Cerco à Eurásia

A gigantesca massa de terra ininterrupta chamada Eurásia sempre foi o centro da civilização. Em comparação a ela, nós, das Américas, somos a periferia da periferia. Estamos tão longe que, mesmo tendo sido iniciadas por eurasianos na remota Antiguidade, as civilizações americanas desenvolveram-se em separação completa. A própria África, berço da humanidade, também acabou ficando para trás na marcha civilizatória, devido à barreira natural do Saara.

Já na Eurásia, o processo foi diferente. Com as idas e vindas de caravanas comerciais, povos ou tropas, os contatos comerciais e culturais jamais foram completamente interrompidos, ainda que prosseguindo com maior ou menor dificuldade através das cadeias montanhosas que levaram a geografia a considerar as “protuberâncias” europeia e indiana da vasta Eurásia entidades distintas. As vastas estepes gramadas do interior eurasiano tornaram possíveis os ataques a centros civilizacionais distintos e distantes encetados pelos nômades citas, tártaros, hunos e mongóis, entre tantos outros, sem com isso facilitar o comércio. Este, todavia, sempre existiu e de alguma forma persistiu, ainda que situado mais ao sul, ligando o Mediterrâneo à Índia e à China por intermédio da Pérsia, sempre agarrado às vastas cadeias de montanhas até hoje habitadas por povos túrquicos.

Do Mediterrâneo, no “nosso” lado, os modos de vida civilizados foram se propagando para o norte, mais ainda com a Cristandade levando-os além da área que o Império Romano conseguira dominar em seu apogeu. Do extremo norte europeu, por sua vez, foi levada a civilização aos povos eslavos, alcançados na extremidade ocidental das vastas e até hoje vazias estepes da Eurásia central. Do outro lado, a Índia e a China desenvolveram-se separadamente (mesmo pela dificuldade de transpor os Himalaias, que os separam), mas com contatos culturais frequentes; o budismo, religião tradicional do Extremo Oriente, afinal, teve origem no subcontinente indiano.

Após a devastação causada pelo comunismo no século 20, tanto Rússia quanto China adotaram formas híbridas de governo e, junto aos multimilenares parceiros comerciais persa e indiano, uniram-se em aliança

Com o surgimento do Islã e sua conquista pela espada de vasta área, estendendo-se do norte africano antes fenício e depois romano à Pérsia, e desta às terras altas dos povos túrquicos, contudo, dificultou-se o diálogo cultural, e mesmo comercial, entre os extremos ocidental europeu e oriental asiático do mesmo vasto continente eurasiano. Ele continua, no entanto, sendo de muitas maneiras o centro do mundo; uma zona vasta demais para unir sob um mesmo governante, com povos tantos e tão díspares que não é possível evitar o espanto quando se começa a conceber tamanha diversidade.

O caminho do comércio entre as extremidades eurasianas, no mundo antigo, era conhecido como “Rota da Seda”, por ser a seda chinesa um produto sempre valioso em qualquer sociedade. Camelos abarrotados de mercadorias cruzavam sem cessar tal caminho, vasto de milhares de quilômetros, fazendo com que uma dama romana ou medieval pudesse comprar seda recém-chegada duma viagem de cinco a dez anos da China a suas mãos. Ao longo deste caminho, civilizações, ideias e povos traçavam algum contato cultural, inevitável consequência e adjuvante do contato comercial. Foi encontrada no século passado uma caverna perto da extremidade chinesa da Rota da Seda em que alguém escondera centenas de milhares de manuscritos produzidos ou deixados num posto de comércio e caravanas. Escritos em centenas de línguas, tratando de inúmeras religiões, trazendo anotações comerciais de fantástica diversidade de mercadorias, eles trazem a nossos olhos um vislumbre do que era aquela rota de “globalização”, aquela tremenda encruzilhada de culturas do centro do mundo.

No alvorecer da Era Moderna, entretanto, uma nova tecnologia permitiu que, literalmente, se pudesse dar a volta à Rota da Seda: as Grandes Navegações, que ao fazer dos mares caminhos também tiveram o bônus de incluir a periferia americana no comércio internacional. Um piscar de olhos mais tarde, e o avanço tecnológico levou à criação de navios a vapor econômicos o bastante para valer mais a pena usá-los que veleiros. Destes, então, surgiu o equivalente moderno das hordas de cavalaria nômade das estepes eurasianas: a canhoneira blindada, permitindo uma projeção de poder por via marítima que antes só podia ser alcançada por via terrestre, em uma fração do tempo por uma fração do custo.

Inverteu-se assim completamente a dinâmica geopolítica: as cadeias de montanhas e desertos que protegiam as civilizações das hordas nômades das estepes, permitindo que os litorais eurasianos se tornassem os pontos focais das grandes civilizações, perderam quase totalmente seu papel protetor. Os mares, que antes eram o maior e mais inexpugnável dos fossos, nutrindo os litorâneos ao mesmo tempo que garantiam que dificilmente por lá chegaria algum inimigo, tornaram-se avenidas abertas para o que se convencionou chamar “diplomacia da canhoneira”.

A China e o Japão, que haviam se fechado a todo contato exterior no início das Grandes Navegações, tiveram seu ensimesmamento voluntário arrombado por canhoneiras anglo, que os forçaram a abrir os portos e mesmo a aceitar colônias extraterritoriais estrangeiras à beira dos melhores portos. A China passou, então, pelo dito Século de Humilhação, em que chegou a sofrer traficantes de ópio apoiados pela Coroa inglesa forçando-a a permitir a livre venda do perigoso estupefaciente. A Índia teve sua indústria destruída pela mesma Inglaterra, então o grande poder naval, sendo forçada a regredir à situação de mera produtora de matérias-primas e importadora de produtos manufaturados ingleses, de qualidade muito inferior aos que produzia e vendida a preços muito mais altos. A Pérsia, tendo perdido sua posição de nexo comercial da Rota da Seda, tornou-se um paiseco pobre e periférico, sofrendo humilhações britânicas, russas e mesmo turcas.

O auge desta situação geopolítica em que o mar tomou as vezes da terra ocorreu no século passado, quando as guerras mundiais (na verdade apenas uma, em duas etapas) foram combatidas em grande medida por ao menos via naval, ainda que a exaustão militar alemã tenha ocorrido na luta pelo território eurasiano profundo, com a invasão da Rússia. O Japão, geograficamente situado de modo semelhante à Inglaterra, teve na Segunda Guerra o seu momento de potência naval, dominando enorme parcela das vastas cadeias de ilhas do Pacífico. Os EUA, continuação civilizacional da metrópole inglesa, aproveitaram sua condição de país altamente industrializado para, por meios transversos, tornar-se a potência naval por antonomásia. Seus navios porta-aviões, verdadeiras bases aéreas flutuantes, possibilitaram aumentar exponencialmente a projeção de força da era das canhoneiras; seus submarinos tornaram-lhe possível, como no apelo poético de Castro Alves, “fechar a porta” de vastos mares.

Confira a matéria na Gazeta do Povo

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