A divulgação de um posicionamento oficial da Associação Médica Brasileira (AMB) nesta terça-feira (23) que, dentre outras medidas, pede o banimento de medicamentos relacionados ao tratamento precoce contra a Covid-19 e condena a prescrição de corticoides e anticoagulantes em casos leves da doença foi alvo de críticas por parte de entidades médicas de todo o Brasil.
Isso porque a AMB, formada por 27 associações federadas e 55 sociedades de especialidades, inseriu o nome de todas as entidades como signatárias do Boletim 02/2021 sem ter o aval de todas as instituições quanto ao conteúdo da nota. O documento foi publicado em diversos veículos de comunicação como se tivesse a anuência de todas as mais de 80 instituições associadas.
Em reação, várias entidades passaram a questionar a AMB não apenas por terem seus nomes vinculados a um posicionamento do qual não foram consultados, mas também por considerarem que a nota afronta a autonomia dos médicos garantida pelo Conselho Federal de Medicina (CFM).
Diante dos protestos, a AMB publicou a nota em seu site na terça-feira à tarde, porém com a assinatura de apenas 16 nomes – o diretor da associação nacional mais representantes de 15 entidades.
Diretores de entidades médicas questionam afronta à autonomia e politização do tratamento precoce
Logo após a divulgação da nota, a Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP) publicou um posicionamento oficial direcionado ao presidente da AMB alegando que foi surpreendida pela divulgação do documento e que a entidade não assina o manifesto, uma vez que não participou da discussão para sua elaboração.
“Em campanhas anteriores, a Associação Médica Brasileira (AMB) sempre planejou as ações consultando previamente as federadas e sociedades de especialidades. Acreditamos que esse modo de agir, além de ser democrático, enriquece e aperfeiçoa as medidas tomadas”, destacou a ABP.
Já a Associação Médica do Rio Grande do Norte (AMRN) publicou nota questionando mais incisivamente os itens 7 e 8 do Boletim 02/2021, que condenam o uso de medicamentos como hidroxicloroquina, cloroquina, ivermectina, azitromicina, bem como a prescrição de corticoides e anticoagulantes em casos leves da Covid-19.
“Considerando que esta Associação Médica do Rio Grande do Norte não poupa esforços para pleitear de forma justa, proporcional e adequada a liberdade do ato médico, dando-lhe o direito ao exercício pleno da profissão, com obediência às regulamentações do Conselho Federal de Medicina, vem registrar que não concorda com os itens 7 e 8 do Boletim 02/2021 emitido pelo Comitê Extraordinário de Monitoramento Covid-19 da Associação Médica Brasileira, razão pela qual solicita sua exclusão como signatária do referido documento”, cita a direção da AMRN.
Maria do Socorro Mendonça de Campos, presidente da Associação Brasileira de Cirurgia Pediátrica (CIPE), informou à Gazeta do Povo que no final da manhã de terça-feira (23), pouco tempo antes de a nota começar a ser publicada na imprensa, recebeu um e-mail da diretoria da AMB. No e-mail, constava a nota pronta, já contendo a assinatura de todas as entidades associadas, e um pedido de resposta com brevidade. “Essa resposta com brevidade não era possível, não tinha como consultar as diretorias para discutir o conteúdo. Além disso, não havia nenhuma urgência para essa nota ser publicada assim, às pressas”, diz a médica.
Ela explica que é contrária aos itens 7 e 8 por considerar que são itens com o objetivo de politizar a Covid, além de a contrariedade ao tratamento precoce não ser um consenso entre todos os associados. “Discordo também do item 8, que diz para não prescrever anticoagulantes e corticoide em pacientes ambulatoriais, e garanto que a maioria dos médicos discorda, principalmente em um momento em que temos dificuldades de leitos tanto na rede privada quanto pública”, declara.
“Em caso de pacientes estáveis e em condições de serem monitorados a distância, se médico e paciente concordarem com a medicação e o acompanhamento, não há nada contra prescrever anticoagulantes e corticoides para tratamento em casa. Até porque esses medicamentos também são usados para tratamento de outras doenças e os pacientes não são internados para recebê-los, então essa limitação não tem sentido”, afirma Maria do Socorro, que é favorável ao tratamento precoce contra a Covid-19.
Eduardo Baptistella, presidente da Associação Brasileira de Otorrinolaringologia e Cirurgia Cérvico-Facial (ABORL-CCF), também alega que recebeu um e-mail muito próximo à divulgação da nota, impedindo a consulta aos associados quanto ao teor do boletim, solicitou a imediata retirada da assinatura da entidade.
“Acredito que todos os médicos do Brasil hoje são favoráveis à vacina contra a Covid. Também não existem médicos contra medidas de prevenção, como uso de máscaras e distanciamento social. Mas quando se fala de medicamentos, o próprio CFM definiu que o médico tem autonomia, então não cabe a nós julgar como associação se isso é certo ou errado”, diz o médico.
Ele também questiona a politização do tratamento precoce. “Acreditamos que neste momento criar ainda mais politização do tema, que já foi inclusive avaliado pelo CFM, só traria mais dúvidas e dificuldades aos médicos e pacientes. O momento requer união das sociedades médicas para que todos possamos atravessar esse período crítico”, pontua.
Por outro lado, Rosylane Rocha, presidente da Associação Nacional de Medicina do Trabalho (ANAMT), informou à reportagem que a associação sequer chegou a ser consultada quanto ao conteúdo do boletim. Ela cita o caso como um “posicionamento equivocado tomado por uma minoria que não representa o entendimento da maioria dos médicos”.
Em parecer técnico, Conselho Federal de Medicina reforçou autonomia médica na pandemia
Os itens 7 e 8 do polêmico boletim foram bastante questionados pelos representantes de entidades médicas principalmente pelo fato de o Conselho Federal de Medicina ter reforçado, por meio do Parecer 4/2020, a autonomia médica durante a pandemia do coronavírus.
“O princípio que deve obrigatoriamente nortear o tratamento do paciente portador da COVID-19 deve se basear na autonomia do médico e na valorização da relação médico-paciente, sendo esta a mais próxima possível, com o objetivo de oferecer ao doente o melhor tratamento médico disponível no momento”, cita o parecer do conselho.
Em artigo publicado no dia 24 de janeiro deste ano no jornal Folha de S. Paulo, Mauro Luiz de Britto Ribeiro, presidente do Conselho Federal de Medicina, citou que “o ponto fundamental que embasa o posicionamento do CFM é o respeito absoluto à autonomia do médico na ponta de tratar, como julgar mais conveniente, seu paciente; assim como a autonomia do paciente de querer ou não ser tratado pela forma proposta pelo médico assistente”.
Britto Ribeiro registrou também que há uma politização em relação à pandemia entre apoiadores e críticos do Presidente da República, que tem prejudicado a discussão do tema. “Assuntos irrelevantes relacionados à covid-19 dominam o noticiário, com discussões estéreis entre pessoas sem formação acadêmico-científica na área de saúde, dando opiniões como especialistas, porém com cunho político e ideológico”.
Na ocasião, o presidente do CFM disse, ainda, que a politização também atingiu sociedades de especialidades médicas e grupos ideológicos de médicos, “principalmente quanto ao chamado tratamento precoce, com hidroxicloroquina, ivermectina e azitromicina”.
Outro lado
Mesmo diante da desaprovação das entidades representativas quanto à divulgação do Boletim 02/2021, a diretoria da AMB ainda não se pronunciou oficialmente. A Gazeta do Povo questionou a associação sobre a elaboração da nota, mas não houve retorno até o fechamento desta reportagem.
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