Em 22 de janeiro de 1973, uma decisão do Supremo Tribunal dos Estados Unidos impactaria profundamente a história do país. Movido por uma jovem texana que desejava interromper a gestação de seu terceiro filho, o caso Roe versus Wade marcou a descriminalização do aborto. Na época, quem ocupava a Casa Branca era o presidente Richard Nixon, do Partido Republicano, ao qual os opositores do resultado recorreriam para mitigar as consequências da decisão, em intermináveis batalhas políticas que até hoje marcam o debate público americano.
“A maioria das histórias da política americana no pós-Guerra trata o movimento pró-vida (…) apenas como uma reação contra o Roe versus Wade, contra o movimento feminista, contra a revolução sexual e contra o aumento da presença do governo”, escreve o historiador Daniel K. Williams. Por consequência, não é difícil encontrar, mesmo no Brasil, quem retrate a luta contra o aborto como uma pauta exclusiva de cristãos brancos e conservadores, defensores do liberalismo econômico. Só que nem sempre foi assim.
Na verdade, a defesa dos nascituros foi, por muito tempo, abraçada por militantes dos direitos humanos bastante progressistas, que desejavam mais intervenção do Estado na economia para a promoção do “bem-estar social”, mais benefícios para que mulheres pobres não precisassem recorrer ao aborto, o fim da pena de morte e da Guerra do Vietnã. Em seu livro “Defenders of The Unborn” (“Defensores dos Não-Nascidos”, em tradução livre), Williams explica como os grupos pró-vida se desenvolveram a partir de diversas vertentes ideológicas – o que fez com que parte dessa militância se dispersasse após o estreitamento de laços com o Partido Republicano.
Em 1947, por exemplo, a Conferência Nacional Católica pelo Bem-estar, fundada por bispos, chegou a apresentar às Nações Unidas seu próprio modelo de declaração dos direitos humanos, que reconhecia tanto o direito à vida e à integridade desde a concepção quanto o direito ao salário mínimo, o direito à educação e à assistência social. Ocorre que, ainda nessa época, a luta contra o aborto promovida quase que exclusivamente pela Igreja Católica era inseparável de sua militância contra quaisquer formas de contracepção – o que drenava sua popularidade junto a grupos protestantes e judeus, por exemplo, bem como de defensores do planejamento familiar como forma de controle da pobreza.
Aos poucos, os católicos começaram a relacionar a luta pelos nascituros aos direitos inalienáveis do ser humano mais do que às questões de moralidade sexual, principalmente após as sucessivas derrotas entre os anos 1950 e o fim dos anos 1960; tanto por conta da falta de diálogo com outras religiões quanto pela perda de influência política do catolicismo. Foi um sacerdote progressista, o padre James McHugh, o responsável devolver o vigor à militância pró-vida.
McHugh defendia, por exemplo, a presença da educação sexual em escolas católicas, e ajudou a “secularizar” o discurso contra o aborto, contrapondo-o à lógica utilitarista. “Ele sentia que os católicos não haviam sido enfáticos o suficiente em criar argumentos contra o aborto pautados nos direitos humanos, e acabaram perdendo apoio de gente que deveria estar ao lado deles”, diz Williams, o que levou McHugh a criar o Comitê Nacional pelo Direito à Vida.
O apelo do padre McHugh à presença de não-católicos na militância pró-vida encontrou terreno fértil graças à emergência de movimentos protestantes associados à luta pelos direitos civis e a oposição à Guerra do Vietnã. O pastor californiano Charles Carrow, por exemplo, lutara ao lado de Martim Luther King no Missisipi e se tornou um ferrenho militante pró-vida por entender o aborto como um atentato à dignidade humana comparável à escravidão. Entretanto, o movimento pró-vida ainda sofreria algumas derrotas estaduais importantes (especialmente em Nova York) – até conseguir mobilizar diferentes vozes a seu favor – entre elas, mulheres e estudantes universitários declaradamente de esquerda.
Mulheres, negros e universitários: a nova face pró-vida
“Nos anos 1960, poucos líderes masculinos pró-vida falavam sobre as mulheres que abortam e, quando falavam, o faziam de forma crítica. Mas quando as mulheres se tornaram as principais porta-vozes do movimento, isso mudou”, conta o historiador. Nascia aí o argumento de que o aborto servia apenas para enriquecer médicos abortistas e permitir que homens se livrassem das consequências de explorar sexualmente suas parceiras, legando à mulher o dever de sofrer sozinha as consequêcias emocionais de dar cabo à vida do próprio filho.
Não à toa, muitas dessas mulheres – como as ativistas Mary Winter e Sidney Callahan – se denominavam “feministas pró-vida”, e lutavam não apenas contra o aborto, mas a favor da igualdade salarial, proteção à mulher no ambiente de trabalho e assistência especial às gestantes. Nessa época seria criada a convenção Birthright (Direito de Nascer), da qual participaria Eunice Kennedy Shriver, esposa de um político democrata progressista e irmã caçula do presidente John F. Kennedy. O trabalho de Shriver seria crucial para que o movimento pró-vida tomasse maiores proporções na esquerda.
Nos primeiros anos da década de 1970, quando o caso Roe versus Wade começava a ganhar palco, o ativismo contra o aborto e pelos direitos humanos viveu seu momento mais plural. No Minessota, o grupo Cidadãos Preocupados com a Vida alcançou milhares de pessoas propondo que “a solução para os problemas das mulheres não é oferecer o aborto, nem apenas proibí-lo”, mas oferecer alternativas, providenciando cuidados médicos, assistência financeira, lares para mães sem teto, agências de adoção e programas de distribuição de renda.
Por outro lado, cada vez mais protestantes adotavam a causa dos direitos humanos e abraçavam políticas econômicas de esquerda; e as universidades eram tomadas por protestos contra a guerra. Esse caldeirão fomentou o nascimento do grupo SOUL (sigla para Save Our Unwanted Lives, ou Salvem as Vidas Não-desejadas), cuja fundadora Sue Bastyr descreveu como “extremamente progressista”: “se você é contra a matança no Vietnã, você deveria ser contra o aborto”, pregavam os militantes, que também apoiavam causas ambientais. “O útero é o primeiro meio-ambiente”, dizia Maureen Clements, outra co-fundadora.
O ano seguinte à fundação do SOUL veria, junto à legalização do aborto em Washington, em 1972, a adesão em massa de militantes negros à causa pró-vida. Patrick Cardinal O’Boyle, que havia apoiado os movimentos pelos direitos civis, afirmava que uma cidade com 71% de afroamericanos “não podia ignorar as implicações do genocídio”. “O aborto é defendido como forma de reduzir o número de crianças ilegítimas e diminuir o custo dos programas de bem-estar. Quem você acha que os abortistas têm em mente?”, questionava a Associação de Direito à Vida da Louisiana.
Também a assistente social Erma Craven, presidente do Comitê de Direitos Humanos de Minneapolis argumentava que a legalização do aborto era um produto do racismo, principalmente nos estados do Sul, onde ela enxergava uma guerra contra os “negros não-nascidos”. Outro ativista negro, Jesse Jackson, denunciava que políticos defeendem o aborto porque “não querem gastar o dinheiro necessário para alimentar, educar e vestir mais pessoas”.
Cai um movimento, nasce um estereótipo
Apesar dessa aliança, que, segundo Williams, foi o que garantiu a sobrevivência dos ideais pró-vida por tanto tempo nos Estados Unidos, a implacável revolução sexual que criou raízes ao longo daquela década transformaria para sempre o debate sobre aborto em uma conversa sobre liberdade sexual e desigualdade de gênero. Daí em diante, seria necessário recorrer ao apoio do governo para alterar a situação. Em 1973, com os casos Roe versus Wade e Doe versus Bolton, tudo foi abaixo.
Surgiu aí a associação entre ser pró-vida e ser contra qualquer intervenção do Estado na família, explica o autor. Enquanto isso, novos líderes conservadores assumiriam a causa pró-vida, conectando-a a campanhas para “restaurar a oração nas escolas, parar os avanços do movimento pelos direitos dos homossexuais e até mesmo se defender contra a disseminação do comunismo internacional por meio do aumento de armas nucleares ”, escreve Williams. Na mesma toada, o presidente republicano Ronald Reagan, que já havia assinado uma das primeiras leis de descriminalização do aborto quando foi governador da Califórnia, passou a apoiar emendas que proibiam ou dificultavam a promoção do aborto.
Segundo o autor, a aliança pró-vida com o Partido Republicano nunca foi confortável, e exigiu alguns compromissos que incomodaram membros do movimento. “Conforme se tornaram mais focados em reverter a decisão Roe versus Wade, os pró-vida começaram a perder o interesse em outras causas humanistas, como a luta contra a pobreza, que fora tão importante”, relata. Por razões que vão do desconhecimento à incoerência, persiste, ainda hoje, a ideia de que defender a vida humana desde seus primórdios não implica em um compromisso com a vida em qualquer condição.
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