Quando procuradores, promotores e policiais preparam uma operação de combate à corrupção, eles trabalham com base em um longo planejamento. O sigilo é essencial, tanto quanto a fundamentação jurídica das ações, que certamente serão questionadas pelos advogados de defesa dos acusados. Juízes também decidem se condenam ou absolvem os réus fundamentados em leis e jurisprudência. Mas como então agir num cenário em que as regras mudam o tempo todo? E é exatamente isso – a criação de insegurança jurídica na luta anticorrupção – que o Supremo Tribunal Federal (STF) vem fazendo.
Na última semana, o STF deu ao menos dois sinais que abalam a confiança nas regras judiciais previamente estabelecidas – e que se somam a uma série de outros na história recente do país.
Na segunda-feira (8), o ministro do STF Edson Fachin anulou todos os processos e condenações contra o ex-presidente Lula decorrentes da Lava Jato. Isso incluiu casos em que o petista já tinha condenações em três instâncias judiciais.
Um dia depois, a Segunda Turma do Supremo retomou a análise do pedido da suspeição de Sergio Moro, num julgamento em que as mensagens hackeadas da Lava Jato foram usadas por ministros do STF como argumento contra o ex-juiz. Pela legislação brasileira essas mensagens deveriam ser consideradas provas inválidas porque foram obtidas por meios ilícitos – no caso, a invasão de celulares de integrantes da Lava Jato.
Insegurança jurídica atrapalha planejamento de investigações
“As mudanças de entendimento do Supremo Tribunal Federal (STF) representam um grande problema no combate à corrupção porque desestruturam e atrapalham o planejamento de investigações”, diz Julia Sakai, diretora de operações da ONG Transparência Brasil.
“Existem instrumentos legais com os quais os investigadores contam, e que podem parar de valer de uma hora para outra”, diz ela. “Essa insegurança jurídica afeta diretamente o planejamento e a condução das investigações.”
Na avaliação da especialista, o STF claramente faz “cálculos políticos” em suas decisões sobre o combate à corrupção. E, embora haja quem acredite que essas decisões “políticas” corrijam erros do passado, elas criam novos erros que precisam ser corrigidos depois. E tudo isso cria insegurança jurídica que facilita a impunidade.
Julia Sakai cita o caso do antigo Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), atual Unidade de Inteligência Financeira (UIF) – órgão do governo federal que monitora movimentações financeiras suspeitas. Em julho de 2019, o ministro do STF Dias Toffoli suspendeu apurações que usassem, sem autorização judicial, dados sigilosos da Receita Federal e do Coaf. Decisões intempestivas como essa, alerta a diretora de operações da Transparência Brasil, “tornam as investigações ineficientes e atrapalham a percepção pública de que a Justiça é imparcial, isenta e que funciona”.
Fachin contrariou o próprio STF ao anular ações de Lula
A decisão de Edson Fachin que anulou os processos de Lula na Lava Jato contraria entendimentos firmados pelo próprio STF anteriormente.
Em 2015, o plenário do Supremo decidiu que todas as investigações que tivessem relação com a Petrobras deveriam permanecer na 13.ª Vara Federal de Curitiba, responsável pela Lava Jato. Fachin, na época, votou a favor dessa tese. Foi esse julgamento que “fatiou” a Lava Jato. Ou seja, que deixou com Moro apenas os casos referentes à Petrobras e que redistribuiu para a Justiça de outros estados os desdobramentos da investigação.
Em 2016, o relator da Lava Jato no STF à época, o ministro Teori Zavascki, decidiu que dois casos envolvendo Lula, o do sítio em Atibaia (SP) e do tríplex no Guarujá (SP), deveriam ficar sob a alçada do então juiz Sergio Moro, da Justiça Federal do Paraná. Ele entendeu que os casos tinham relação com a Petrobras – a Lava Jato afirmava que o apartamento e benfeitorias no sítio eram na verdade propina por contratos na estatal.
Teori Zavascki morreu em janeiro de 2017. No mês seguinte, Fachin assumiu a relatoria da Lava Jato no STF.
Em novembro do ano passado, a defesa de Lula entrou com um pedido de habeas corpus para tirar os casos envolvendo o ex-presidente da Justiça Federal de Curitiba. A decisão foi acatada agora por Fachin. O ministro entendeu que a 13.ª Vara não era competente para conduzir e julgar os casos envolvendo Lula porque não havia relação com a Petrobras.
Fachin, portanto, reverteu um entendimento que havia sido tomado em 2016 por Teori Zavascki e cuja fundamentação jurídica havia começado a se sedimentar em 2015. Além disso, a decisão de Fachin que beneficiou Lula pode ser revertida pelo próprio do STF – o que só aumenta a insegurança jurídica envolvendo o caso.
No caso específico da decisão de Fachin, especialistas veem outro problema: a ferramenta jurídica de que ele se utilizou para anular os processos de Lula.
“O ministro recorreu ao embargo de declaração, que não pode, por essência, reformar nenhuma decisão”, afirma a advogada Flávia Ferronato, coordenadora do Movimento Advogados do Brasil. “Todo estudante de primeiro ano de Direito sabe que essa ferramenta não se aplica da forma como foi utilizada pelo ministro, que esperou tanto tempo para tomar essa decisão, que reverte a posição de outro colega ministro, de quatro anos atrás”, afirma. “Sozinho, Fachin mudou as regras do embargo de declaração.”
“Embargo de declaração não pode alterar decisão. Uma decisão dessas vai refletir no dia a dia do advogado. Hoje é normal juízes aplicarem multas por efeito protelatório no pedido de embargos, com o argumento de que embargos de declaração não podem reformar decisão. Essa situação vai mudar agora”, diz a advogada.
Suspeição de Moro também causa insegurança jurídica
A advogada Flávia Ferronato afirma que a insegurança jurídica gerada pelo STF nesta semana é ainda maior por causa do julgamento da suspeição de Moro.
Dois ministros do STF, Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski, citaram mensagens hackeadas de procuradores e juízes envolvidos na operação Lava Jato. Ocorre que esse vazamento é ilegal, e não poderia ser usado, em hipótese alguma, como prova judicial. A posição de Mendes e Lewandowski, se for referendada com base nos vazamentos, pode abrir brecha para no futuro haver a tentativa de validação de provas ilegais – o que seria prejudicial inclusive para acusados de corrupção.
Além disso, a possibilidade de Moro ser declarado suspeito também ameaça anular toda a Lava Jato, com impactos inclusive econômicos para o Estado.
“Ao levantar a suspeição sobre o ex-juiz Sergio Moro, Gilmar Mendes anula todo o trabalho de sete anos da Lava Jato. Cria um imbróglio jurídico enorme – que permite, inclusive, que o Estado tenha que devolver o dinheiro das delações premiadas”, diz Flávia Ferronato. Para ela, esse é um recado “de que o crime compensa”. “Você pode confessar o ilícito, pagar as multas e ainda assim exigir indenizações do Estado.”
Prisão em 2.ª instância teve 3 entendimentos diferentes em 10 anos
Decisões do STF que contribuem para agravar o quadro de insegurança jurídica no combate à corrupção, porém, não se restringiram à última semana. Elas são recorrentes.
Em novembro de 2019, por exemplo, o Supremo proibiu a prisão após condenação em segunda instância judicial. Em 2016, havia autorizado. Em 2009, havia decidido que ela era inconstitucional. Foram três mudanças em uma década.
A criação do chamado “juiz de garantias” é outro assunto que passa por um impasse dentro do próprio STF. Em 2019, o Congresso aprovou lei criando o juiz de garantias: magistrado responsável por conduzir uma investigação, mas não por julgar os processos decorrentes dela (isso ficaria a cargo de outro juiz).
Em janeiro de 2020, o então vice-presidente do Supremo, o ministro Luiz Fux revogou liminar do presidente do STF à época, Dias Toffoli, que havia concedido um prazo de seis meses para que o juiz das garantias entrasse em vigor. Em fevereiro deste ano, o ministro Alexandre de Moraes negou o pedido de um grupo de advogados para a implementação da regra que cria a figura do juiz de garantias. A medida permanece aguardando a votação em plenário.
Especialista vê outro problema: os critérios políticos na Justiça
“A modificação de posições traz insegurança jurídica, mas pior que insegurança jurídica é o envolvimento do Judiciário no controle da corrupção política”, argumenta Igor Tamassauskas, advogado, mestre e doutor em Direito do Estado pela Universidade de São Paulo (USP).
“A Justiça trabalha com um código binário de lícito e ilícito, que não dialoga com a amplitude do discurso político. Quando se usa esse código binário para controle da corrupção política, as decisões judiciais passam por um processo de avaliação política e não apenas jurídica”, diz Tamassauskas.
Ele concorda que o Judiciário possui seu papel no controle da corrupção. “Mas ele não pode desempenhar isso sozinho, sob pena de passar mensagens ambíguas para a sociedade.” A tarefa não é fácil, afirma, “sobretudo porque corrupção política envolve cooptação parlamentar, justamente para evitar o controle da administração”. “Todavia, não se inventou alternativa ainda para essa situação, dentro de uma moldura de respeito aos direitos e garantias individuais, que é inerente ao Estado Democrático de Direito.”
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