O vírus da fome: como a Covid-19 e a desnutrição andam de mãos dadas no Brasil

Brasil conseguiu reduzir a pobreza em ano de pandemia, mas efeito é temporário.| Foto: Ricardo Oliveira/AFP

De cama, ainda sob os sintomas severos da Covid-19, Ivaneide dos Santos, moradora de uma comunidade carente de Manaus, de 37 anos, chora sem saber se conseguirá alimentar os seus três filhos.

Dias antes, Ivaneide foi parar no pronto socorro com muita falta de ar. Após exames, os médicos indicaram que ela deveria ser internada, devido às muitas manchas no pulmão causadas pelo Covid-19. Mas ela argumentou que teria que ir embora para casa, pois não teria quem cuidasse do filho de dois anos.

Foi liberada com a ressalva de que ela seria a responsável caso tivesse alguma complicação e recebeu uma receita para tomar a medicação em casa. Alguns dos remédios foram gratuitos, mas o principal só conseguiu comprar a partir de doações.

A diarista, que está desempregada desde o início da pandemia, tem sobrevivido apenas com os R$ 82 que recebe do programa Bolsa Família e da venda de reciclagem. Agora, nem isso consegue fazer, por estar infectada com o vírus.

Ivaneide conta que no último ano conseguiu se sustentar por meio do auxílio emergencial distribuído pelo governo, mas, agora, com o fim dele, está com aluguel atrasado e tem tentado vender suas roupas e objetos pessoais para tentar conseguir levantar recursos.

“É muito difícil. Meus filhos pedem coisas para comer, eu olho e não tem nada. Eu não tenho para quem pedir ajuda. Tenho colocado minhas coisas para vender, tem gente que ri e começa a me ofender. Dá até vontade de desistir da minha vida por essas coisas”, afirma Ivaneide.

Situação semelhante é contada por Tamires Pascoal Alves, de 28 anos, moradora de Belford Roxo no Rio de Janeiro. Mãe de sete filhos, sendo a mais nova uma bebê de apenas dois meses, que possui problemas respiratórios, Thamires narra uma história dramática.

Antes, a jovem vendia balas para se sustentar e conseguiu se manter por um tempo através do auxílio emergencial. Mas conta que hoje não pode trabalhar, pois não tem quem fique com a filha menor.

A família mora em um pequeno cômodo e sobrevive de doações que recebe da igreja. Mesmo assim, Thamires aponta a geladeira vazia e conta que está com o aluguel atrasado, além de correr o risco de ter sua água cortada por falta de pagamento.

Antes de falar com a reportagem, Tamires foi vítima de um golpe: preencheu um cadastro no site de uma fundação que estaria fazendo doações de cestas básicas para famílias carentes. Como a cesta nunca veio, surgiu a desconfiança. Dias depois, foi confirmado que a fundação não existe — tratava-se de um esquema de roubo de dados.

Fome e desespero

A estudante de direito Josemara dos Santos, de 33 anos, moradora de Jardinópolis, no interior de São Paulo, é mais uma a ter que pedir auxílio nesse momento.

A jovem que tinha dois empregos antes da pandemia — durante a semana fazia um estágio em um centro de correção penitenciário e nos finais de semana fazia um bico em um restaurante —, agora não pode trabalhar devido às restrições impostas pelo governo para barrar o avanço do Covid-19.

Mãe de uma menina de nove anos, ela se diz desesperada e que até pegou dinheiro emprestado com agiota para pagar as contas. Além disso, ela teme perder sua bolsa do curso de direito na Universidade Estácio de Ribeirão Preto por não conseguir assistir às aulas online.

“É uma sensação que é uma mistura de impotência, medo e insônia. Eu sempre me esforcei muito, trabalho desde os meus 12 anos, mas agora não é uma coisa que eu posso mudar. Não posso simplesmente procurar um emprego, porque não tem. O meu maior medo é não ter o que dar de comer para minha filha, mas também pagar a internet para acompanhar as aulas”. Josemara conta que vem de família humilde e que vê na universidade a sua chance de buscar uma vida melhor para a sua família.

O tamanho do problema

Essa pode ser a realidade de até 22% das famílias brasileiras, que não podem trabalhar por conta da pandemia. Em alguns casos, cidades inteiras se encontram em situação de fome, como a cidade de Aparecida, localizada em São Paulo, que se sustentava com o turismo mas hoje está com 70% de sua população desempregada.

Esse dado alarmante é apresentado pelo economistaFrancisco Menezes, ex-pesquisador do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase) e atual colaborador do ActionAid, que aponta que o número de pessoas em situação de fome severa pode chegar a 25 milhões de pessoas no Brasil em 2021.

Ele diz que esse número pode ser estimado após análise de dados da Fundação Getúlio Vargas indicando que no Brasil existem 27 milhões de pessoas vivendo em extrema pobreza (com renda mensal per capita de até R$ 89) e que esses dados incidem com um levantamento feito pelo Instituto Datafolha que mostrou, em dezembro, que entre aqueles que recebiam auxílio emergencial, 36% não teriam outra fonte de renda a não ser o próprio auxílio. Ou seja, cerca de 25 milhões de pessoas.

Mas Menezes alerta que existe uma grande dificuldade nessa estimativa pois, segundo ele, as pessoas que estão em situação de fome não ficam paradas, mas buscam alternativas a essa situação, como pedidos de doação. Isso faz com que os números não sejam exatos.

O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) é responsável pela elaboração do índice de insegurança alimentar, que mede como as famílias brasileiras experimentam a fome e a incerteza sobre o sustento básico. Os domicílios estudados são classificados em três níveis: leve, quando há preocupação quanto à disponibilidade de alimentos no futuro ; moderado, quando os moradores já sofrem restrições na quantidade de comida; e grave, quando há privação severa no consumo de alimentos, que pode levar à fome.

Em setembro do ano passado, o IBGE revelou que, antes da pandemia, 36,7% dos lares brasileiros (84, 9 milhões de pessoas) sofriam algum grau de insegurança alimentar.

Metade das crianças menores de cinco anos do país (6,5 milhões) viviam com famílias que experimentavam este tipo de privação, e que mais da metade dos domicílios com insegurança alimentar grave eram chefiados por mulheres.

Para Menezes, o auxílio emergencial foi fundamental para atenuar esse problema, mas sua redução, em setembro do ano passado, e posterior encerramento, fez aumentar de novo o número de pessoas em situação de fome. Ele alerta que o valor do próximo auxílio, que foi aprovado este mês, que tem uma média de valor em cerca de R$ 250 não é suficiente para alimentar uma pessoa durante um mês.

Alta dos preços

Outro fator que contribui para a piora da situação é o aumento do preço dos alimentos. Segundo a Pesquisa Nacional da Cesta Básica de Alimentos feita pelo Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (DIEESE) em janeiro deste ano o preço da cesta básica subiu em todas as capitais pesquisadas.

A cesta básica mais cara do país é a de São Paulo: custa R$ 654,15 e sofreu um aumento de 3,59%, bem próximo do experimentado pela cidade de Curitiba. Com base na cesta paulistana, o DIEESE estimou que o salário mínimo necessário para sustentar uma família de quatro pessoas, com dois adultos e duas crianças,foi de cerca de R$ 5.495,52; o que corresponde a cinco vezes o salário mínimo já reajustado.

Segundo Luiz Eliezer Ferreira, economista da Federação de Agricultura do Paraná (FAEP), a alta do preço dos alimentos foi causada por diversos fatores: a alta do dólar, que faz com que a exportação de alimentos acabe sendo mais vantajosa ao agronegócio; a redução da oferta de alguns alimentos, causada por problemas climáticos que afetaram a produção de algumas matérias-primas; e o aumento momentâneo do poder de compra do brasileiro devido ao auxílio emergencial distribuído pelo governo, que acabou gerando inflação pelo aumento da demanda. Segundo ele, a população carente, que ganha até um salário mínimo, destina metade da sua renda para o consumo de alimentos e, durante pandemia, cortou gastos em serviços e roupas para aumentar os gastos com comida.

“Há um aumento no preço dos alimentos do mundo inteiro, esse aumento foi generalizado, recorde em muitos lugares. No caso brasileiro, merece destaque o arroz, cujo preço chegou a dobrar, e o óleo de soja, que está 70% mais caro, explica Ferreira.

De volta ao mapa da fome

À Gazeta do Povo, a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), uma das agências das Nações Unidas que trabalha para a erradicação da fome no mundo, declarou que o Brasil voltou a figurar no mapa da fome após anos de avanços nesse tema.

Segundo o órgão, os últimos dados disponíveis sobre a fome no país são da edição 2020 do Relatório Estado de Segurança Alimentar e Nutrição no Mundo (SOFI), que estimou que, entre 2017 e 2019, 3,4 milhões de pessoas estavam em condições de insegurança alimentar crônica — ou seja, pensavam cotidianamente se teriam o que comer em um futuro próximo —, enquanto outros 43,1 milhões enfrentavam insegurança alimentar moderada ou severa no Brasil.

Mas a instituição alerta que esse é um problema mundial e que, por causa da pandemia de Covid-19, toda a região da América Latina pode experimentar cenários drásticos com relação à fome dado que a queda regional do PIB pode atingir o recorde histórico de 5,3% negativos, a maior queda em um século. Isso trará em 2020 um aumento da pobreza extrema de 16 milhões de pessoas a mais do que no ano anterior.

A ONG Ação da Cidadania, fundada em 1993 pelo sociólogo Herbert de Souza, o Betinho, é uma das instituições que estão atuando na distribuição de alimentos por todo o país. A associação, que informa já ter distribuído até o momento 12 mil cestas a mais de 48 mil pessoas, explica que a crise econômica gerada pode ser ainda mais brutal que a própria doença.

“Se de um lado é muito importante que se respeite as regras impostas pela OMS e governos locais, é mais importante ainda pensar em como essas comunidades, que são a maioria da população do país, vão sobreviver a este período. Muitas famílias podem sobreviver ao coronavírus mas não à fome, por exemplo”.

As doações à Ação da Cidadania podem ser feitas aqui e existem valores que podem ser doados.

Segundo nota do Ministério da Cidadania enviada à reportagem, o órgão tem trabalhado para fortalecer os programas sociais e estabelecer uma rede de proteção para a população mais vulnerável do país.

“Somente em 2020, foram investidos mais de R$ 365 bilhões em políticas socioassistenciais, que vão desde a primeira infância até a terceira idade. Iniciativas como o Programa Bolsa Família (PBF), o Benefício de Prestação Continuada (BPC) e o Auxílio Emergencial reduziram em 80% a extrema pobreza no Brasil”.

A pasta acrescenta que estão previstos R$ 43 bilhões para o pagamento do Auxílio Emergencial 2021 que, deve beneficiar cerca de 45,6 milhões de famílias. A nota destaca também a previsão de R$ 34 bilhões) para o Programa Bolsa Família em 202 (R$ 1,5 bilhão a mais do que no ano passado), cujo número de domicílios beneficiados se mantém acima dos 14 milhões.

Confira a matéria na Gazeta do Povo

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