão da secretaria. Material enviado à reportagem mostra intimidação e ameaça de sanções administrativas aos educadores que divulgassem qualquer parte do conteúdo, sob alegação de “violação de direitos autorais”.
“Seria esse o país que desejamos, onde nem os princípios públicos básicos de legalidade, moralidade, transparência, eficiência e impessoalidade conseguem ser respeitados, inclusive possíveis práticas punitivas para quem desrespeitar algo que na sua essência deveria ter sido construído de forma participativa?”, critica Fernando Gesse, figura pública do município e que enviou denúncia ao Ministério Público Federal (MPF).
Pressionada pelas denúncias, em 2019, a Seduc propôs um evento “consultivo” aos educadores. “Foram quatro dias em que os palestrantes apenas defenderam a pedagogia. Não houve qualquer abertura para discussão. E quando solicitamos espaço para perguntas, disseram que o tempo havia acabado. Apenas no último dia foi proposta uma pergunta ‘capciosa’ para professores: se eles ‘aceitavam’ [sim ou não] a pedagogia para o currículo”, conta uma das fontes, em off.
“Não houve espaço para questionamentos. A escolha da pedagogia exclusiva não foi discutida amplamente dentro de um consenso e, desde o início, tentamos deixar claro que se utilizar de uma única linha de pensamento era uma forma ilegal de construir um currículo”, afirma outro educador, que endereçou denúncia à Câmara de Vereadores local. “E as pessoas que argumentaram e contestaram ficaram marcadas”.
A um jornal local, em 2018, a então secretária municipal de educação afirmou que o objetivo do currículo seria “formar integralmente o sujeito para o pleno exercício de sua cidadania”. Um dos eventos realizados para promoção do documento foi o “Congresso Pedagogia Histórico-Crítica: Em Defesa da Escola Pública e Democrática em Tempos de Projetos de Escolas Sem Partidos”. Em 2017, a secretaria descartou, sem qualquer avaliação de possíveis inadequações, um outro currículo que vinha sendo construído por 10 anos pelos educadores.
O município também teve a oportunidade, em 2019, de aderir ao currículo estadual de São Paulo, como o podem fazer todas as cidades do estado, com a possibilidade de propor adaptações locais. No entanto, optou por um “projeto personalizado e autoral”.
Ao não aderir ao currículo do estado, o município também deixou de receber material didático de forma gratuita. Segundo professores ouvidos pela reportagem, alguns profissionais chegaram a ter que tirar xerox de livros de edições desatualizadas para dar aula. Eles também deixaram de receber formação continuada oferecida pelo estado.
“Escolha unilateral” e falta de diversidade pedagógica
Para os educadores, ao se fundamentar em uma única linha pedagógica, de forte viés ideológico marxista, o currículo incorre em infrações regimentais e normativas. Diretrizes federais determinam que o processo de elaboração de um currículo seja feito de maneira pública, democrática e com consultas públicas à comunidade escolar. Mas a decisão pela linha pedagógica teria sido monocrática, sem consulta à toda a comunidade escolar.
O artigo 26 da Lei de Diretrizes e Bases (LDB), um dos principais norteadores da educação no país, por exemplo, estabelece que “os currículos da educação infantil, do ensino fundamental e do ensino médio devem ter base nacional comum”, mas os estados e municípios têm autonomia para complementar o documento de acordo com “características regionais e locais da sociedade, da cultura, da economia e dos educandos”.
“A parte diversificada dos currículos de que trata o caput do art. 26, definida em cada sistema de ensino, deverá estar harmonizada à Base Nacional Comum Curricular e ser articulada a partir do contexto histórico, econômico, social, ambiental e cultural”, define a LDB.
Em seu artigo 3º inciso III, a lei também determina que o ensino seja ministrado com base, entre outros, no princípio do “pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas”. Adiante, o artigo também preconiza o princípio da “gestão democrática do ensino público”.
O Estatuto do Magistério Público do município de Presidente Prudente garante, além disso, em seu artigo 4º, a participação da comunidade interna e externa, na forma colegiada e representativa, na “gestão democrática da educação”.
Outra normativa que teria sido ferida pelo currículo é o artigo 210 da Constituição Federal, que estabelece a obrigatoriedade de oferecimento do ensino religioso nas escolas, ainda que com matrícula facultativa: “o ensino religioso, de matrícula facultativa, constituirá disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental”, diz a CF.
A LDB, em seu artigo 33, afirma que “o ensino religioso, de matrícula facultativa, é parte integrante da formação básica do cidadão e constitui disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental”.
“A liberdade de cátedra diz respeito à liberdade que o professor possui, legalmente, para se utilizar de diversas teorias e metodologias para garantir o ensino aos seus alunos. O novo currículo coloca em dúvida essa liberdade aos professores, e não assegura autonomia às escolas para formularem, coletivamente, sua proposta pedagógica, tendo como princípio o pluralismo de ideias e concepções pedagógicas”, critica Luis Fernando Pinheiro Gesse.
Pelo menos dois eventos públicos teriam sido realizados para apresentar – sem debater – a proposta da linha pedagógica na qual se embasa o currículo municipal. Um dos eventos realizados para foi o “Congresso Pedagogia Histórico-Crítica: Em Defesa da Escola Pública e Democrática em Tempos de Projetos de Escolas Sem Partidos“. Outro evento que teria determinado o viés pedagógico foi em 2017, no Encontro de Formação Continuada de professores (Enfoco). Durante o evento, segundo os educadores que denunciam, não teria sido aberto o debate, ou espaço para questionamentos.
“[O currículo,] além de desconsiderar a pluralidade de ideias e concepções pedagógicas dos profissionais da educação do sistema de ensino municipal, ainda pretende impor de forma autoritária e antidemocrática uma única concepção de realidade, de visão do mundo e de organização política”, aponta o parecer de Gesse enviado ao MP. Na época em que o documento foi enviado, 2020, houve apenas resposta da Secretaria Municipal de Educação, mas o órgão não tomou nenhuma medida.
Ao decretar sigilo sobre as versões preliminares do documento custeado com recursos públicos e ameaçar funcionários quanto à divulgação do currículo, a secretaria teria confrontado o que preconiza a Lei de Acesso à Informação (LAI): “I – observância da publicidade como preceito geral e do sigilo como exceção; II – divulgação de informações de interesse público, independentemente de solicitações”.
Educadores pedem responsabilização jurídica
Por identificarem o que consideram como “ilegalidades” na elaboração do documento, o grupo pediu a interrupção da implementação e “apuração de todos os custos envolvidos para a construção do currículo” ao MP.
“O currículo fere a nossa constituição, fere o Estado democrático de direito, fere a moralidade e a legalidade pública, que atenta contra a transparência tão importante para a construção de uma nação forte, responsável e que tenha na educação algo formador e livre, e nunca imposto por grupos que pelos mais variados fins tentam usar a educação como ferramenta para alcançarem seus ideais políticos ou ideológicos”, diz a denúncia enviada ao MP.
A denúncia foi arquivada por “dificuldade do MP para compreender o problema”, embora tenha ocorrido corte de investimentos.
“Eles não foram de fato envolvidos, ficando à margem desse processo, sem que fossem apresentadas justificativas, o que nos leva a crer que o objetivo maior era o de não permitir que os profissionais da rede municipal percebessem as contradições existentes entre a BNCC e a PHC. Assim, os profissionais de educação da Seduc de Presidente Prudente foram privados de realizarem estudos consistente e participar efetivamente da elaboração do currículo do seu estado e de um projeto nacional de educação”, denuncia Gesse.
Pedagogia marxista: o que é a teoria histórico-crítica
Os defensores da chamada teoria histórico-crítica, fundamentada no materialismo marxista, afirmam que seu uso “representa um grande avanço para a formação crítica e, consequentemente, emancipação intelectual das alunas e dos alunos”. Segundo Saviani, a pedagogia surge diante da necessidade de uma teoria crítica à educação dominante e, portanto, “à sociedade capitalista/burguesa”, que, em sua concepção, reproduz condições dominantes. A ideia principal é ir contra uma escola que se reduz a função de “mera reprodução da forma social vigente, das condições dominantes”.
Em entrevista disponível no YouTube, Saviani diz que sua intenção era se dedicar a mostrar as “contradições da ideologia capitalista, liberal” e construir uma teoria baseada na concepção dialética materialista.
A Secretaria Municipal de Educação não deixou claro à comunidade acadêmica de onde parte a iniciativa – se foi uma proposta da própria Fundunesp ou se da gestão do executivo à época.
Alguns dos responsáveis pela elaboração do currículo participam de “grupos de estudos marxistas em educação”. É o caso da professora e psicóloga Lígia Márcia Martins, vice-líder do Grupo de Pesquisa do CNPq “Estudos Marxistas em Educação”, cujo objetivo é aliar-se à “luta que Demreval Saviani tem travado em defesa da socialização, pelo trabalho educativo escolar, do conhecimento científico, filosófico e artístico”.
“Esse processo escolar de socialização do conhecimento sistematizado é considerado pelo grupo um elemento estratégico fundamental no processo de superação da sociedade baseada na lógica do capital. Apoiando-se na tese de que não há prática revolucionária sem teoria revolucionária, o grupo parte do pressuposto de que as contribuições do trabalho educativo para um processo de transformação social radical não serão concretizadas sem avanços no campo da elaboração de uma teoria pedagógica marxista. […] O grupo almeja contribuir para um redirecionamento do pensamento educacional brasileiro que, desde o final do século XX, deixou-se dominar quase que inteiramente por princípios oriundos do pragmatismo neoliberal, do ceticismo epistemológico pós-moderno e da negatividade intrínseca às pedagogias do aprender a aprender no que se refere à tarefa de socialização do conhecimento por meio do ensino escolar”, diz a descrição do grupo em uma página da Unesp.
Procurados, a Seduc e o Comed não responderam aos questionamentos até a publicação deste conteúdo.
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