Duas decisões monocráticas em sentidos opostos de ministros do Supremo Tribunal Federal trouxeram à tona o tema da interferência estatal sobre a atividade religiosa, também ela afetada pela pandemia de Covid-19. Afinal, o poder público pode ou não impedir celebrações religiosas com a presença de fiéis? Para Kassio Nunes Marques, tal proibição fere a Constituição; no último sábado, o ministro do STF derrubou decretos estaduais e municipais que vedavam a participação de fiéis em cultos religiosos, mas impôs uma série de medidas de prevenção: uso de máscaras, oferta de álcool em gel e presença de no máximo 25% da capacidade máxima do local onde ocorre a cerimônia. Na segunda-feira seguinte, Gilmar Mendes, relator de outra ação sobre o mesmo tema, manteve o decreto do governo paulista que impedia atividades religiosas com a presença de fiéis.
O impasse será resolvido pelo plenário da corte na quarta-feira, quando os ministros enfrentarão o conflito entre o direito constitucional à liberdade religiosa e o direito constitucional à saúde, e decidirão se a permissão dada a governadores e prefeitos para tomar atitudes de combate ao coronavírus também inclui a proibição das atividades religiosas presenciais, medida que não estava explicitamente mencionada na Lei 13.979/20.
A liberdade religiosa é um direito do qual não se pode abrir mão com facilidade
A Constituição garantiu um status especial à liberdade religiosa, dedicando-lhe dois dispositivos logo em seus capítulos iniciais. No artigo 5.º, inciso VI, fica estabelecido que “é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias”; e o inciso I do 19 proíbe às autoridades “estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público”.
Este segundo trecho estabelece o modelo brasileiro de laicidade, que reconhece a importância da religião para a sociedade sem privilegiar ou coibir nenhuma fé específica, permitindo a colaboração entre igreja e Estado na busca pelo bem comum, ao contrário do que fazem outros modelos de laicidade, como o francês, que pretende confinar a religião e as manifestações de fé dentro das paredes das casas e dos templos. E a proteção oferecida pelos artigos 5.º e 19 tem sua razão de ser. O fenômeno religioso é global; a fé tem um papel central na vida de parte significativa da humanidade, sendo para muitos um elemento definidor da personalidade, que orienta visões de mundo, atitudes cotidianas e posturas morais acerca do que é bom e justo, e que tem uma inegável dimensão pública, da qual a participação em cerimônias é uma manifestação importante. Além disso, no caso do Brasil, não se pode ignorar toda a importância da religião na formação histórica e na cultura do país. Não à toa a atividade religiosa foi definida como essencial pela União e em vários decretos estaduais e municipais durante a pandemia.
No entanto, assim como outros direitos e liberdades garantidos no artigo 5.º, a liberdade religiosa não é um direito absoluto, e pode haver ocasiões em que ela precise sofrer restrições por entrar em conflito com outras garantias constitucionais – como é o caso atual, em que se invoca também o direito à saúde e o dever constitucional de garanti-la. Mesmo assim, a relevância dada pelo constituinte à liberdade religiosa significa que qualquer limitação ao seu exercício exige uma reflexão muito cuidadosa e precisa sobre os limites da interferência estatal. A liberdade religiosa é um direito do qual não se pode abrir mão com facilidade, e qualquer autoridade que a banalize – por exemplo, demonizando as cerimônias religiosas como “covidários” e colocando-as entre as primeiras a sofrer restrições quando os números de casos e mortes por Covid-19 estão subindo – está muito longe de entender o real sentido dessa liberdade na Constituição brasileira e da laicidade do Estado.
Se por um lado seria completamente absurdo que o poder público proibisse a própria realização das cerimônias religiosas, ainda que sem a presença dos fiéis – esta, sim, seria uma violação frontal do artigo 19 da Constituição –, por outro é evidente que se possa aplicar às atividades religiosas regras iguais às impostas a outras atividades, como limitação de presença e imposição de demais medidas de prevenção – nem mesmo Nunes Marques pretendeu algo diferente. A pergunta é: o Estado pode ir além disso? Haveria situações em que o poder público pudesse proibir completamente a participação presencial dos fiéis, mesmo que em número reduzido, nas cerimônias religiosas?
Assim como as escolas, os templos religiosos deveriam estar entre os últimos locais a fechar completamente, e entre os primeiros a reabrir quando a situação epidemiológica melhorasse
Nunes Marques respondeu a essa pergunta com um “não”; é aqui que nos distanciamos um pouco do raciocínio do ministro e daqueles que, de boa fé e sabedores do valor da religião para a sociedade, consideram que tal vedação seria “embaraçar o funcionamento” das igrejas, desrespeitando o inciso I do artigo 19 da Constituição. Como já afirmamos, a liberdade religiosa não é um direito absoluto; situações graves poderiam, sim, justificar esse tipo de medida. Por isso, é bastante questionável a forma como prefeitos e governadores no Brasil têm aplicado as restrições mais severas, pois muitos deles proibiram a participação dos fiéis em cultos religiosos sem critérios claramente definidos, ou enquanto permitem a continuidade de várias outras atividades. Assim como as escolas, embora por motivos diversos, os templos religiosos deveriam estar entre os últimos locais a fechar completamente, e entre os primeiros a reabrir quando a situação epidemiológica melhorasse.
Os membros do Supremo farão bem se levarem em conta todos esses aspectos peculiares à atividade religiosa e a defenderem com firmeza, ainda que não excluam completamente o direito de governadores e prefeitos a impor restrições mais duras à participação de fiéis nos cultos religiosos, desde que apenas em casos graves e com critérios muito bem definidos. Se der a sinalização correta, o Supremo coibirá abusos das autoridades estaduais e municipais e as incentivará a estabelecerem exatamente aquela colaboração de que fala o artigo 19, trabalhando em conjunto com os líderes religiosos, promovendo ações de prevenção de forma que se possa limitar ao mínimo possível o direito dos brasileiros de participar presencialmente de atos que lhes são tão caros.
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