A nova Inquisição: igreja identitária põe na cadeia quem não diz amém a tudo

.Foto: Bigstock

Pai nega tratamento experimental forçado e acaba preso por chamar a própria filha de menina.

Durante muito tempo, parecia um axioma das democracias a separação entre igreja e Estado. Mas isso só durou até o ponto em que conseguimos definir como igreja aquilo que é. A partir do momento em que determinadas crendices tornam-se famosas na elite cultural, intelectual e política, convertem-se em políticas de Estado. Falamos aqui de fé, mas não da fé declarada, aquela que vemos nas religiões. É a fé envergonhada, que se traveste de ciência sem ser, mas que bota gente na cadeia com o poder do Estado.

Eu tinha uma avó espírita kardecista, frequentadora fervorosa de mesa branca, dessas que tanto estiveram em alta nos anos 1970. Diante dos questionamentos da família católica, não tinha o menor pudor ao se justificar. Era ciência, estava comprovado. Não lembrava onde tinha lido, aparentemente era uma revista da cabeleireira. De maneira alguma estava se distanciando da fé na qual fora criada. Jesus nos proteja disso, amém! Tratava-se de algo diferente e os católicos da família, ignorantes que eram, ainda não sabiam. A ciência havia comprovado que a nova religião dela era científica. Morreu jurando isso. Pelo menos não mandou prender ninguém porque discordava.

Os fiéis da igreja identitária, tal qual minha falecida avó kardecista, juram que a própria crença é ciência. Importante deixar claro que vovó não tinha aprovação de seus líderes religiosos para essa pataquada, tal qual ocorre na igreja identitária. No caso de transexuais, governos obrigam menores de idade a tratamentos experimentais com base em crendice. E, se os pais contrariados, não seguirem à risca o manual da igreja identitária, vão presos. Ocorreu no Canadá, que parece tão civilizado.

Comecemos a contar o caso do começo, bem antes do desfecho na cadeia. É necessário para compreender como as crendices da igreja identitária são sobrepostas a todos os fatos, dados científicos ou critérios de políticas públicas. Há um lado oposto da igreja identitária, aquele que cresce em oposição a ela. Diante de tanto absurdo colocado como se verdade fosse, muita gente começa a negar a existência de racismo, machismo, homofobia ou até da transexualidade em si. Escolher explicações simplistas com chances para arroubos de heroísmo é típico de radicais e direito deles. Grave é quando a lei se torna um instrumento nas mãos de sandices.

Muitos fiéis da igreja identitária acreditam que a cirurgia de redesignação de gênero em transexuais é ponto pacífico na ciência. No entanto, é um tratamento experimental. Adultos podem decidir se querem ou não submeter-se a tratamentos experimentais. Eles existem para as mais diferentes condições humanas, há os que têm sorte e os que não têm enquanto nos faltam as conclusões. Mas devemos submeter crianças e adolescentes a tratamentos experimentais quando não estão desenganados nem há risco de morte iminente?

Imagine uma criança desenganada ou com risco de morte iminente. Há um tratamento experimental. É uma alternativa válida? E se os pais não autorizarem? O Estado pode obrigar ao tratamento? Agora pense numa criança que não está doente, não vai morrer, não tem nenhuma consequência danosa se esperar até ser adulta para decidir. O tratamento experimental deve ser considerado? Deve ser forçado no caso dos pais serem contra? O Canadá obrigou a redesignação sexual de uma adolescente de 14 anos contra a vontade da família – e isso foi só o começo do drama.

Recentemente, a Suprema Corte do Reino Unido proibiu terminantemente, mesmo com autorização da família, a cirurgia de redesignação sexual em menores de idade. E não é apenas por ser um tratamento experimental a uma condição que, em mais de 85% dos casos, se resolve com a puberdade. É por causa da esculhambação no acompanhamento dos pacientes e na coleta de dados necessários para mostrar se a cirurgia tem ou não efeitos benéficos. Os responsáveis não sabiam nem quantos eram os pacientes, imagine acompanhar.

A decisão surge do caso Keira Bell, que submeteu-se a todo procedimento e depois se arrependeu. Ela sabia que seu caso não teria remédio, mas quis evitar que outras adolescentes passassem pelo mesmo processo de pressão e enganação. A terapia com bloqueadores hormonais foi prescrita depois de apenas 3 sessões de uma hora de terapia. Diante das dúvidas que apresentou, já que não se sentia como um homem ou semelhante aos homens, foi levada a acreditar que isso era normal do processo.

“Haverá enormes dificuldades em uma criança com menos de 16 anos compreender e pesar essas informações e decidir em consentir em o uso de medicação bloqueadora da puberdade. É altamente improvável que uma criança de 13 anos ou menos seria competente para dar consentimento à administração de bloqueadores da puberdade. É duvidoso que uma criança de 14 ou 15 anos possa entender e pesar os riscos de longo prazo e consequências da administração de bloqueadores da puberdade”, disse a sentença da Suprema Corte Britânica.

Há uma dúvida razoável, tanto no Reino Unido quanto no Canadá, sobre o erro de diagnóstico de transgêneros antes da puberdade. Principalmente no caso de meninas, os índices de pessoas autistas identificadas como transgêneros e encaminhadas para cirurgias de redesignação sexual são gigantescos. Parece uma confusão estapafúrdia e é. Mas não é de se espantar que aconteça quando o diagnóstico é fechado em 3 consultas de uma hora, à revelia da família.

Quando alguém questiona a desumanidade no tratamento de transgêneros, geralmente a igreja identitária acusa a pessoa de transfobia. Isso ocorre porque a igreja identitária é dona de todas as pessoas trans do universo. Então, se você discorda da doutrina ou se questionou um milímetro, basta abrir a boca para ser transfóbica. Essa crendice tem força na elite cultural e intelectual, que se encarrega de calar vozes dissonantes por meio do constrangimento. É por isso que tantos adolescentes e famílias sofrem à toa.

Não tem o menor sentido que tratamentos experimentais sejam forçados sobre crianças, como foi feito no Canadá. São projetos que ficaram famosos por conta da elite intelectual e cultural, mas naufragaram quando confrontados com a ciência e os direitos humanos. A Associação Americana de Pediatria foi a primeira a se manifestar contrária à redesignação de sexo em crianças e adolescentes. Foi dura e classificou o tratamento experimental de abuso infantil.

Para a igreja identitária, não importam pessoas trans e sofrimento humano real. A doutrina gira em torno de dizer que é melhor que os outros. Ou você é transfóbico em desconstrução ou luta pela população trans. Mas não é para defender trans de verdade, pelo amor de Deus. Daí teria de considerar pessoas trans como seres humanos e garantir os Direitos Humanos dessas pessoas. Como ficariam os tratamentos experimentais forçados nas clínicas super progressistas? Não daria mais para prender os pais que são contra fazer os filhos de cobaia?

E agora nós partimos para um grande desafio a um dos pilares da igreja identitária brasileira, a linguagem neutra. Ou linguEgem neutrE, desculpem. Ainda não domino bem. Esse caso foi na parte do Canadá que fala inglês, portanto o tal do idioma neutrE que tantEs defendem por aqui. A base dessa luta seria criar um ambiente mais igualitário e livre de machismo. Ouvi dizer que nos países de língua inglesa não existe mais machismo porque os substantivos são de gênero neutro. Foi numa revista na cabeleireira, antes da pandemia.

O caso da menina submetida ao tratamento de redesignação sexual contra a vontade dos pais ocorreu em British Columbia, onde se fala inglês. E, pasmem, sambaram na cabeça dos nossos amigos defensores do gênero neutro. Sabem o que o pessoal queria? Justamente o oposto, dividir tudo em dois gêneros. Sinceramente, a igreja precisa decidir o que quer. Ou talvez eu é que não tenha entendido e a decisão já esteja tomada. Querem é ser do contra.

O pai havia sido proibido de se referir à própria filha como filha, pelo nome, como menina, com pronomes femininos ou tentar dissuadi-la do tratamento médico experimental. Ele deu uma entrevista dizendo que “Isso não vai mudar o DNA dela, ela não vai se tornar um menino, pode causar doenças no coração e outros riscos desse tipo, causar diferentes tipos de câncer. E como vão bloquear sua puberdade, a densidade dos seus ossos vai ficar estagnada”. Até aí, tudo bem. Mas, quando reclamou que estava “vendo uma menina perfeitamente saudável ser destruída”, foi preso.

Houve, na história recente, um período em que um governo específico criou idioma próprio, fez experimentos em crianças e se vingou dos pais que protestaram. No momento, não lembro direito qual foi. Vaga lembrança que não deu tão certo assim. É assustador que estejamos entrando de cabeça nesse pesadelo, em países civilizados, em nome da crendice de elite.

Calar diante de radicalização e tentativas de silenciamento é o que traz nações inteiras a esse nível de distopia. O mal só prospera diante do silêncio dos bons. Rotular as pessoas como transfóbicas é uma arma eficiente da igreja identitária para continuar impondo suas práticas experimentais como se fossem ciência. Ocorre que não são e estão trazendo sofrimento a pessoas reais. Meu coração, minhas orações e minha admiração estão com esse pai preso. Que não tenha sido em vão.

Confira a matéria na Gazeta do Povo

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