Rumo à sociedade do rancor e do dedo em riste

Foto: Reprodução Twitter

Estou cada vez mais convencido de que a classe falante e supostamente pensante – isto é, aqueles conjuntos de pessoas que exercem quase que um monopólio da fala no nosso país: intelectuais, artistas, acadêmicos, jornalistas da grande mídia etc – vivem em uma bolha isolada das opiniões e dos valores dos brasileiros comuns, que rejeitam os excessos do politicamente correto e dos movimentos identitários.

Só esse descompasso pode explicar a tentativa diária e desesperada de atacar e sabotar o governo, com um mal camuflado ódio que vai muito além das necessárias críticas a que deve ser submetido qualquer presidente. A estratégia, a julgar pela última pesquisa divulgada pelo Instituto Paraná, está surtindo pouquíssimo efeito fora da bolha. Mas cadê humildade para reconhecer isso?

O mesmo vale para a agenda dita progressista, que quer impor no grito e na marra mudanças na moral, no comportamento e até na linguagem que são claramente rejeitadas pela imensa maioria do povo brasileiro. Na verdade, o que essa agenda faz é se apropriar de bandeiras legítimas – combate ao preconceito, defesa de direitos de minorias – para arregimentar inocentes úteis como soldados de uma guerra de narrativas, cujo único objetivo é o poder.

Fato: o campo político que, em um passado recente, destruiu a economia do país (sem pandemia) e se afundou até o pescoço em escândalos de corrupção não está preocupado com as minorias, e sim em usar as minorias como escada para voltar ao governo.

Mas, para quem tem olhos para enxergar, parece evidente que os brasileiros comuns rejeitam a onda de fascismo identitário que se transformou no bote salva-vidas da esquerda – como demonstram de forma cabal os resultados dos últimos “paredões” do BBB 21, nos quais os representantes da lacração foram rejeitados sucessivamente, com quase 100% dos votos, algo inédito em mais de duas décadas do reality show.

Uma das eliminadas achou normal, por exemplo, declarar que uma colega de confinamento estava “toda cagada na branquitude”. Se a intenção era montar uma edição do BBB para acirrar os conflitos raciais, jogando negros contra brancos, o resultado foi um desastre: os espectadores rejeitaram o discurso de ódio do bem. Isso porque o brasileiro comum, que tem senso de decência e honestidade, sabe que o valor de uma pessoa está no que ela efetivamente faz e é, e não na cor da sua pele, no seu gênero ou na sua orientação sexual.

Ou seja, o BBB 21 acabou por demonstrar o equívoco de quem aposta nesse discurso – e as más intenções de quem aposta no acirramento dos conflitos e joga deliberadamente brasileiros contra brasileiros, com objetivos político-partidários.

O objetivo dessa turma não é uma sociedade mais justa e igualitária, com direitos e deveres iguais para todos, mas uma sociedade crescentemente dividida, na qual movimentos minoritários ditem as regras

Porque o objetivo dessa turma não é uma sociedade mais justa e igualitária, na qual não faça diferença o grupo ao qual se pertence, mas uma sociedade crescentemente dividida, na qual movimentos minoritários ditem as regras – o racialismo que reduz todos os problemas do mundo a questões de raça, a vertente feminazi do feminismo que prega o ódio aos homens, os ativistas trans que negam a natureza, a biologia e a genética. Uma sociedade na qual todos são vítimas e todos se odeiam e todos se cancelam. Mas o descontrole desse processo já está fazendo com que, aqui e ali, apareçam sinais de que a classe falante começa a perceber que sua narrativa não está colando. A ficha começa a cair.

Blogueiros que contribuíram com entusiasmo para cancelar dezenas de artistas por qualquer bobagem começam a fazer ressalvas à cultura do cancelamento – “Devemos combater o cancelamento”, postou um blogueiro cancelador esta semana (para logo em seguida defender mais um cancelamento…).

Colunistas de jornal que até ontem eram defensores ferrenhos das pautas identitárias começam a escrever que não é bem assim. Outro dia mesmo um desses colunistas teve a ousadia de escrever que “talvez seja tempo de reconhecer” que os interesses dos movimentos progressistas não são os mesmos  do pensamento politicamente correto – isso depois de passar anos a fio apostando na lacração.

(Nesse ritmo, daqui a pouco vão dizer que o politicamente correto é de direita…

Porque não há limites para a cara-de-pau. Por exemplo, quando ficou insustentável apoiar a ditadura de Maduro, o que a esquerda brasileira fez? Reconheceu seu erro e fez uma autocrítica? Não: passou a afirmar que… Maduro é de direita! E essa tese esdrúxula foi defendida em público até mesmo por um ministro do STF! )

O colunista em questão se referia ao episódio mais recente do processo de conversão da estupidez em norma moral. Uma premiada romancista holandesa, Marieke Rijneveld, se dispôs a traduzir o poema lido pela jovem americana Amanda Gorman na cerimônia de posse de Joe Biden. Mas Marieke foi obrigada a desistir: imediatamente choveram protestos contra o fato de uma escritora branca traduzir um poema de uma escritora negra. Onde já se viu?

Amanda e Marieke: uma tradutora branca não pode traduzir um poema de uma escritora negra?

Amanda e Marieke: uma tradutora branca não pode traduzir um poema de uma escritora negra?

Marieke foi obrigada a se retratar e pedir desculpas por cogitar cometer o crime de traduzir uma poesia, já que esse trabalho só poderia ser feito por uma tradutora negra: “Compreendo que as pessoas se sintam magoadas”, ela escreveu. É isso mesmo: na cabeça dos identitários, o mundo ideal é aquele em que poemas escritos por autores negros só podem ser traduzidos por tradutores negros.

O argumento do “lugar de fala”, isto é, de que uma tradutora branca não tem a experiência de vida necessária para entender um poema escrito por uma mulher negra é falacioso e perigoso, pois escritores de todas as raças podem passar a usá-lo para exigir que apenas tradutores com a mesma cor de pele traduzam suas obras. É isso que se pretende? Em que isso irá melhorar a vida das pessoas?

Se o mesmo raciocínio for estendido a outras esferas da vida, a conclusão necessária é que se está defendendo uma sociedade separada por muros, sem interação nem mistura entre os diferentes. O objetivo não é uma sociedade na qual todos se reconheçam como iguais, com os mesmos direitos e deveres, mas uma sociedade na qual todos apontem o dedo para todos, o tempo inteiro. Uma sociedade do rancor e do dedo em riste.

Confira a matéria Gazeta do Povo

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