Ontem foi anti-Dilma e anti-Lula. Hoje é anti-Dilma, anti-Lula, anti-Bolsonaro. E, no futuro, será anti-Quem Aparecer. Mas essa é apenas a faceta político-eleitoral-jornalística dos antagonistas – pessoas que levaram a anarquia de Millôr Fernandes a sério e que acham que a vida é oposição – a tudo. Essa faceta político-eleitoral-jornalística conta com admiradores embriagados com os ares de independência e até heroísmo, mas esconde as agruras do antagonismo obsessivo que transborda para a vida privada e interior.
E digo isso com a boca cheia de quem dispõe de todo um baú abarrotado de lugar de fala. Porque eu, na minha juventude, também fui um antagonista – subtipo virulento. Até me orgulhava disso. Para mim também a única vida que valia a pena ser vivida era a da oposição a tudo. A da contrariedade, a da desconfiança. A da interminável denúncia das mazelas alheias. A da justiça pela pedra.
Sei, pois, o que é se opor aos aspectos mais prosaicos da existência. E é desse mirante cercado de arrependimento por todos os lados que vejo os antagonistas do século XXI espalharem sua ética baseada no eterno conflito. O objetivo deles não é nenhuma utopia de perfeição; é a guerra interminável. Os antagonistas são alérgicos a qualquer espécie de paz, sobretudo as transitórias.
Se vai tomar café na padaria, por exemplo, o antagonista reclama do atendimento, da cor do café-com-leite, do preço. E, embriagado que está da certeza de que há todo um mundo do qual ele precisa se defender, sai logo apontando culpados para uma situação que, se fosse diferente, ainda assim seria motivo de antagonismo. Afinal, por definição o antagonista não se satisfaz com o que tem diante de si.
“Se há beleza, aí tem!”
É um ingrato, concluímos eu e você. Sim. Essa é uma das principais características do antagonista: ele é incapaz de se contentar com a vida. É como se houvesse sempre um objetivo nefasto por trás de um irrefreável bocejo. Daí porque o antagonista é incapaz de fazer as pazes com as coisas inegavelmente boas e belas que há no mundo. “Se há beleza, aí tem!”, pensa o infeliz.
Transposto para a imprensa, o espírito antagonista gera as manchetes e as análises que temos por aí a nos deprimir o dia todo. Todos os dias. Fulano é acusado disso, Sicrano é indiciado por aquilo. Beltrano gastou xis num jantar e voltou do banheiro sem lavar as mãos. Na porta do restaurante, deu R$2 de esmola para um mendigo falso – o que evidentemente expõe a mesquinharia corrupta e anti-higiênica de Beltrano (às vezes também chamado de Dito-cujo).
“Não tenho político de estimação”, costuma se vangloriar o antagonista ao ver alguém, depois de um deslize, jogado na rua da amargura. Mentira. O antagonista não tem é pessoa nenhuma de estimação, seja ela um médico, professor, juiz ou gari. O inimigo do antagonista é o homem e qualquer forma de organização da sociedade, das nações às famílias. Para ele, a história é uma farsa indigna do riso misericordioso.
Repare: para o antagonista, ninguém/nada presta. Nunca. Para nada. O sol da bela alvorada é o mesmo que, a pino, derrete os miolos e prova o caráter pouco civilizado dos trópicos. O mar tem sempre ondas demais, é salgado demais ou tem peixes demais. Antagonista, assim que diz “sim” para o cônjuge, começa a fazer mentalmente os cálculos do divórcio. Até no pãozinho francês o antagonista é capaz de ver excesso de fermento – indício claro e inequívoco de um elaborado esquema de corrupção do padeiro.
O curioso é que, ao se definirem como antitudo, os antagonistas ignoram a contradição filosófica de sua postura insuportavelmente belicosa. Ora, se são antitudo e se estão incluídos nesse “tudo”, deveriam agir de acordo e entrar em conflito com a oposição que os define. Mas daí acredito que o universo entraria em colapso ou coisa parecida.
O antagonismo é uma escolha
Há, reconheço, certo charme nessa postura. É difícil escapar à sedução dessa rebeldia que se diz madura e racional, mas que tem como origem um lamaçal nas profundezas da alma. A rebeldia a tudo antagônica pode até ser charmosa, mas é destrutiva. Tanto nos homens quanto nas sociedades. Ninguém consegue guerrear contra tudo. O tempo todo. E, pior, sem ter qualquer outro objetivo que não mostrar que o homem é mau e reina na maldade, como dizia um tal William.
Mas o antagonista obsessivo é antes de tudo um covarde que vive acurralado pelo medo de ver o espírito humano aqui e ali triunfar. E sabe o que é pior? O pior é que, a despeito dos pontos de exclamação, dos dedos apontados, do apelo à desconfiança e da crença cega na má-fé até das crianças, o espírito humano sempre dá sinais de que não é um breu absoluto e irremediável.
O antagonismo, vale notar, é uma escolha. Vai de cada um beber ou não do cinismo que parece jorrar do noticiário carrancudo. A boa notícia é que não é uma escolha tão difícil assim, vai? Ajuda dar uma olhada, de vez em quando, no pôr-do-sol. Ou tentar enxergar formas engraçadas nas nuvens. Ou pisar na grama recém-cortada. Ou até, ousadia das ousadias!, ter fé no semelhante e ver sua confiança recompensada.
Ou simplesmente começar a analisar o mundo a partir do velho pressuposto chestertoniano segundo o qual em geral concordamos com o objetivo final (o bem). É apenas quanto ao meio que divergimos.
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