Escondida nas vizinhanças da Floresta da Tijuca, no Rio de Janeiro, está uma das mais prestigiadas instituições de ensino do país, hoje de portas fechadas por conta da pandemia do coronavírus. Chega a ser irônico que o Brasil, com suas notas baixíssimas no Pisa, seja também o lar de um polo de excelência no nível do Instituto de Matemática Pura e Aplicada (Impa), além de membro do grupo de elite da União Matemática Internacional (IMU).
Do Impa, saiu o matemático Arthur Ávila, vencedor da Medalha Fields – o prêmio Nobel da área -, bem como algumas das mais importantes iniciativas para a popularização da disciplina no país, como a Olimpíada Brasileira de Matemática das Escolas Públicas (OBMEP) e o Mestrado Profissional em Matemática, voltado para professores do ensino básico.
Desde 2017, este centro de ensino, pesquisa e extensão é capitaneado pelo primeiro brasileiro e primeiro matemático a receber o Grande Prêmio Científico Louis D., principal premiação científica da França, oferecido pelo Institut de France. Marcelo Viana, de 59 anos, é carioca, mas guarda resquícios do sotaque lusitano adquirido durante os 23 anos no exterior; e é especialista em sistemas dinâmicos e teoria do caos.
O assunto desta entrevista à Gazeta do Povo, entretanto, foi a emergência de pesquisadores que defendem que a matemática deve ser “descolonizada”. Por telefone, Viana falou sobre a “desconstrução” da disciplina e sua importância para um país imerso em desigualdades.
Existe, hoje, uma militância pela “descolonização da matemática”, em prol de causas identitárias. Fala-se em “descolonizar Pitágoras”. “Desconstruir” a matemática faz algum sentido?
A matemática, como qualquer atividade humana, não surge no vazio: ela é utilizada dentro de um contexto. Acho muito importante estudar as formas de aplicação da matemática ao longo da história. Mas uma confusão que me parece frequente é a de achar que isso é matemática; ou que fazer esse tipo de estudo faz parte da matemática em si – e isso é uma falácia. O conteúdo da matemática é independente.
Ninguém sabe direito quem descobriu o Teorema de Pitágoras, mas ele era conhecido na Mesopotâmia, 1800 a. C.; e foi “redescoberto” e tornado famoso pelo próprio Pitágoras, que era grego, mil anos depois. O teorema diz que, em um triângulo com um ângulo reto, o quadrado da hipotenusa (o lado maior) é igual à soma dos quadrados dos catetos (os lados menores).
Isso não é mesopotâmio, não é grego, não é francês, não africano: isso é matemática. O conhecimento matemático, por essência, é universal e abstrato, o que não quer dizer que ele não seja utilizado em um contexto cultural. O teorema funcionava na Mesopotâmia do mesmo jeito que funciona no Rio de Janeiro de 2021.
Um outro exemplo que eu adoro: é muito frequente vermos a defesa, inclusive em trabalhos acadêmicos, de que a matemática que deve ser ensinada em determinada cultura é aquela que é visível aos seus membros. Que na África deveríamos ensinar a partir da arte africana, etc.
Existe um teorema na matemática segundo o qual existem 24 tipos de simetria; um tipo de padrão que pode ser encontrado em pinturas, na natureza, etc. Se você analisar obras de arte escavadas da Mesopotâmia há 5000 anos, vai encontrar cerâmicas que contém esses tipos de simetria. Se você passear em Lisboa, vai perceber que aquelas belíssimas calçadas de pedra portuguesa, usam os mesmos padrões, também presentes nas cerâmicas marajoaras, no Pará.
Embora os materiais utilizados e os símbolos representados sejam diversos, a matemática utilizada é exatamente a mesma. Por isso, desconstruir a matemática é uma expressão completamente sem sentido.
Ou seja: não importa o aluno vai aprender com as cerâmicas marajoaras ou com as calçadas de Lisboa, contando que aprenda a mesma coisa.
Exatamente. Faz parte do DNA da matemática que ela seja universal. Isso a torna uma ciência exata, útil e extremamente flexível. Veja que os cálculos utilizados para modelar reservatórios com barragens, hoje, servem para modelar a propagação da Covid. Quando as pessoas tentam sequestrar a matemática ao serviço de causas – ainda que sejam meritórias, como é a causa racial, por exemplo -, prestam um desserviço.
Além disso, não podemos ser ingênuos: a matemática está acostumada a ser utilizada para justificar as ideias pré-concebidas que as pessoas têm. É muito comum vermos números sendo usados de forma isolada para provar coisas. A tentativa de transformar a matemática em bandeiras ideológicas está por todo lado e precisa ser identificada. Os números certamente já foram utilizados para justificar a discriminação, como a física foi utilizada – e ainda é – para construir bombas, antes mesmo do desenvolvimento nuclear.
Há uma responsabilidade individual e coletiva no uso do conhecimento. Essa investigação é tarefa da antropologia, da história, de outras disciplinas. Não da matemática. O Teorema de Pitágoras é agnóstico.
A impressão é de que o anseio das ciências humanas por “desconstrução” parte de um certo preconceito com as exatas, como se o matemático fosse alheio à realidade.
É a mesma sensação que eu tenho e isso é um tanto pedante. Eu poderia sair por aí perguntando, por exemplo, se as pessoas conhecem a segunda lei da termodinâmica; e dizendo que essa lei explica tudo.
Posso explicar de um jeito que você não vai esquecer mais: sabe a nossa casa, que a gente tem que estar sempre arrumando, porque se não fizer nada ela só se desarruma? É isso. Ela diz, basicamente, que à medida que o tempo passa o universo fica cada vez mais desorganizado. Se eu quiser impressionar os amigos vou dizer que “a entropia do universo está crescendo”.
A segunda lei da termodinâmica influencia relações sociais, o desenvolvimento da cultura, e quem sabe sobre ela somos nós. Com a mesma propriedade, eu poderia dizer que as ciências exatas são donas da verdade. A resposta é que a verdade é múltipla, é complexa e inclui tudo isso. Qualquer tentativa de dizer “a minha verdade é mais complexa” é arrogante.
Por que é tão importante que uma criança domine a matemática? Via de regra, o jovem sai da escola certo de que a fórmula de Bhaskara não serve para nada.
Bhaskara não serve para muita coisa mesmo (risos), mas isso é outra briga. Primeiro, vamos deixar claro que não, a matemática não deve ser ensinada fora de contexto. Já passou há muito tempo a geração que que decorava a tabuada sem saber o que ela significava. A contextualização é útil, ajuda a valorizar o repertório da criança e o respeito à cultura ancestral.
Mas é imprescindível lembrar que o dever da escola é preparar a criança para a vida adulta. Por mais que as humanidades, as ciências, sejam de suma importância, ter acesso só a essas áreas do conhecimento deixa a educação capenga. E por que é importante aprender matemática? Porque nós estamos em um mundo em que ela é cada vez mais responsável por geração de riqueza.
Um estudo feito em 2012 com países desenvolvidos – entre eles o Reino Unido, a França, a Austrália, a Holanda, entre outros – demonstrou que, em média, a matemática contribui com cerca de 15% do PIB de todos eles. Aqui, me refiro à matemática aplicada na vida real, em design de aviões, produção e desenvolvimento de fármacos, tecnologia da informação, engenharia, etc. Com os avanços na inteligência artificial, na ciência dos dados e na tecnologia da informação, isso tende a crescer.
O investimento em matemática de verdade, então, pode ajudar a reduzir a pobreza?
Sim. Em primeiro lugar, vale lembrar que não são só profissões de ensino superior que precisam da matemática. Segundo, além de o mercado de trabalho estar cada vez maior, a média de salários nessa área tende a ser o dobro da média no país. Só no Reino Unido 10% dos empregos criados neste ano são altamente matematizados e são estes os responsáveis por boa parte do PIB. Estamos falando de produção de riqueza.
Diante disso, pergunto: o Brasil? Estamos dando aos nossos jovens a chance de terem esse tipo de profissões? Não estamos. 46% deles não alcançam nem o primeiro nível do Pisa – o que significa que não sabem fazer as quatro operações básicas -, enquanto os que atingem o nível 4, a proficiência necessária para exercer essas profissões, não chegam a 4%. O nível 2, veja você, é considerado o mínimo para exercer a cidadania. Estamos privando gerações de adultos de um acesso básico à vida social, a profissões elementares. O Brasil tem obrigação de dar isso aos seus cidadãos. Caso contrário, aí sim, estamos perpetuando assimetrias.
Quando nós nos dedicamos a discutir se a matemática contribui para a discriminação racial, ao invés de ensinar matemática, impedimos que nossos jovens e crianças das classes mais desfavorecidas tenham acesso a esse conhecimento que pode abrir as portas da progressão social à qual todo mundo tem direito.
Então, voltando ao assunto inicial da desconstrução da matemática: vamos falar sério? Vamos dar às pessoas o que elas precisam para serem profissionais plenos? Nossa obrigação é criar cidadãos cujos horizontes não se restrinjam a aspectos técnicos. Mas tem que aprender a fazer conta. E a gente segue insistindo nessa falsa dicotomia de ensinar sociologia ou matemática. O melhor instrumento para combater a desigualdade é o acesso ao conhecimento.
Duvido que a resposta seja simples, mas não custa tentar: como começar a melhorar esse cenário?
Não é simples mesmo, principalmente por conta da escala do nosso abacaxi. Temos algumas iniciativas interessantes, mas pouca coisa que abarque as escolas públicas, que é onde está o maior gargalo. A formação dos professores é crucial e este é um processo demorado; mudanças dão trabalho, exige que as pessoais saiam da zona de conforto e isso desperta resistência. É impossível capacitar 750 mil professores de matemática no curto prazo. Isso sem falar na inércia das nossas instituições e no corporativismo que ficou evidente com a pandemia.
Por outro lado, há algum tempo saiu uma estatística que dizia que nossas escolas privadas ficam no nível médio das públicas europeias e esse dado causou um certo choque; “como pode, nossas magníficas escolas privadas?”. Não tem surpresa nenhuma nisso aí. Estamos imersos em um mundo no qual as crianças não têm contato com a matemática no dia-a-dia.
Também passa por nós aumentarmos a presença do conhecimento na cultura. Por isso fico brincando com o pessoal que está na hora de ter um galã de novela que seja matemático. Esse é o propósito da Olimpíada Brasileira de Matemática, inclusive: tornar a disciplina um evento, uma competição divertida, que engaje os alunos e nos permita alcançar o país inteiro.
Não estou dizendo que a Olimpíada substitua a sala de aula, mas ela mostra que o ensino da matemática – que, no Brasil, é muito, muito chato – não precisa ser do jeito que é.
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