Prioridade do governo no Congresso: o que propõem os projetos que miram crimes sexuais

O governo federal incluiu em sua lista de projetos prioritários para discussão no Congresso Nacional duas propostas que tratam de crimes de natureza sexual praticados menores ou incapazes. Um dos PLs inclui delitos cometidos por pedófilos no rol de crimes hediondos. O outro, propõe aumento de pena para crimes sexuais realizados por pessoas que gozam da confiança da vítima, como profissionais da educação e ministros de confissão religiosa.

Apesar da importância de punir com severidade tais condutas criminosas, especialistas apontam a insuficiência das medidas e indicam a necessidade de aprimoramento do debate no Congresso. Também há um imbróglio acerca do termo “pedofilia” e sobre como incluir os atos criminosos a ela relacionados no Código Penal (leia mais abaixo). A resolução desses dilemas passa por questões educacionais, culturais e econômicas.

A proposta legislativa que tem mais destaque, e que tramita em regime de urgência, é a de número 3.780, de 2020. Ela aumenta a pena para autores de crimes sexuais cometidos com abuso de confiança do menor, do incapaz ou da família da vítima. Por exemplo: religiosos, profissionais de saúde e profissionais de educação.

O texto ainda possibilita, de forma inédita, a tomada antecipada de depoimento dessas vítimas. O texto foi escrito em conjunto pelo Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH) e Ministério de Justiça e Segurança Pública (MJSP).

O segundo projeto de lei, 1.776 de 2015, inclui “os crimes de pedofilia no rol de crimes hediondos”. Ele foi endereçado à Câmara dos Deputados pelo parlamentar Paulo Freire Costa (PL) em 2015. Procurado pela reportagem, Costa não quis se manifestar.

Crimes sexuais cometidos com abuso de confiança

Crimes de natureza sexual contra menores ou incapazes cometidos no seio familiar podem ficar invisíveis por anos. Há uma espécie de “muro de silêncio” que se ergue nessas situações e que dificulta sua identificação. O principal motivo costuma ser o fato de que os agressores gozam da confiança da vítima. Os casos também ocorrem em escolas, comunidades religiosas, consultórios médicos, entre outros.

Levantamento da organização Childhood Brasil revela que somente 10% dos casos de abuso e exploração sexual contra crianças e adolescentes são notificados às autoridades.

Para especialistas, apesar de importante, a majoração das penas, por si só, não deve impedir a ocorrência dos abusos. “O criminoso não costuma fazer cálculo de pena. Há, ao longo da história, tentativa de utilização do Direito Penal como ‘vacina’ para determinados crimes. Mas os resultados, em geral, são insatisfatórios”, afirma Douglas Lima Goulart, especialista em Direito Penal e sócio do escritório Lima Goulart e Lagonegro Advocacia Criminal.

“Ter considerado o homicídio qualificado como hediondo, por exemplo, não diminuiu a quantidade de homicídios. Isso é tema de estudo de várias escolas de criminologia, e muito dificilmente medidas dessa natureza são capazes de gerar um resultado impactante na quantificação de crimes. Isso não significa, contudo, que o Estado não tenha a obrigação de dar uma resposta adequada à situação”.

Douglas Lima Goulart, especialista em Direito Penal e sócio do escritório Lima Goulart e Lagonegro Advocacia Criminal.

Em entrevista à Gazeta do Povo, Maria Leolina Couto Cunha, advogada, diretora de Enfrentamento de Violações aos Direitos da Criança e do Adolescente no MMFDH reconhece que a lei é apenas um dos passos a serem dados. O dispositivo, afirma ela, apenas alerta à sociedade de que, nesses casos de proximidade com a vítima, não restam dúvidas quanto à necessidade de agravamento da pena. “Se for julgado que o criminoso se vale dessa relação de confiança com a vítima ou sua família, ele precisará responder de forma mais gravosa”, afirma.

Benefício a vítimas e ações paralelas

Medida inédita prevista no PL de autoria do Executivo é a tomada antecipada do depoimento do ofendido nos crimes contra a dignidade sexual. Isso contribuirá, segundo os autores, para impedir a vitimização secundária de mulheres, crianças, adolescentes e outros grupos vulneráveis. Em casos de estupro, considerado um dos crimes mais aviltantes, a tomada de depoimento da vítima pode levar anos.

“Se dermos a chance para que ela seja ouvida logo, de certa forma, a vítima pode se ‘livrar do martírio’. Isso a beneficia muito. No caso específico do fenômeno do abuso sexual, o grau de traumatização pode ser agravado consideravelmente quando ocorrem falhas no atendimento interinstitucional e multidisciplinar, provocando a revitimização”, afirma o texto.

A ideia geral, explica Maria Leolina, é prever um tratamento mais digno para a vítima. “Quando ela é maltratada, tanto na delegacia ou já no meio do processo, o trauma é gravemente aprofundado, as sequelas são agravadas. A tomada de depoimento antecipado já é feita com crianças e adolescentes; agora, estamos estendendo a possibilidade para a mulher, o idoso e o incapaz”, diz.

“Os crimes sexuais ainda são pouco investigados e punidos. Primeiro, em razão da própria subnotificação, já que é bastante comum a vítima deixar de noticiar o crime para evitar exposição e revitimização. Segundo, pela própria dificuldade na apuração e comprovação do crime, já que, em sua imensa maioria, crimes sexuais são cometidos às escondidas, sem testemunhas. Sem contar a deficiência dos órgãos responsáveis pela persecução penal que atinge a apuração e responsabilização de agentes de todos os crimes e não apenas os sexuais”, explica Nohara Paschoal, mestre em Direito Penal pela USP.

Questionada novamente sobre sobre a eficácia dessa iniciativa legislativa, a advogada repete que esse é um dos passos necessários, mas que o governo tem outras frentes de atuação. Como exemplo, ela cita o investimento da pasta em canais de denúncia. Recentemente, o MMFDH celebrou um acordo de cooperação com o Conselho Federal de Medicina (CFM) para a criação de um canal exclusivo para profissionais de saúde denunciarem crimes de natureza sexual.

“O médico tem a obrigação legal de denunciar maus-tratos e violências percebidas em seus diagnósticos, em especial envolvendo crianças e adolescentes. Mas muitos têm medo de fazer a denúncia e serem identificados, principalmente nos municípios pequenos”, diz ela. Com o acordo, o profissional terá uma linha direta para fazer a denúncia em sigilo, fazendo com que seu fluxo da denúncia tenha celeridade, uma vez que será uma denúncia qualificada. Maria afirma que a pasta estuda outro canal de denúncia para profissionais de educação, mas que a ideia ainda não saiu do papel.

Pedofilia no Código Penal?

A segunda proposta escolhida como prioridade pelo governo é, do ponto de vista jurídico e semântico, mais complicada. O PL inclui no rol de crimes hediondos “crimes de pedofilia”, sem entrar a fundo nos dilemas que envolvem o termo.

O parlamentar Paulo Freire Costa, autor do documento, argumentou, em 2015, que “no campo jurídico, o termo pedofilia vem sendo utilizado para indicar crime de natureza sexual, em que um indivíduo adulto comete atos libidinosos contra uma criança, que é incapaz de consentir, compreender, e de agir de forma contrária aos abusos cometidos contra sua integridade física e psíquica”.

Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), a pedofilia é um distúrbio psicológico e patológico que leva o indivíduo a sentir atração sexual por crianças, em geral pré-púberes ou no início da puberdade. Portanto, não seria possível afirmar que pedofilia, em si, é um crime. Mas não há dúvida de que é crime o delito que dela decorrer.

“Não existe o crime de pedofilia. Existe o estupro; o crime de estupro de vulnerável, por exemplo. Pedofilia é um termo médico e designa uma doença. Sem dúvida, autores de crimes sexuais contra crianças podem ser portadores da doença pedofilia. Mas, muitos não são. Mesmo porque, se o agente é portador de doença, ele não pode ser punido, isto é, condenado e cumprir pena, mas, ao contrário, receberá medida de segurança”, explica Nohara Paschoal, mestre em Direito Penal pela USP.

Pessoas com pedofilia podem nutrir um desejo pela prática de atos libidinosos com crianças ao longo de toda uma vida sem, contudo, cometer qualquer crime de natureza sexual. Da mesma maneira que acontece com o termo “psicopata”, por exemplo – ser psicopata, em si, não é crime, mas os atos ilícitos que decorrerem dessa condição. Segundo a Coordenadoria da Infância e da Juventude do Poder Judiciário de Roraima, “de 20% a 30% dos abusadores presos são diagnosticados com o transtorno”.

Matéria da Gazeta do Povo explica como correntes progressistas e “lobbys” pró-pedofilia tentam amenizar a conotação negativa do termo “pedófilo”. Nos EUA, há movimentos mais perigosos, que chegam a defender que trata-se apenas de uma “orientação sexual”. O problema é que, ao fazer isso, corre-se o risco de normalizar os delitos que podem vir a decorrer da pedofilia e, assim, legitimar o próprio abuso sexual de crianças.

O termo “crime de pedofilia” não está presente no Código Penal brasileiro. A prática, na verdade, acaba sendo enquadrada em outros artigos sobre crimes sexuais, tais como: o estupro de vulnerável, indução de menor de 14 anos a satisfazer a lascívia de outrem, satisfação da lascívia mediante presença de criança ou adolescente, o favorecimento da prostituição e a divulgação de cenas de estupro de vulneráveis. Propostas como a 4299/20, da deputada Rejane Dias (PT/PI), tem o objetivo de tipificar o “crime de pedofilia” no Código Penal.

“Não vejo como o Direito Penal possa deixar de incidir em situações que envolvam agressões sexuais, seja contra menores, seja contra adultos. Dentre agressores sexuais, de fato, há portadores da parafilia sexual e pedofilia. Prender tais sujeitos não resolverá o problema, pois eles voltarão a praticar crimes sexuais quando em liberdade. São pessoas que precisam de acompanhamento e monitoramento especializado”.

Nohara Paschoal, mestre em Direito Penal pela USP.

Um outro problema apontado pelos especialistas é a impunidade histórica. “É realmente muito difícil estabelecer uma vacina. Infelizmente, temos no país um longo histórico de impunidade, não por processos que geram absolvição, mas por situações que não geram processos”, diz Goulart. “O simples fato de um indivíduo ser processado já gera pra ele uma resposta de fiscalização e um temor de que ‘está sob vigília’. Mas temos um leque amplo de condutas que sequer são investigadas. Uma incapacidade do Estado de abraçar tudo que acontece”.

Nohara corrobora e afirma que “aumentar pena de nada adianta se ela não é aplicada”. Segundo a especialista, capacitar os órgãos responsáveis pela persecução penal e diminuir o tempo de tramitação de processos seriam medidas muito mais efetivas. “A impunidade, para mim, é o maior incentivo à prática de crimes”, diz.

Apoio às vitimas de crimes sexuais

Ao longo da investigação dos crimes e da punição aos culpados, as vítimas podem acabar desamparadas. Nesse contexto, surge o Projeto de Acolhimento de Vítimas, Análise e Resolução de Conflitos do Ministério Público do Estado de São Paulo (Avarc). Trata-se de uma iniciativa que surge a partir da identificação de um “vácuo na Justiça” ao acolhimento à vítima. “Existe uma preocupação com o crime, o réu é processado, mas a vítima não é levada em conta. No processo penal tradicionalmente a vítima é relegada ao segundo plano”, explica Celeste Leite dos Santos, promotora de Justiça Criminal da 3ª Promotoria Criminal de São Paulo, doutora em Direito Civil pela USP e uma das fundadoras do Avarc.

“Para mudar este estado de coisas, o Avarc foi constituído no intuito de alterar a forma de recepção dos casos de forma que os procedimentos levem em conta os sentimentos, as percepções e as necessidades das vítimas. Imputar penas não é suficiente e pode ocorrer disso estar muito longe da solução desejada pelas próprias vítimas. Os integrantes do projeto – somos quase duas dezenas de promotores no Estado de São Paulo – não atuam somente como um órgão de acusação, mas também de acolhimento e resolução de conflitos”, diz a promotora.

“Assim, o Avarc é um projeto para que a promotoria não seja apenas um órgão de acusação, mas de acolhimento e resolução de conflitos, enfatizo. A ideia é levar ao campo criminal os princípios da justiça restaurativa — técnica de solução de conflito a partir da escuta das partes diretamente envolvidas, em que elas discutem qual a melhor forma de reparar o dano causado pelo conflito”, explica Celeste.

À Gazeta do Povo, Celeste também conta que a promotoria tem constatado “crimes de cunho sexual dentro de diversos tipos de crença. As apurações têm caminhado e todos os responsáveis estão sendo processados pelo Estado”.

“Em outra iniciativa, de caráter voluntário, onde participam integrantes de diversos segmentos sociais, temos estimulado oficinas de capacitação de operadores sociais e do direito para entenderem como atuar sobre estes fenômenos. Na medida em que as pessoas – homens e mulheres, fiéis destes cultos – adquirem consciência sobre atos inapropriados, têm encontrado forças, na própria fé, para expor a ocorrência de tais crimes. Deve ainda ficar claro que tais casos não representam as intenções destas religiões, mas cabe aos seus responsáveis apoiar suas congregações para superar este momento”.

Celeste Leite dos Santos, promotora, fundadora do Avarc.

Um dos episódios mais emblemáticos nesse sentido, e que é citado no projeto de lei sobre crimes de pedofilia, foi o caso envolvendo o médium João de Deus. Ele foi condenado, em 2020, a 40 anos de reclusão em regime fechado após ter estuprado cinco mulheres durante atendimentos espirituais e ser suspeito de abusar também de adolescentes.

Leia a íntegra do PL 3780, que aumenta a pena para abusadores:

Leia a íntegra do PL 1776, que inclui o termo “pedofilia” no Código Penal e abre o leque de condutas tipificáveis:

Confira a matéria na Gazeta do Povo

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